Nem ali lhe faltam palavras. Até podia estar um pouco encavacado, à deriva na euforia, a tentar encaixar tudo o que acabara de acontecer, mas não parecia. Um jornalista, recheado de questões por fazer, aponta-lhe o microfone à cara e começa a disparar palavras. Às tantas pergunta ao homem que, em dois anos, se fartara de levar canecos e medalhas para casa, se não estava a puxar demasiado pela fasquia — nada disso, responde-lhe ele. “Não aceito muito bem essas coisas de fasquias”, reforça, ar mais descontraído do mundo. “A carreira de um treinador é feita de momentos melhores e piores. Felizmente a minha tem sido só de momentos bons, mas sei que um dia vai chegar um menos bom. Estou obviamente preparado para, quando esse chegar, não pensar que sou o pior do mundo”, garante, postura de quem conseguiu ganhar a Liga dos Campeões um ano depois de vencer a Taça UEFA com o Futebol Clube do Porto. De repente, a Europa da bola redonda era de José Mourinho.

As conquistas foram por ali fora, armaram-se em viajantes e continuaram a dar-lhe troféus em Inglaterra, Itália e Espanha. O português foi sempre campeão por onde andou e os tais momentos menos bons foram poucos. Ou talvez nenhum, porque Mourinho apenas se lembrou do que disse quando alguém pegou no telemóvel e lhe enviou um sms com o que o português dissera a 26 de maio de 2004. As maravilhas da tecnologia. “Tinha esquecido completamente. Disse que um dia os maus resultados viriam e que os enfrentaria com a mesma honestidade e dignidade. Por isso, 11 anos depois, resisti bem à natureza do meu trabalho e do futebol”, desabafou, há dias, o treinador que continua o mesmo, mas com mais rugas e cabelos brancos.

A parte do “resisti bem” explica-se pelas farpas que o português sempre manda e que voltou a mandar. Porque José Mourinho estava sentado numa conferência de imprensa e, quando alguém lhe perguntou se os maus resultados não ajudavam a fazer um bom treinador, a resposta foi esta: “Se apenas me tornasse um melhor treinador por causa dos maus resultados, então seria um treinador muito mau, pois nos últimos 15 anos nunca teria melhorado”. Foi preciso o português dizer tudo isto e nós escrevermos esta lengalenga pois, esta época, uma equipa de Mourinho não se está a portar como se fosse treinada por ele.

Perdeu oito dos 18 jogos que fez — que são nove se contarmos uma derrota nos penáltis, contra o Stoke City –, já sofreu tantos golos quanto os que marcou (28-28), o Chelsea está na 15.ª posição da Premier League e foi eliminado da Taça da Liga inglesa. Isto sim é uma altura especial para o homem que uma vez se auto-apelidou de especial por ganhar quase todas as competições em que participava.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Só o careca do costume lhe faz frente

A história do treinador português papão, que enche a barriga de títulos em todo o lado começa em 2002/2003. Essa temporada é sinónimo de campeonato, Taça de Portugal e Taça UEFA para o FC Porto e daí até hoje Mourinho agarrou-se a mais 19 canecos, incluindo duas Ligas dos Campeões (2004 e 2010) e títulos de campeão em todos os países nos quais treinou e aprendeu a falar a língua.

Entre o tri portista e a Liga e Taça da Liga ingleses conquistadas no Chelsea estão 12 anos e não os 11 que o português contou a partir da conquista da Liga dos Campeões. Ou seja, na última década e mais uns pozinhos em que deu ordens a jogadores, José Mourinho tocou, em média, em dois troféus por temporada. Pelo meio apenas teve uma duas épocas sem ganhar nada — em 2007/08, quando o dono do Chelsea se fartou, despediu-o e o português aproveitou para tirar uns meses sabáticos, e em 2013/14, quando Roman Abramovich engoliu o orgulho e o chamou de volta para os blues.

quadro_mourinho_guardiola_02

Arte: Milton Cappelletti

E o resultado de vasculhar pelos números e a história da bola mostra que, nos últimos 40 anos, apenas um homem lhe faz frente. Adivinhem quem é? Só podia ser Pep Guardiola, o treinador do Barça dos mil e um passes e de Lionel Messi a marcar todos os golos que Mourinho tentou contrariar enquanto esteve em Espanha. O português até ganhou um título por cada uma das três épocas que passou no Real Madrid, mas não evitou que o catalão vencesse 14 troféus com o Barcelona. O técnico é o único que se aproxima dos números de José Mourinho, já que depois de sair do Barça e de passar um ano sabático (2012/13) a descansar os nervos em Nova Iorque, disse que sim ao Bayern de Munique para conquistar (para já) mais cinco títulos. Contas feitas, vai com 19 ganhos (que são 20, se contarmos com a 2.ª divisão B de Espanha que venceu com o Barça B em 2008), em oito anos, também com duas Ligas dos Campeões conquistadas.

De resto, não há outro treinador que tenha levado uma Champions para casa e que antes ou depois passasse tantas temporadas seguidas a ganhar troféus — até entrar num período de seca ou deixar mesmo de os vencer. Porque isto foi algo que Pep nunca esteve sequer perto de ter. Fora o ano em que meteu férias e decidiu dar uma pausa à vida de treinador, o catalão jamais acabou uma temporada sem um novo caneco no armário lá de casa.

Os italianos que ganharam muito durante pouco tempo

Ficar tanto tempo a colecionador vitórias e canecos não é normal e por isso é que Guardiola, como Mourinho, é especial. Houve outros que também ganharam muito, embora o tenham conseguido durante menos tempo. Os anos 80 e 90 do século que já lá vai mostraram como a Itália foi fértil em treinadores que caçaram éne títulos, mas não tantos nem durante tanto tempo como o português.

Arrigo Sacchi foi um deles. Por alguma razão uma das expressões que se ouve nas conversas de quem gosta de futebol é “o Milan de Sacchi” e os oito títulos que ganhou em três anos podem ter algo a ver com isto. O destaque vai todo para as duas Ligas dos Campeões seguidas (1988/89 e 1989/90) e só venceu uma Série A porque dentro de Itália teve que levar com o génio de Diego Maradona que trazia o Nápoles às costas. Pôs gente como Marco Van Basten, Ruud Gullit, Frank Rijkaard, Franco Baresi ou Roberto Donadoni a conviverem na perfeição e todos os títulos que ganhou na carreira foram no AC Milan.

quadro_sacchi_capello_lippi_02

Arte: Milton Cappelletti

Só acabou a última das épocas nos rossoneri (1990/91) sem títulos e, nos 10 anos seguintes — deixou de treinar em 2001 –, não mais voltou a ganhar canecos, talvez porque nunca teve uma equipa igual à que o Milan lhe deu. Sacchi tem contra ele o facto de apenas ter vencido num país e num clube, algo do qual Fabio Capello se chegou a esquivar. O carrancudo italiano apanhou boleia do que Sacchi deixou no Milan e aproveitou uma equipa das boas para continuar a ganhar em Itália e a reinar na Europa. Passou cinco anos habituado a tocar em canecos nos rossoneri antes de ir mandar durante uma época para o Real Madrid, onde venceu logo o campeonato.

Já Marcello Lippi padeceu da mesma patologia que Sacchi: apenas ganhou em Itália e sempre no mesmo clube. O treinador com ar sério, cabelo bem branco e óculos no nariz fartou-se de ganhar nos quatro anos com a Juventus, mas quando de lá saiu teve de esperar outras quatro temporadas para voltar a sorrir. Depois, em 2006, conquistou o Mundial com a seleção italiana. Todos se agarraram à orelhuda (como os espanhóis chamam ao troféu da Liga dos Campeões), embora nenhum conseguisse passar menos de duas épocas sem conquistar títulos. Deste grupo, aliás, apenas Fabio Capello fez o que José Mourinho e Pep Guardiola lograram — ser campeão em mais do que uma das grandes ligas da Europa.

O suíço que durou menos tempo e o alemão que teve intervalos

Há um país onde cada vez que a bola entra na baliza se grita Tööör! e os estádios são grandes e estão constantemente cheios. É a Alemanha e por lá apareceram dois homens que se fartaram de ganhar e que foram o que José Mourinho tem sido: um papa-títulos. Mas com algumas diferenças. Houve um suíço com cara de mau e de poucas palavras que durante nove anos só acabou uma temporada de mãos a abanar. Só à quarta temporada no Borussia Dortmund — o clube tem mesmo paciência para treinadores, não tem? –, em 1994, é que Ottmar Hitzfeld começou a vencer. Foram as Bundesligas e as Super Taças (duas de cada) que convenceram o Bayern de Munique a fazer o que faz sempre, ir caçar o melhor que os outros têm. O treinador mudou-se para a Baviera (em 1998/99) e às coisas que já vencia juntou duas Liga dos Campeões.

Entre 1994 e 2003 o treinador só teve uma época sem ganhar (1997/98) e acumulou 15 títulos entre dois clubes do mesmo país. Depois começou a tremer e tinha as mãos no leme quando o barco do Bayern passou por uma de duas fases deste século em que viu teve turbulência a bordo. Em 2003/04 nada venceu e, depois de passar um par de temporadas no desemprego, o clube bávaro contratou-o outra vez e pediu-lhe para levar o navio a bom porto. Conseguiu, pois em 2007/08 venceu o campeonato e a taça na Alemanha. Mas lá está, chegou ao tal ponto em que interrompeu anos e anos seguidos sempre a conquistar títulos.

quadro_itzfeld_lattek_03

Arte: Milton Cappelletti

Antes deste senhor houve outro, esse sim um senhor, chamado Udo Lattek. É o único que nas últimas décadas acumulou números na Europa que se parecem aos que Mourinho e Guardiola ainda vão conseguindo. Foi o primeiro a dar uma Taça dos Clubes Campeões Europeus à Alemanha e o homem que começou a fazer do Bayern de Munique o gigantão que é hoje. À segunda época nos bávaros começou a tocar em canecos e arrancou um ciclo que apenas terminou em 1986: amealhou 17 troféus e não foram mais porque, em 1987, o FC Porto não o deixou conquistar outra Champions na final de Viena.

Outra proeza do treinador alemão, falecido em fevereiro, foi conseguir sorrir em vários sítios, já que depois do Bayern ainda foi conquistar títulos com o Borussia Mönchengladbach (uma Taça UEFA, por exemplo) e com o Barcelona (Taça das Taças, Copa del Rey e Taça da Liga). O que o trama, contudo, é o facto de pelo meio destes 15 anos ter ficado quatro temporadas — nunca consecutivas — sem tocar em troféus. E mais, já que após a Bundesliga que venceu em 1987 não mais voltou a tocar em troféus até dizer ao mundo que ia deixar de vez a vida de treinador, em 2000. Ninguém se terá espantado, pois nesses 13 anos apenas apareceu no Colónia, Schalke 04 e Borussia Dortmund em três temporadas, sempre como bombeiro para apagar fogos que outros atearam. “Eu era um idiota que não consegui fazer nada, mas era ambicioso, forte e usei os meus cotovelos”, chegou a dizer, sobre a carreira recheada que teve.

Udo Lattek é o técnico com mais canecos do futebol germânico — foi o primeiro da história a ganhar a Liga dos Campeões, Taça UEFA e Taça das Taças –, mas não ganhou tantos nem durante tanto tempo como José Mourinho. Nem ele, nem ninguém antes de o português aparecer, se esquecermos Pep Guardiola durante uns segundos, por andar aqui ao mesmo tempo que o treinador do Chelsea. Talvez por isso é que Mourinho tenha dito o que disse esta semana, quando começaram a empurrá-lo para a corda bamba da vontade Roman Abramovich: “No meu caso é difícil estudar os outros. Quando chegas ao meu nível, é difícil aprender de outros treinadores. Tens de aprender por ti próprio, com as tuas experiências, dia após dia, analisando o teu trabalho”.

Nesse caso, que José Mourinho aprenda rápido a dar a volta a uma tremideira de resultados como nunca antes teve.

P.S. Podiam estar neste texto Vicente Del Bosque, o homem do bigode que venceu sete canecos em quatro anos com a geração de Galáticos do Real Madrid, ou até Carlo Ancelotti, que tem 17 títulos conquistados na carreira. Mas o primeiro demorou cinco anos até chegar à seleção espanhola e começar a ganhar tudo (o que é diferente, pois só há competições de dois em dois anos), e o segundo tem sempre temporadas de intervalo entre os troféus importantes que vai colecionando.