“A criança ao meu lado caiu no chão e por um momento não sabia se tinha desmaiado ou se estava morta – então vi que estava a cobrir os olhos para que não tivesse de ver mais as ondas. Uma mulher grávida vomitou e começou a gritar. Abaixo do convés, as pessoas estavam a gritar pois não conseguiam respirar e os homens encarregados do barco desceram e começaram a agredi-los. No momento em que vimos um helicóptero de resgate, dois dias após o nosso barco ter deixado a Líbia com 250 passageiros a bordo, algumas pessoas já estavam mortas – lançadas ao mar pelas ondas ou sufocados no convés no escuro. É muito difícil pensar sobre isso, quase quatro anos depois, mas é importante que as pessoas entendam o que está a acontecer connosco e porquê.”

Este é o relato de Hakim Bello, um imigrante nigeriano que sobreviveu ao cruzamento do mar Mediterrâneo. Ele foi encontrado pelas autoridades marítimas italianas em 2011 e levado à ilha de Lampedusa, na costa do país, antes de imigrar a Berlim. A sua história foi divulgada esta segunda-feira pelo jornal inglês The Guardian no contexto dos incidentes com os três barcos em apuros no Mediterrâneo, com mais de 500 pessoas afetadas e, pelo menos, 23 mortos, segundo a Organização Internacional para as Migrações.

Bello conta que deixou a Nigéria para viver na Líbia em busca de melhores condições de vida e que durante algum tempo conseguiu viver tranquilamente no país. No entanto, após o início da guerra civil, sentiu-se ameaçado pelas forças rebeldes e foi forçado a voltar para o seu país de origem. Com a fronteira bloqueada, a solução que encontrou foi seguir para Itália, após conhecer algumas pessoas em Tripoli.

“Fomos levados até uma praia fora da cidade onde havia centenas de pessoas acampadas, todas à espera para entrar num barco. Alguns eram da Síria, Argélia e do Egito, mas a maioria era da África ocidental ou oriental. Muitos eram homens, mas havia mulheres e famílias com crianças pequenas também.”

E qual era o preço pela viagem? “Não havia preços fixos: dependia dos contactos que tinhas e do grau de desespero. Eu paguei 400 dinares libaneses [equivalente a 347 euros na cotação da época], o meu salário de uma semana”, diz. Bello explicou que o barco no qual viajou era uma antiga embarcação utilizada para a pesca, entregue pelos contrabandistas a pessoas que possivelmente não tinham experiência no alto mar. E assume que o seu maior medo eram as ondas. “O barco não foi construído para este tipo de viagem e inclinava cada vez que uma grande onda o atingia. Tudo que podia fazer era rezar – senti-me como se já estivesse morto”.

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Depois de alguns dias à deriva, um helicóptero encontrou o barco de Bello. Ele e os demais sobreviventes foram levados por um navio italiano à ilha de Lampedusa, na costa do país, onde foram “trancados num centro de acolhimento que parecia uma prisão”, segundo a sua descrição.

Após alguns dias foi enviado para uma pequena cidade no sul da Itália, onde viveu durante algumas semanas, antes de perceber que a crise económica já havia atingido o país e que milhares de italianos estavam a imigrar para o norte da Europa. Foi quando decidiu fazer o mesmo. “Fui para Berlim. Consegui algumas ofertas de trabalho, mas não podia ser contratado porque não tinha documentos. Fiquei sem dinheiro e fui viver na rua, num acampamento onde outros refugiados estavam a lutar pelo direito de viver e trabalhar na Alemanha”, explica.

O contacto com outros refugiados motivou Bello a participar do grupo “Lampedusa in Berlin”, que luta pela proteção e pelos direitos dos refugiados na cidade. Atualmente Bello tem um emprego na capital alemã, onde conheceu a parceira e com a qual tem um filho de três meses. “Quando olho para ele [o seu filho], penso no quanto gostaria que vivesse num mundo melhor e não tivesse que enfrentar as coisas que vivi. Quando me propus a fazer a viagem de Tripoli, não tinha ideia de como seria perigoso. Só tinha estado num barco uma vez na minha vida. Nem sequer sei nadar”.

Bello acredita que a Europa tem culpa pela morte de imigrantes no cruzamento do mar Mediterrâneo:

“Toda a Europa tem responsabilidade. É em parte devido às suas ações em África que as pessoas tiveram de deixar as suas casas. A Itália está a fazer muito para ajudar a salvar os refugiados que precisam de apoio. Países como a Grã-Bretanha, França, Bélgica e Alemanha pensam que estão longe e não são responsáveis, mas todos participaram na colonização. A Nato participou da guerra na Líbia. Eles são todos parte do problema”, conclui.

Texto atualizado dia 23/04 às 16h23 com o valor da cotação do dinar linanês.