Com 133 protestos agendados nos 28 Estados-membros da União Europeia (UE) e mais de duas dezenas um pouco por todo o mundo, incluindo nos próprios Estados Unidos, o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento entre a União Europeia e os Estados Unidos da América (TTIP) é tudo menos um assunto resolvido e, este sábado, o descontentamento dos europeus sai à rua. Quem organiza estes protestos alega que, para além da “forma sigilosa” como as negociações estão a ser conduzidas, há o perigo da “uniformização dos padrões de produção e consumo agroalimentar” dos dois lados do Atlântico, o que baixaria a qualidade dos alimentos que são consumidos no Velho Continente. A Comissão Europeia lamenta as “mistificações” envolvidas nos protestos.

Na semana em que as negociações entre a Comissão Europeia, mandatada pelos 28 Estados-membros, e os EUA vão para a 11ª ronda de encontros, a organização STOP TTIP, que agrega mais de 500 associações, ONG e movimentos a nível europeu que se opõem ao tratado, promove uma semana de ação que começa já este sábado com várias manifestações. Espera-se que o maior protesto aconteça em Berlim, como relatou ao Observador Michael Efler, que faz parte desta organização. “Não conseguimos antever o impacto destas ações, mas sabemos que quanto mais as pessoas sabem do TTIP, mais se mostram contra este acordo”, afirma o ativista. Os países do centro da Europa, nomeadamente a Alemanha, Áustria e Luxemburgo têm sido os motores dos protestos até agora e são também os países onde o debate público é mais aceso.

Apesar de 60% dos portugueses afirmarem ser favoráveis a este acordo – segundo o Eurobarómetro levado a cabo no segundo semestre de 2014 -, um pouco acima da média europeia (58%), haverá este sábado uma manifestação em território nacional. Terá início no Rossio, por volta das 13h. Mas aqui ao lado, em Espanha, preparam-se mais de 30 iniciativas, incluindo nas ilhas.

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A Oikos, uma organização que promove a cooperação e desenvolvimento em Portugal e em países africanos e sul-americanos, faz parte da plataforma portuguesa NAO AO TTIP e considera que este acordo de livre comércio, que tem como principal objetivo a abolição de barreiras tarifárias entre os dois continentes leva à uniformização “pelo mínimo denominador comum”.

“Uma vez que a Europa tem padrões de produção e de consumo muito mais elevados (e que levaram décadas a ser construídos e conquistados em defesa do consumidor, da saúde pública e do ambiente) a uniformização vai implicar que passemos a regularmo-nos pelos padrões norte americanos que permitem, por exemplo, a produção e consumo de alimentos geneticamente modificados, produção animal com hormonas”, afirma ao Observador Pedro Krupenski, diretor de desenvolvimento da Oikos.

Cecilia Malmstrom, comissária europeia para o comércio, já disse publicamente que não haverá introdução de carne geneticamente modificada na União Europeia, mas as vozes dos ativistas têm-se sobreposto a Bruxelas. Fonte oficial da Comissão disse ao Observador que nem sempre o debate feito na Europa sobre o TTIP é esclarecedor. “A oposição ao TTIP mostra a vitalidade democrática existente na União Europeia, mas a discussão fica muitas vezes refém de mistificações e incompreensão”, afirmou um dos porta-vozes oficiais da comissão liderada por Jean-Claude Juncker.

Três milhões de assinaturas contra o quê?

Mesmo depois de a Comissão Europeia ter vindo esclarecer que a petição contra o TTIP, organizada um pouco por toda a Europa, não tinha validade para integrar uma iniciativa de cidadania europeia – uma ferramenta oficial da UE disponível a todos os seus cidadãos e que permite levar a Comissão a legislar sobre determinado tema -, a STOP TTIP não parou os seus esforços. Esta semana entregou mais de três milhões de assinaturas recolhidas um pouco por toda a Europa. A Comissão justificou a recusa com o facto de a iniciativa servir para legislar e não para travar a negociação de tratados internacionais.

Os principais signatários foram mesmo recebidos pelo gabinete do vice-presidente Frans Timmermans na quarta-feira e a Comissão não ficou “indiferente” à iniciativa. “O maior impacto que tivemos até agora foi esta petição onde uma rede de 500 organizações afirmou estar disposta a continuar a lutar contra o TTIP. Isto não seria possível sem a campanha. Foi possível chegar a milhares de pessoas e ter impacto nos meios de comunicação social. E sim, excedeu as nossas expectativas porque foi possível conseguir um número razoável de assinaturas em 23 países, incluindo em Portugal. Apesar disto, não esperamos uma reação no curto prazo por parte das instituições europeias”, afirma Michael Efler da STOP TTIP.

Em Portugal, a petição ultrapassou os 15 mil signatários necessários para considerar que haja quórum no país e reuniram-se mais de 20 mil assinaturas.

A Comissão considera que “tem feito esforços de mais transparência e tem mantido uma política de portas abertas” em relação às críticas das várias organizações. O TTIP e a sua conclusão são um tema prioritário na agenda dos cinco anos do mandato de Juncker e o próprio presidente prometeu mais acesso aos documentos da negociação quando tomou posse. Agora, após cada ronda negocial com os Estados Unidos, a Comissão disponibiliza os temas tratados nas reuniões num site criado especialmente para acompanhar o desenvolvimento deste tratado. Mas isto não parece ser suficiente.

“Apesar de o processo de negociações estar a decorrer com maior abertura do que desde o início, está longe de ser transparente. Sob o pretexto de que “o segredo é a alma do negócio” (palavras do próprio Junker a respeito das negociações do TTIP) têm sido muito cautelosos na informação que passam para fora. Às negociações apenas têm acesso (do lado europeu) algumas figuras indigitadas pela Comissão Europeia e muitas empresas multinacionais. Nenhuma organização da sociedade civil, nem mesmo como observadora, tem acesso”, alega Pedro Krupenski, diretor de desenvolvimento da Oikos.

A estes pedidos de maior transparência juntam-se também vários eurodeputados que pedem acesso à documentação que está a ser discutida entre EUA e UE. No entanto, e devido ao facto de a negociação ser feita a dois, o risco de fuga de informação que não está completamente acordada ou fechada, faz com que tanto Washington como Bruxelas temam fugas de informação. Recentemente, a comissária do Comércio veio dizer publicamente que espera ter o esqueleto da estrutura do TTIP, fechado ainda no fim deste ano, embora o tempo comece a escassear, assim como o apoio europeu.

Obama pode já não assinar este acordo

A meta para as negociações seria o fim do mandato de Barack Obama, mas os esforços para unir um mercado que no total abrangerá mais de 800 milhões de consumidores está a mostrar que o trabalho envolvido pode ainda durar anos. Não só o TTIP tem enfrentado oposição dos cidadãos da UE, como tem levado a Comissão a repensar alguns mecanismos utilizados neste tipo de tratados.

Um dos principais (e mais criticados) é o mecanismo de resolução de disputas entre Estados e investidores (ou ISDS) que permite a empresas estrangeiras processar os Estados onde as suas filiais estão instaladas por discriminação concorrencial através de tribunais internacionais estabelecidos especificamente para o efeito. Este mecanismo não deverá ser abandonado, mas a Comissão estará a repensar este modelo de modo a torná-lo mas legítimo aos olhos da opinião pública e depois de este ter travado legislação nacional em países como a Austrália.

Um ponto que pode acelerar o TTIP é a conclusão do TPP, ou Acordo de Parceria Trans-Pacífica que vai estabelecer o comércio livre entre os EUA e 11 países do Pacífico (Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietname). Este acordo já estava a ser negociado antes do TTIP, mas a sua conclusão vem concentrar os esforços norte-americanos no acordo com a Europa.

Mas a Comissão não consegue ganhar terreno em todas a frentes. Desde 2014 que o chanceler austríaco Werner Faymann se tem pronunciado publicamente contra o TTIP, embora o seu país tenha permitido à Comissão negociar o acordo. “Já olhámos muitas vezes para o outro lado, quando grande empresas criaram o seu próprio mundo a nível global e aproveitaram para fugir aos impostos. Foi isso que nos levou à crise de 2008”, disse o austríaco no final do ano passado, tendo reforçado, em maio de 2015, que o TTIP afetará o futuro dos filhos de todos os austríacos e por isso é preciso assegurar que multinacionais não ficam “com direitos especiais”.

Apesar de ser a voz dissonante na Europa, a Comissão admite ao Observador que “vários Governos nacionais não se empenham tanto quanto seria necessário no debate interno em cada país”. Nos Estados-membros onde este tópico se generalizou na opinião pública, a Comissão reforçou os seus gabinetes nacionais com peritos em comércio internacional que intervêm em debates e esclarecem a opinião pública.

Mas se uns países debatem a mais, noutros, como em Portugal, o tema não parece suscitar interesse e poucos partidos tinham medidas específicas relacionadas com o TTIP no seu programa eleitoral, embora Portugal seja um dos países mais atentos às negociações e, segundo vários estudos, um dos que conseguirá tirar partido mais rapidamente das vantagens do fim das barreiras aduaneiras. “Muito poucos têm sido os políticos de turno que têm abordado estas temáticas. Muitos manifestam, aliás, algum desconhecimento sobre o TTIP. Ao longo deste ano, dos poucos momentos em que este tema andou na agenda política e mediática foi quando o secretário de Estado Bruno Maçães subscreveu, com outros 13 dirigentes políticos europeus, uma carta ao Claude Junker a defender a inclusão do ISDS no TTIP. Temos tido, quer a nível nacional quer europeu, algum feedback positivo de alguns decisores políticos quase todos de esquerda, invariavelmente contra o TTIP”, afirmou Pedro Krupenski da Oikos.