Estou em casa. Reclusa mais uma vez: covid. Não saio desde domingo. Vejo a chuva e as rajadas de vento pela janela.

Entre a cama e o sofá, a vida reduz-se a unidades mínimas de competência e a porta do mundo só se abre para os sonhos da febre ou para a vígil televisão – hoje já consegui voltar a ler e a escrever; a fazer ínfimas coisas: lavei flores.

Na mesa de cabeceira tenho um monte de livros, em cima dos quais, a primeira edição de Fidelidade, de Jorge de Sena, um presente que me dei, em 2017, quando o encontrei ali, em Campo de Ourique, no alfarrábio. Comprei-o e ao Metamorfoses que ofereci a um amigo. Ele pô-lo no saco onde estava o chapéu e eu disse-lhe: cuidado, não se vá transformar em tigre e espalhar o pânico na sala. E rimos ambos. Talvez estes pequeníssimos mosaicos de vida sejam o que fica de tudo quanto parte – e ao fim, é possível que sejamos, com sorte, um pequeníssimo mosaico na vida de alguém. Mas dizia, antes de a memória me pregar esta associativa partida, hoje consegui fazer ínfimas coisas. Então. Lavei flores – há verbos de inesperada conjugação.

Na mesa de cabeceira, atrás do monte de livros, tenho uma jarra e um ramo de rosas encarnadas. Em venoso sangue vermelho para compor a aliteração em bouquet. Não gosto de flores artificiais. Nunca quis ter flores artificiais. Mas tenho estas rosas com pétalas em tecido de má fibra. Lavei-as, não murcham, mas guardam pó e eu sou alérgica. Culpo o sonho.

Conto. Estávamos em 2015. Ia a caminho do ginásio quando, ao passar pela esplanada voltada para o jardim onde passava todos os dias, me recordo do sonho que havia tido. No sonho, ao lado desta esplanada havia uma loja chinesa. Enorme. Daquelas que vende de tudo. Ao fundo de um corredor estreito, à esquerda, num espaço amplo, prateleiras. Em baixo, no chão, baldes cheios de rosas. Mais acima, numa prateleira, jarras de vidro. Explicam-me no sonho, quem não sei, que é preciso cortar todos os botões, pois são rosas fechadas, e ficar só com as rosas abertas, colocá-las na jarra e a ambas na mesa de cabeceira. Desta forma, o meu propósito seria atingido. Travo a fundo. Não no sonho, à frente do jardim. Estaciono e procuro a loja na certeza de que não estaria lá loja alguma. Porém estava. Enorme. Não se antevia tal da entrada. Depois de atravessar um mar de roupa na primeira sala, passo um corredor e chego à segunda sala. À esquerda, baldes de rosas, mas de plástico. E, de facto, jarras. Compro todas as rosas de sanguínea aliteração e uma jarra. E, adeus ginásio, volto para casa.

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Enfim, cortar botões de plástico presos por arames, não é trabalho fácil para uma tesoura de cozinha. Mas cumpri as ordens oníricas: quem é que na sua perfeita irracionalidade deixaria de cumprir tal ditame? Afinal, tratava-se do propósito da existência, nada menos do que isso. E desse dia em diante, tive a jarra de rosas na mesa de cabeceira. Mudei de casa e elas a reboque na mudança. Hoje, como disse, lavei flores.

E hoje consegui ler e tive esperança – para uma pessimista é revolucionário: a Polónia regressa à democracia. E há gente que pensa por caminhos fora do mapa.

Devemos ser alguns com flores plástico na mesa de cabeceira.

PS: continuo na senda da esperança, o Prémio Sakharov, acabo de saber, foi atribuído a Masha Amini e ao movimento «Mulher, Vida, Liberdade».