A regra dos seis meses. O Presidente da República está impedido pela Constituição de dissolver a Assembleia e de convocar eleições antecipadas na reta final do seu mandato e nem o próximo Presidente o poderá fazer no imediato porque o Parlamento não pode ser dissolvido nos primeiros seis meses a contar da sua eleição. Para descalçar esta bota, há quem peça uma revisão constitucional relâmpago. Mas vários constitucionalistas ouvidos pelo Observador torcem o nariz a esta hipótese.
A ideia foi lançada pelo socialista Álvaro Beleza, na Rádio Renascença: a verificar-se a impossibilidade de Pedro Passos Coelho governar e a recusa de Cavaco Silva em dar posse a um eventual Governo de António Costa, o único passo possível seria dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas. O dirigente socialista propunha, por isso, uma revisão constitucional relâmpago “para desbloquear isto”.
O que diz o artigo 172º da Constituição?
1. A Assembleia da República não pode ser dissolvida nos seis meses posteriores à sua eleição, no último semestre do mandato do Presidente da República ou durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência.
2. A inobservância do disposto no número anterior determina a inexistência jurídica do decreto de dissolução.
3. A dissolução da Assembleia não prejudica a subsistência do mandato dos Deputados, nem da competência da Comissão Permanente, até à primeira reunião da Assembleia após as subsequentes eleições.
Ao Observador, Vital Moreira mostrou-se contra essa solução e explicou porquê: “Retirar esse limite ao poder de dissolução parlamentar do Presidente [o tal prazo de seis meses] equivaleria a reforçar extraordinariamente o poder do Presidente da República de rejeitar soluções de governo que lhe não agradem“.
Mais, acrescenta o constitucionalista: “Ora, sendo eu partidário de um sistema de governo parlamentar mais genuíno, preferiria, ao invés, eliminar o poder de livre dissolução parlamentar do Presidente. Sou absolutamente contra o reforço dos poderes presidenciais em matéria de sistema de governo“. Nesse sentido, explica Vital Moreira, “o PS não pode defender posição diferente. Do mal, o menos. Se o Presidente da República tem um poder próprio de dissolução parlamentar discricionário, ao menos que esse poder seja temporalmente limitado“.
Como explica Vital Moreira, o limite temporal para a dissolução da Assembleia foi introduzido na revisão constitucional de 1982, aprovada pela Aliança Democrática e pelo Partido Socialista. Mas já na primeira versão da Constituição (1976), o “Presidente da República não podia dissolver a Assembleia por efeito da rejeição do programa de governo, salvo no caso de três rejeições sucessivas”. “O propósito era o mesmo”, continua Vital Moreira: “Limitar o poder de dissolução parlamentar do Presidente da República imediatamente a seguir a umas eleições parlamentares“.
No livro O Pecado Original, de Santana Lopes, o ex-primeiro-ministro conta que “os grandes artífices da retirada desse poder ao Presidente da República, na linha de Sá Carneiro, foram Mário Soares, Francisco Balsemão e Diogo Freitas do Amaral”. Antes dessa revisão constitucional, “o Presidente da República”, então Ramalho Eanes, “pôde nomear, em ano e meio, três primeiros-ministros de formações diferentes – um tecnocrata, um político da área do PSD e outro mais à esquerda. Os três Governos presidenciais tinham várias ideologias, com uma característica comum: partida da iniciativa do Presidente e não da expressão direta da vontade do povo. Neste contexto, importa questionar: é esta a conceção de democracia? O povo ser governado por um qualquer programa, desde que esteja no poder quem seja escolhido por César?“, pergunta Santana Lopes.
“O Presidente deixava assim de ter o poder discricionário de demitir o Governo, mas ficava com o poder de dissolver o Parlamento”, ainda que temporalmente limitado, escreve o social-democrata. A lógica era mesma: impedir que o Chefe de Estado impusesse a sua vontade ou cor política ao país. Um pouco à imagem do que fizera François Mitterrand, em 1981, quando no dia seguinte a tomar posse, dissolveu o Parlamento para o alinhar com o Eliseu, como recorda um dos constitucionalistas ouvidos pelo Observador.
É também por isso que Jorge Miranda, a par de Vital Moreira, um dos pais da Constituição, se mostra “contra qualquer alteração ao artigo 172 da Constituição“. No II Volume da Constituição Portuguesa Anotada, que assina com Rui Medeiros, o constitucionalista explica que “a proibição de dissolução nos seis meses posteriores à eleição destina-se não só a salvaguardar um mínimo de tempo de funcionamento da Assembleia e a evitar a constante repetição de eleições mas também a prevenir uma eventual pressão do Presidente da Assembleia da República sobre o eleitorado no sentido de a Assembleia a eleger vir a estar em sintonia com ele”.
Já a norma que impede o Chefe de Estado de dissolver o Parlamento nos últimos seis meses “repousa não tanto numa diminuição de legitimidade na fase final do seu mandato, mas sim para impedir, entre outras coisas, que o Presidente, “disposto a candidatar-se para segundo mandato, procure, através da proximidade de ambas as eleições – a parlamentar e a presidencial – uma coincidência de maioria, frustrando, assim, a separação política de Presidente e Parlamento”.
Pedro Bacelar Vasconcelos afina pelo mesmo diapasão. Ao Observador, o constitucionalista e deputado eleito pelo PS explica que esta restrição temporal “visa impedir e combater eventuais tentações [do Chefe de Estado] de contrariar os resultados das eleições” e de tentar “impor as suas preferências”. Como tal, não faz sentido falar em revisão constitucional, diz Bacelar Vasconcelos.
O socialista lembra, também, que esse período mínimo de funcionamento da Assembleia, mesmo numa situação de aparente bloqueio como esta, obriga a que sejam procurados em sede parlamentar os devidos consensos. “Essa é uma missão à qual a Assembleia da República não pode fugir. Essa obrigação até sai reforçada“.
Mas nem todos os constitucionalistas apoiam esta leitura. Uma norma que foi pensada para equilibrar as forças acabou por alimentar um bloqueio constitucional que ganha especial dimensão neste caso em que Cavaco Silva não pode dissolver a Assembleia, nem tampouco parece estar disposto a aceitar uma solução governativa à esquerda.
Mais: mesmo o próximo Presidente da República, que toma posse em março, só poderá, se assim o entender, dissolver a Assembleia em abril, quando se completam os primeiros seis meses de legislatura. Mas, de acordo com a lei eleitoral, a ida às urnas só poderia acontecer dois meses depois, em junho.
A convocação de eleições antecipadas serviria, por isso, de chave para resolver um impasse (se o PR optar por um Governo de gestão depois do Executivo de Passos/Portas cair) ou para legitimar o futuro Governo. A lógica de quem defende esta hipótese é uma: há alturas excecionais que requerem medidas excecionais, como explicava, de resto, Álvaro Beleza.