“Oportunista!”. Carlos Mota Pinto, que no começo da Constituinte fora eleito líder do grupo parlamentar do PPD, estava a fazer um esforço para acabar o seu discurso – mas não paravam de o interromper com apartes violentos. Aí estava outro: “Tu insultas um partido inteiro.” E outro: “É incrível!” E outro ainda: “Que tristeza.” E mais um: “Onde a baixeza chegou…” De cada vez que tentava terminar uma frase, ouvia-se uma voz a atacá-lo. Quem estava a boicotar a sua intervenção não eram deputados socialistas, nem comunistas; não eram deputados centristas, nem sequer um dos indómitos representantes da UDP – eram os sociais-democratas. De um dia para o outro, Mota Pinto deixara de ser S. Pedro e passara a ser Judas Iscariotes.

Era difícil imaginar que as coisas fossem acabar daquela forma. Mota Pinto entrou para o PPD logo no começo, integrado no chamado “grupo de Coimbra”. Ganhou imediatamente popularidade e influência. Em Outubro de 1974, no primeiro grande comício do PPD, em Lisboa, inventou uma frase que ficaria marcada em pedra na memória dos sociais-democratas: “Hoje somos muitos. Amanhã seremos milhões!”

Aliás, só não se tornou líder do partido porque não quis. Em 1975, quando Sá Carneiro deixou temporariamente a liderança do PPD por doença, Mota Pinto foi candidato ao seu lugar. O objectivo era funcionar como a alternativa às duas tendências principais, a dos defensores de Sá Carneiro e a de Sá Borges, que ameaçavam dividir o partido. Mota Pinto desistiu a meio, mas o seu substituto nesse papel conciliador, Emídio Guerreiro, acabou por ser eleito.

Com o regresso de Sá Carneiro ao país e à liderança, no final de 1975, a relação de Mota Pinto com o partido entrou em modo roleta russa: ou ganhava tudo ou perdia tudo. Perdeu tudo. No célebre congresso de Aveiro, a 6 e 7 de Dezembro, o grupo dos críticos de Sá Carneiro (que incluía também, entre outros, Emídio Guerreiro, Vasco Graça Moura ou José Augusto Seabra) foi derrotado. Aliás, não foi apenas derrotado: foi assobiado, foi apupado e foi pateado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Agora, na Assembleia Constituinte, Mota Pinto apresentava a factura da sua humilhação: a 12 de Dezembro, subiu à tribuna como porta-voz de um grupo de 15 parlamentares que deixavam o PPD mas levavam consigo, debaixo do braço, o resto do mandato, tornando-se deputados independentes. Em poucos minutos, os sociais-democratas tinham perdido 18,5% da sua bancada. E tinham perdido o líder do seu grupo parlamentar. E tinham perdido a capacidade para ouvir uma frase até ao final.

“É mentira!”

Talvez isto explique a explosão de fúria em São Bento. Logo no começo do seu discurso, Mota Pinto anunciou que iria falar “com calma e serenidade”, mas seria um optimismo infundado esperar que essa “calma” e essa “serenidade” se espalhassem aos antigos companheiros de partido. Nem foi preciso esperar muito tempo pela reacção:

“Mota Pinto: Ao ter de tomar a dolorosa decisão de nos demitirmos do PPD, depois do escândalo do último congresso, que decorreu num ambiente de intolerância, condicionamento e paixão desenfreada, aprovando uma alteração dos estatutos…

Cunha Leal (PPD): Provocada por vós.

Emídio Guerreiro (Independente): É mentira! Foi provocada pelos senhores.

(Burburinho.)

Presidente: Os Srs. Deputados não travam diálogo.

Mota Pinto: … aprovando uma alteração dos estatutos que o torna um partido dirigido na prática por um só homem…

Vozes: Mentira.

(Burburinho.)

Mota Pinto: … fizemo-lo…

(Burburinho.)

Presidente: Srs. Deputados, façam o favor de não interromperem.

Uma voz: Seja ao menos um homem.

Outra voz: Isso é impróprio de si.

Presidente: O Sr. Deputado está no uso dia palavra.

(Tumulto.)

(Apupos.)”

Uma das palavras que Mota Pinto mais ouviu foi “traidor!” (com ponto de exclamação e tudo). Houve ainda a ameaça: “Candidata-te como independente e verás.” Mesmo segundo os hábitos da Constituinte, que já eram, enfim, bastante liberais, tratou-se de uma sessão caótica. Os funcionários encarregues de transcrever o que era dito no plenário devem ter ficado com calos nos dedos ao tentar acompanhar o ritmo do que se passava no hemiciclo. A uma velocidade impossível, foram escrevendo: “Vozes discordantes das bancadas do PPD.” E ainda: “Vozes tumultuosas provindas das bancadas do PPD.” E mais: “Vozes de protesto provindas das bancadas do PPD.” E numa ligeira variação: “Vozes tumultuosas de protesto do PPD.” E pior: “Trocam-se palavras impetuosas entre as bancadas do PPD e os Srs. Deputados independentes.”

A dada altura, até os adversários do PPD estavam incomodados. Várias “vozes” da bancada do PS pediram: “Já chega de roupa suja.”

Não chegava. Depois de acabar, com dificuldade, o seu discurso, Mota Pinto teve ainda que responder aos “pedidos de esclarecimento” dos deputados sociais-democratas. Mário Pinto, Fernando Amaral e Amândio de Azevedo tentaram encostá-lo às cordas, questionando a sua legitimidade para continuar na Assembleia como independente, uma vez que fora eleito com os votos do PPD. Melhor ou pior, Mota Pinto conseguiu chegar ao fim sem mostrar grandes contradições.

O inventor da “Assembleia da República”

Não era fácil vencê-lo recorrendo à retórica. Com apenas 39 anos, o jovem professor de Direito da Universidade de Coimbra era especialista em encontrar o caminho mais curto entre duas palavras. Quando algum tempo depois, em Março de 1976, a Constituinte se deixou prender num debate quente sobre qual seria o nome ideal para o futuro órgão legislativo, foi Mota Pinto quem descobriu a solução. Foram sendo sucessiva e veementemente rejeitadas as hipóteses “Assembleia Nacional”, “Assembleia Legislativa”, “Parlamento”, “Câmara dos Deputados” e “Assembleia dos Deputados” até que Mota Pinto sugeriu, com “audácia”, a formulação “Assembleia da República”.

Foi como uma iluminação. Os restantes deputados deram-lhe a a sua “adesão” imediata e o nome foi aprovado por unanimidade. O Presidente da Constituinte ficou tão sensibilizado com esta espécie de epifania que decidiu acabar de imediato os trabalhos: “Meus senhores, parece-me que depois deste acto emocional não levariam a mal ao Presidente que encerrasse a sessão, porque não vamos agora descer a meia dúzia de minúcias. Considero comovidamente encerrada esta sessão.”

Post scriptum: Só mais uma pequena volta numa história cheia de reviravoltas: poucos anos mais tarde, Mota Pinto regressaria ao PSD e, em Março de 1984, tornar-se-ia líder do partido. O “traidor” voltava a casa.

 

Fontes:

Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Marcelo Rebelo de Sousa”, de Vítor Matos