A Provedoria de Justiça censurou a comissão criada pelo Governo para selecionar altos dirigentes na função pública, acusando mesmo de usar critérios “arbitrários” e “conceitos indeterminados” nos concursos.
Depois de receber e analisar “diversas queixas” contra as práticas adotadas pela Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP) na escolha de dirigentes para cargos de topo da função pública, a Provedoria de Justiça considerou que “não existe fundamento para [a CRESAP] recusar o acesso aos documentos” solicitados pelos concorrentes queixosos e enviou um parecer àquele organismo onde solicita que sejam feitas algumas alterações ao regulamento e aos procedimentos atualmente aplicados.
“Não existe fundamento para recusar o acesso aos documentos requeridos (…) sendo tal recusa uma violação dos princípios jurídicos da legalidade administrativa, da imparcialidade e transparência, e da administração aberta”, escreve a Provedoria.
Chegaram ao todo à Provedoria cinco processos, que se encontram ainda abertos, em fase de instrução. Dizem respeito a diferentes procedimentos de recrutamento e seleção, isto é, a diferentes concursos para cargos na administração pública, mas as queixas são semelhantes, garantiu a Provedoria ao Observador. No seguimento das queixas, a Provedoria enviou um parecer endereçado à CRESAP, que o Observador teve acesso, onde propõe ao presidente daquela comissão, João Bilhim, que “promova as medidas tidas por necessárias e adequadas a conformar a tramitação destes procedimentos concursais aos parâmetros legal e constitucionalmente estabelecidos”.
As diligências, lê-se no documento, dizem respeito a algumas práticas adoptadas pela CRESAP, assim como a algumas normas que estão previstas no regulamento daquela entidade e que suscitam dúvidas ao Provedor. É o caso da aplicação dos métodos de seleção e respetiva fundamentação, do direito de acesso à informação e do prazo de reclamação, que é de apenas cinco dias. Estes eram, de resto, alguns dos principais pontos onde incidiam as queixas que o Observador noticiou no início de julho, cujos candidatos reclamantes acusavam aquele organismo do Estado de falta de transparência, critérios escondidos e de organizar concursos feitos à medida.
“Violação de preceitos legais e constitucionais”
No documento enviado à CRESAP, a Provedoria afirma que o artigo 23.º, nº 2, do regulamento da Comissão, que diz que “os dados inscritos na plataforma eletrónica dos procedimentos concursais da CRESAP (…) são de caráter sigiloso”, e que, nessa lógica, “serão de conhecimentos público apenas os três nomes que integram a proposta de designação ao membro do Governo”, põe em causa “os direitos fundamentais de acesso à informação e aos documentos administrativos (…) e o direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva”.
Foi ao abrigo deste artigo – que foi acrescentado ao regulamento apenas em abril deste ano, já depois de feitas algumas reclamações – que os queixosos dizem ter sido impedidos de ter acesso a dados como a identidade dos opositores a concurso ou os resultados, discriminados por critérios e subcritérios, da classificação atribuída pelo júri.
“A posição assumida pela CRESAP é a de recusar o acesso a tal informação por considerar que se trata de documentos nominativos, impondo-se a proteção do direito à reserva da vida privada dos demais opositores a concurso”, escreve a Provedoria, acrescentando que este argumento é invalidado pela posição já expressa pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, que considera estes documentos “de interesse direto, pessoal e legítimo (…) para o requerente poder, de forma consciente e esclarecida, decidir se (e em que termos) há-de ou não impugnar o ato de designação”.
Um dos processos abertos na Provedoria diz respeito ao caso de Henrique Pereira dos Santos, arquiteto paisagista que, tal como o Observador noticiou, se candidatou em outubro a uma vaga para a presidência do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas. O candidato chegou a integrar o grupo de seis que chegou à fase de entrevista depois de passar na fase de avaliação curricular, mas não chegou a fazer parte dos três nomes escolhidos pela CRESAP – os três ‘finalistas’ enviados para o Governo, de onde sai depois o vencedor.
Em março, depois de conhecida a sua exclusão, Henrique Pereira dos Santos enviou uma reclamação ao presidente da CRESAP, contestando, entre outras coisas, que, ao contrário do que é dito no site da CRESAP, os subcritérios e o peso que cada parâmetro tem para a avaliação curricular do júri não aparecem discriminados no perfil pedido, e que certos conteúdos do seu concurso “não tinham qualquer relação com o cargo”. Na fase da entrevista, diz, não foi feita qualquer avaliação construtiva das suas competências para o cargo.
Provedoria pede “menor arbitrariedade”
Outra das críticas que a Provedoria faz ao modo de atuação da CRESAP diz respeito à seleção dos candidatos para a fase de entrevista. É que, por norma, o júri da CRESAP escolhe apenas seis candidatos para passarem a esta fase o que, por si só, representa um critério “arbitrário”. Para a Provedoria, todos os candidatos que, na fase de avaliação curricular, se mostrassem habilitados para o cargo deveriam passar para a fase seguinte, ao invés de limitar este grupo a apenas seis nomes.
“Os candidatos habilitados para o procedimento são, em princípio, todos aqueles que a este são admitidos que reuniram os requisitos legalmente exigidos para o efeito (…) Mas nesse caso, o universo dos candidatos habilitados não se limitará, em muitos casos, aos seis melhores classificados”.
Invocando que a lei prevista no Estatuto do Pessoal Administrativo (art. 19º, nº1) dita que “a realização de entrevistas de avaliação” se destina a todos os “candidatos habilitados para o procedimento”, a Provedoria sugere à CRESAP que “altere a norma regulamentar por forma a submeter a entrevista de avaliação todos os candidatos que obtivessem um resultado positivo em sede de avaliação curricular”.
Falta de fundamentação nas decisões da CRESAP
Teresa Maria Gamito, como o Observador noticiou, candidatou-se à vice-presidência da Agência Portuguesa do Ambiente, mas não chegou a integrar a short list a apresentar ao Governo. O motivo, disse a CRESAP por escrito, foi o facto de o júri ter considerado “o seu perfil menos adequado ao perfil definido para este cargo”. Segundo a Provedoria, este tipo de fundamentação “é genérica e abstrata, invocando-se meros juízos de valor ou considerações de tal modo abrangentes que podem ser aplicáveis a um número indefinido de situações”.
Formulações como “(…) por, em termos relativos, não ter conseguido no âmbito da sua intervenção demonstrar possuir as características do perfil necessárias ao desempenho do cargo”, tratam-se, diz a Provedoria, de “conceitos muito indeterminados” que não permitem avaliar quais foram os critérios envolvidos na apreciação feita pelo júri para chegar àquele juízo de valor.
Por isso, a Provedoria pede com clareza que, primeiro, “a avaliação curricular seja feita de tal forma que o candidato possa conhecer a avaliação que lhe foi atribuída relativamente a cada critério ou parâmetro de avaliação, bem como a avaliação atribuída aos demais candidatos” e, depois, que “seja elaborado para a entrevista um guião de avaliação que especifique os diversos parâmetros sujeitos a avaliação, bem como a valoração que deles pode ser feita pelo júri”.
Um último ponto apontado pela Provedoria à CRESAP diz respeito ao prazo de cinco dias, estipulado pela Comissão em regulamento, para os candidatos apresentarem reclamações. Segundo se lê na carta, a Provedoria também tem “reservas” quanto a este artigo, uma vez que vai contra o prazo geral de 15 dias previsto no artigo 162º do Código do Procedimento Administrativo.