“Sonhar acordado” é comum. Já todos fugimos para o mundo da fantasia enquanto presos numa conversa ou tarefa aborrecida. Segundo estudos da Psychology Today, cerca de 96% das pessoas perdem-se temporariamente em sonhos durante o dia.
Contudo, há pessoas para quem sonhar acordado é um problema de saúde. São viciados nos seus sonhos e sofrem de uma condição chamada Maladaptive Daydreaming (MD), inglês para sonhos compulsivos ou mal-adaptados. O conceito foi cunhado pelo professor Eli Somer, doutorado em psicologia clínica, e refere-se à atividade de fantasiar excessivamente de modo a ignorar tarefas sociais e básicas do dia-a-dia. Difere da esquizofrenia porque os afetados sabem que as realidades criadas são falsas.
Um distúrbio com raízes em traumas da infância: sinais a ter em atenção
O distúrbio tende a começar na infância como resultado de uma experiência traumática. Todos os casos estudados por Somer tinham sido vítimas de alguma forma de abuso enquanto crianças. Uma das participantes tinha sido molestada pelo avô e outro dos pacientes descreveu o pai como excessivamente violento. A rede online NoBullying.com também relata casos de crianças que desenvolvem o hábito de sonhar acordadas compulsivamente para se refugiarem das provocações de que são alvo.
Apesar do distúrbio controverso apenas ter começado a ser explorado em 2002, Freud já tinha algumas ideias sobre o assunto. O psicanalista austríaco sugeriu que sonhar acordado representava uma solução a um conflito ‘escondido’ de um indivíduo. Isto vai de acordo com os resultados de um estudo da Universidade de Fordham nos Estados Unidos, onde os pacientes descreviam o vício como uma forma de fugir ao stress e à dor através de fantasias controladas. Alguns dos temas recorrentes nos sonhos são o Eu idealizado, a violência, o controlo, a busca pelo companheirismo, a conquista do poder e a salvação.
Casos Reais – Como é que sonhar pode impedir de viver?
O vício não é sempre um mecanismo de defesa e há quem desconheça as origens do problema. Num artigo de 2014, a Scientific American conseguiu falar com indivíduos que acreditam sofrer da condição. Rachel Stein disse à revista americana que o problema começou em criança ao recriar episódios dos programas de televisão que via. Andava em círculos durante horas, enquanto tecia histórias sobre as suas personagens preferidas e era sempre a protagonista. Eventualmente, o irmão avisou-a que era estranho vê-la a andar à roda na rua e que devia parar.
A história de Cordellia Rose é semelhante. A mulher de 35 anos é uma das grandes porta-vozes do distúrbio, com um canal no YouTube onde partilha as suas experiências. A americana explica a dificuldade em deixar o hábito de sonhar acordada porque, “é como se fosse uma alcoólica com um suporte ilimitado de álcool onde quer que vá”. Vários psicólogos que estudam esta condição notam que os indivíduos com este problema demonstram comportamentos idênticos aos de toxicodependentes.
A OMS não reconhece a condição
É difícil encontrar quem use o nome verdadeiro para falar deste problema. Existe um grande estigma em estar associado a uma “doença inexistente” que não é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No inquérito feito por Bigelsen e Schupack da Universidade de Fordham, os intervenientes admitiram ter vergonha do distúrbio, recorrendo a grandes esforços para manter o comportamento um segredo.
Várias petições têm sido criadas para promover o conhecimento da condição através do website Change.org, mas as assinaturas continuam a ser insuficientes. Numa das páginas pode-se ler:
Precisamos de ajuda, mas é difícil que um terapeuta nos leve a sério. Pouca pesquisa tem sido feita sobre este distúrbio e sentimo-nos isolados, como se fossemos aberrações. A comunidade médica tem de perceber que estamos aqui.
Atualmente não existe medicação para estas pessoas, mas alguns afetados revelam que fármacos utilizados para tratar transtornos como o TDAH (Transtorno de Défice de Atenção e Hiperatividade) e o DOC (Distúrbio Obsessivo Compulsivo) ajudam. Outras recomendações mais seguras são evitar gatilhos conhecidos como músicas que provocam as fantasias, registar sonhos recorrentes num diário, escapar de tarefas monótonas e descobrir redes de apoio. Wild Minds é a rede social mundial para quem sofre deste distúrbio e quer partilhar a sua história. A hashtag #MaladaptiveDayDreaming também é popular no Twitter para encontrar outras pessoas na mesma situação.
"@SincerelyTumblr: literally all I do is daydream about impossible scenarios" #MaladaptiveDaydreaming
— Hey Rach (@LiaFern) August 20, 2013
I tend to stick out. People notice me, so let me be noticed for doing something good. #MaladaptiveDaydreaming #ShedTheShame
— FroidDansLeCoeur (@FrostyPixie) December 20, 2014
https://twitter.com/kyrietompkins/status/607195409988128768
SINTOMAS COMUNS:
- Sonhos excessivamente detalhados com narrativas complexas;
- Dificuldade em adormecer;
- Movimentos repetitivos (balançar, andar em círculos, tremer) ao sonhar acordado;
- Esquecer funções básicas, como fazer refeições regulares, para sonhar;
- Ligação emocional às personagens criadas nos sonhos;
- Expressões faciais e gestos espontâneos em reação aos sonhos;
- Ter livros, filmes e música como gatilhos que desencadeiam a atividade;
- Falta de atenção e outros sintomas semelhantes ao distúrbio TDAH (Transtorno de Défice de Atenção e Hiperatividade).