E ao terceiro dia, o calor. Os primeiros a chegar ocuparam todas as sombras do palco Super Bock para assistir à apresentação de Manel Cruz (17h30), das três atuações portuguesas, seguramente, a mais esperada. A jogar em casa, o músico apresentou-se com os Estação de Serviço (António Serginho, Nico Tricot e Eduardo Silva), com cabeça, tronco e membros. A plateia estava composta e sem euforia aparente, mas a banda (que é um projeto isolado, como esclareceu Manel Cruz nesta entrevista) rapidamente fez saltar memórias antigas, através de canções dos Pluto, Foge Foge Bandido e Supernada, mas também com temas novos. Fechou com “Ovo” e, apresentação cumprida, deixou em muitos água na boca. O fenómeno Manel Cruz não fica por aqui.

À mesma hora, o palco ATP recebeu a dupla Xylouris White (o grego Giorgos Xylouris e o australiano Jim White), num regresso à cidade do Porto – estiveram no Serralves em Festa, no ano passado. Tocaram para pouca gente, alaúde e bateria numa mistura algo hipnótica e bem conseguida de melodia e experimentalismo. São virtuosos nos instrumentos, por isso cativaram quem ali esteve para receber um cheirinho (mais um) de world music no NOS Primavera Sound. Muitos aplausos.

Música para gente sentada a trabalhar para o bronze. Com o bom sol chegou também o pó e o cansaço acumulado fez com que todas as pausas fossem pretexto para esticar as pernas (e o corpo, muitos dormiam).

9 fotos

Mas tal como o sol, pôs-se também o descanso sonoro. Foi o dia mais forte no palco ATP. A The Thurston Moore Band (18h45) atuou perante uma colina repleta.  Pode mesmo dizer-se que esteve mais público ali que no palco principal, onde à mesma hora atuava o menos popular (entre nós) Baxter Dury, o filho de Ian Dury. Fica-se com a sensação que a troca de palcos teria sido a jogada óbvia. O ex-guitarrista dos Sonic Youth é uma presença habitual entre nós (atua outra vez este domingo, na ZDB em Lisboa), a música que faz e toca vende-se pela história que carrega, mas também pelo sucesso indiscutível da carreira a solo. Simpático, voltou ao Porto com os habituais longos instrumentais, guitarras quase no limite da distorção, uma imagem de marca que se vê e se sente. E quem gosta volta sempre.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As variantes mais carregadas do rock foram a pauta que marcou o alinhamento deste terceiro e último dia do NOS Primavera Sound. Às 19h50 o rock esgalhado dos Foxygen invadiu um dos palcos grandes e mais espaço houvesse, teria sido deles. Foi uma atuação interativa, teatral (três bailarinas coquete completavam a peça) e barulhenta. O alinhamento estava ensaiado ao milímetro e o vocalista Sam France foi uma criatura bem vestida com pose rebelde. Bebeu pela garrafa e queixou-se de ter acabado ontem com a namorada. Todas as canções têm uma história e estas têm de ser espetaculares. Com o cair do dia chegou o ar frio da nortada, que pouco se fez sentir no palco Super Bock.

Às nove da noite, Damien Rice entrou com a guitarra. No maior dos palcos, apenas ele e um tripé com dois microfones, de frente para muitos milhares que ali estavam a saudar um ícone da folk irlandesa. Dois microfones? Um deles estava ligado a um processador de efeitos, gerido por um pedal que grava loops (repetições) de palavras ou frases. Depois, foi juntando as peças até criar um puzzle sonoro de grandes dimensões, música em crescendo. Sozinho em palco, o one man show deu bem conta do recado. É preciso talento para gritar e Damien Rice mantém a voz afinadíssima e com ela foi capaz de cativar milhares de pessoas, foi uma ilha de tranquilidade numa tarde/noite ruidosa, o tom da trunfo seguinte.

Minutos antes da hora, já no lusco fusco (21h40), largas centenas de pessoas seguiam pelo corredor que abria caminho até ao palco ATP. A chamada era pesada no estilo e na história: os germânicos Einstürzende Neubauten são um nome de peso na história do rock industrial. Formados em 1980, mantém uma aura que impõe respeito. Blixa Bargeld entrou solene e com um cumprimento em português. Depois, a música começou macia e em inglês, com o apropriado “The Garden”, cuja letra diz: “You will find me if you want me in the garden, unless it’s pouring down with rain”. Mas o que choveu a seguir foi rock industrial da melhor cepa, numa canção nova já a mudar o chip para a língua alemã, cuja fonética parece ter sido feita para aquele estilo (ou o inverso). E lá estavam as latas a produzir barulho; e um tubo de PVC enorme, que ocupava quase metade do palco. O som pesado não feria, estava muito bem equalizado, o que se notou particularmente na distribuição das vozes.

Os Einstürzende Neubauten têm 35 anos de carreira mas foram os únicos a encontrar no momento uma fonte de receita extra, uma jogada de marketing só possível quando existe imaginação, arrojo e sobretudo, muita confiança no trabalho que se faz em palco: assim que terminou a atuação, a banda pôs à venda a respetiva gravação em formato digital. À semelhança das torres de CDs capazes de fazer cópias em série, tinham ali instalada uma máquina que copiava um ficheiro áudio para duas dezenas de pen drives em simultâneo. Venderam 60 em poucos minutos, a 20 euros cada. Nesta época tão distante dos anos 1980, em que a música se compra cada vez menos, esta ação demonstra de que modo a experiência “ao vivo” pode gerar outros rendimentos. Basta fazer as contas.

[jwplatform 48CBvg27]

Uma avalanche de pessoas assistiu a um dos espetáculos mais interessantes deste último dia do festival. Os norte-americanos Death Cab for Cutie apareceram em cena às 22h10, Ben Gibbard fez questão de se apresentar e partilhou uma das razões porque estava satisfeito por estar ali. A história resume-se assim: em 2012, a banda constava do alinhamento na primeira edição do Primavera Sound no Porto, mas minutos antes da hora agendada o vento abriu a tela do palco principal que meteu água, literalmente. O atraso na reparação da estrutura foi grande e isso obrigou ao cancelamento do espetáculo. O infeliz episódio não foi esquecido. Talvez por isso (talvez), a banda fez questão de percorrer praticamente toda a discografia, não se concentraram apenas no novo “Kintsugi”. Foram generosos. Abriram a sessão com o fortíssimo “I Will Possess Your Heart” (vídeo) e terminaram com “Transatlanticism”. Os ouvidos mais viciados terão sentido falta do rigor da produção em estúdio, ainda assim a banda foi competente nos arranjos e incansável na dedicação com que se apresentaram ao público. Foi merecida, a ovação final.

Outra vez o palco ATP (23h10): a dupla britânica The KVB criou uma barreira sonora impenetrável, a mais densa a que assistimos. Uma parede de “noise” pela qual nenhum outro ruído foi capaz de atravessar, som negro no limite da distorção, guitarra e sintetizador com o reverb no máximo. Um registo sombrio e especial que merece este breve apontamento. Faltaram pernas para tanta oferta. Uma das maiores forças do festival foi, ao mesmo tempo, uma grande fraqueza: o público teve de lidar com a frustração implícita no ato da escolha.

11 fotos

Os britânicos Ride (23h20) foram um dos nomes mais anunciados no cartaz, mas a atuação desta noite não passou de competente. Tocaram bem mas não moveram a multidão que muitos esperavam. Rock alternativo limpinho, shoegaze quase nem vê-lo.

Foi mais tarde (00h35), ao lado desse palco principal, que entrou em cena uma figura completamente destravada chamada Dan Deacon. Controlou a caixa de ritmos/efeitos com muito suor, ao lado de um baterista ligado à corrente, os dois produziram uma batida eletrónica que apanhou muitos (os curiosos) de surpresa. O norte-americano Daniel Deacon pecou, talvez, pelo excesso de conversa, embora não se lhe possa retirar o arrojo e a graça. Saudou Steve Albini por este ter dito que o os direitos de autor limitam a comunicação entre as pessoas, pediu aplausos às pessoas que passaram horas a construir aquela magnífica estrutura de palco e a todos os que limpam o chão ao final do dia. Destravado, mas genuíno.

A Dan Deacon perdoou-se o facto de ter atrasado em cinco minutos a entrada em palco (1h40) dos Underworld, a dupla britânica formada em 1980 e que regressou ao Porto para uma celebração especial: os 20 anos do álbum “dubnobasswithmyheadman” (1994), uma peça fundamental na história do grupo. Karl Hyde fez questão de o dizer, logo no início. “1994. An album that change our life. Hope You like it.”

Palco a negro, despido, mas com um magnífico desenho de luz. A cada primeiro minuto de cada tema foi apresentado o título, letras brancas, simples. Rick Smith manobrou a enorme consola, Karl Hide cantou e dançou. Certamente que muitos dos milhares ali presentes nunca tinham ouvido “dubnobasswithmyheadman”, mas essa ausência de memória não reprimiu o impulso da dança. É um disco com 20 anos mas não se nota (muito) que o tempo tenha passado por ele. As memórias de Karl Hyde só ele as conhece, mas a avaliar pela dança sorridente de olhos fechados, são certamente a de um tempo feliz.

Este foi o último de três dias intensos que muitos vão guardar na memória. No que toca à música foi dos mais difíceis, não houve pernas para acudir a tantas dúvidas. Foram feitas opções, uns minutos aqui e ali, pouco ou nada foi apreciado por completo mas ficou a confirmação de que oportunidades destas, vão ser cada vez mais do tamanho das frustrações. O NOS Primavera Sound está a crescer, logo a tendência é para piorar (no bom sentido).

Três notas finais. Este ano o espaço estava mais bem distribuído, a “tenda VIP” mudou para uma das laterais e abriu espaço, ao centro, para outras estruturas e para mais público. Uma manobra necessária, porque foi batido, outra vez, o recorde de entradas: 77 mil pessoas de 40 nacionalidades passaram pelo Parque da Cidade. A quinta edição do NOS Primavera Sound já tem data marcada: 9, 10 e 11 de junho de 2016. Lá estaremos.