O Governo era “mau”. A maioria estava “podre”. O risco era de “populismo”. E havia “muitos disparates”. Há dez anos, Jorge Sampaio dissolveu o Parlamento para que Pedro Santana Lopes deixasse de ser primeiro-ministro. Hesitou na altura de lhe dar posse e precisou de apenas cinco meses para se arrepender e tentar emendar o erro. Estes dois homens, que literalmente não se podiam ver à frente, fizeram as pazes e esta terça-feira vão assinar, em Lisboa, um memorando que permite a atribuição de dez bolsas de estudo, no valor de cerca de 50 mil euros por ano, a jovens estudantes sírios.
Sampaio e Santana protagonizaram um dos episódios mais tensos da história política recente. O social-democrata foi o escolhido por Durão Barroso para lhe suceder quando decidiu abandonar o lugar de primeiro-ministro para ser presidente da Comissão Europeia. A história começou logo com desconfianças que se foram acumulando e que, nos anos que já distam, acabaram por ser contadas pelos próprios.
“Eu queria ganhar tempo e fiz alguns contactos. Mas ninguém apresentou alternativas ao nome de Pedro Santana Lopes. (…) Não houve indecisão, como por vezes se diz, mas uma tentativa de esgotar as hipóteses”, contaria mais tarde em entrevista ao DN Jorge Sampaio, que preferia nomes como Manuela Ferreira Leite, Marques Mendes ou Marcelo Rebelo de Sousa. Em vão, o PSD fazia o que Durão queria e indicou apenas Santana.
“Durão Barroso disse mais [sobre a sua substituição]: que Jorge Sampaio perguntou pela possibilidade de realização de um congresso que escolhesse a nova liderança, ideia aliás coincidente com a posição defendida por Marques Mendes e por outros que se opunham à minha nomeação”, revelou, por seu lado, Santana Lopes no livro “Perceções e Realidade”. “Foram-me passando essas informações, que davam conta de um permanente oscilar entre a orientação de nomear um novo Governo e a de convocação de eleições”, diz.
Contrariado, Sampaio deu posse a Santana com um discurso que foi uma espécie de guião para aquele Governo. Hoje, reconhece que foi um erro, mas na altura foi a única maneira que encontrou para tentar controlar um Governo que temia que adotasse medidas “populistas”. “Era tal a minha ansiedade que fui mais longe do que devia. Eu tinha receio que o que se seguisse fosse suficientemente populista para afetar o normal processo eleitoral que, mais tarde ou mais cedo, viria a acontecer. Falei das finanças, mas na minha interpretação normal dos poderes presidenciais talvez não coubesse aquilo que eu disse”, explicou, em entrevista ao Público, em 2010, o ex-Presidente da República.
Sampaio estava preocupado. “A maioria estava já podre. E o CDS não aceitava bem Santana Lopes. E isso percebia-se. Não eram só os disparates, a gente tem de viver com disparates, nestes últimos anos também houve muitos disparates, com certeza. Isso não é motivo para dissolver. Agora, percebia-se que era preciso uma nova Assembleia. O primeiro-ministro foi-se embora e, mesmo não sendo a nossa uma democracia de primeiro-ministro, foi escolhida uma pessoa que era muito controversa e, portanto, naturalmente o povo tinha de se pronunciar outra vez”.
Para Santana, foi um golpe de Estado, ou como lhe chamou, foi vítima de um “golpe nas instituições” perpetrado pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio. Em novembro do ano passado, no dia em que fazia precisamente dez anos do momento em que o então Presidente lhe comunicou a dissolução do Parlamento, Santana aproveitou a efeméride para comentar o assunto no Facebook. Segundo o social-democrata, isso foi “o contrário do que me dissera na véspera” – “Senhor primeiro-ministro: era o que faltava eu dissolver o Parlamento por um ministro se demitir”.
Esta terça-feira, Santana, enquanto provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e Sampaio, na qualidade de presidente da Global Platform for Syrian Students (Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes Sírios), assinam um memorando que permite a atribuição de dez bolsas de estudo, no valor de cerca de 50 mil euros por ano, a jovens estudantes sírios, inscrições nas universidades para licenciaturas e mestrados/doutoramentos, bem como a atribuição de residências para jovens estudantes sírios.
Ao longo dos anos, os dois cruzaram-se de vez em quando em cerimónias oficiais e nunca se deixaram de cumprimentar de forma fria. Hoje, a relação será curial. Um momento público de maior aproximação aconteceu em dezembro quando estiveram a conversar, perante os olhares públicos, no almoço dos 90 anos de Mário Soares na FIL.