Título: “Nora Webster”
Autor: Colm Toibin
Editora: Bertrand
Páginas: 359
Numa recensão a Nora Webster, de Colm Tóibín, para o The Guardian, Tessa Hadley manifesta surpresa pelo facto de, neste livro, não haver qualquer tipo de julgamento acerca da vida da protagonista: não há «comentários, explicações, veredictos». A narrativa é construída na terceira pessoa do singular, o narrador é omnisciente no que a Nora diz respeito, os diálogos são relatados na maneira clássica de a eles estarmos a assistir. A história tem início poucos meses depois do professor Maurice Webster, marido de Nora, ter morrido, e a progressão a partir daí é linear, com os também tradicionais flashbacks ocasionais que nos vão dando a conhecer pormenores sobre o que se passou antes de Nora ficar viúva. Tessa Hadley diz ainda que o facto de o narrador se escusar a fazer qualquer juízo de valor é uma espécie de «extravagância invertida»; deverá antes dizer-se que é um acto de inteligência, de necessidade até, para o que Tóibín quer fazer neste livro.
Não havendo comentários às acções e pensamentos de Nora e das pessoas com quem ela se dá, ficamos sozinhos para elaborarmos as nossas próprias apreciações sobre o que se vai passando. É inevitável que estes julgamentos surjam – é o que estamos sempre a fazer –, mas aqui encontramo-nos numa posição mais delicada: afinal, esta mulher acabou de perder a pessoa com quem viveu durante vinte e um anos e com quem teve quatro filhos. Este facto não nos impede, mesmo assim, de ficarmos perplexos com algumas atitudes de Nora. Por aquilo que nos é dado ser o seu ponto de vista, as considerações que fizermos acerca do modo como procede durante o seu período de luto serão sempre considerações acerca do seu carácter e de como esta mulher vive a sua vida.
A certa altura, numa conversa com uma freira que conhece desde pequena, a irmã Thomas, Nora é comparada à sua também já falecida mãe, com uma ressalva: «A sua mãe era igual. Conheci-a quando cantava. Tinha uma voz maravilhosa, mas o que a tornava difícil era o orgulho, ou o não gostar que as pessoas soubessem da sua vida. E isso só a prejudicava. A Nora é mais prática. E todos nos devemos sentir gratos por isso» (p. 157). É o carácter prático de Nora que estrutura o livro de Tóibín, centrando-se nos momentos triviais do quotidiano, aqueles em que pequenas escolhas são feitas – como Jennifer Egan escreve para o Sunday Book Review do The New York Times, não há em Nora Webster aquilo a que comummente chamamos «eventos», ou aquilo a que em ficção se designa enquanto «arco dramático», um acontecimento que seja central e definidor do enredo. Há sim decisões a serem tomadas acerca de vender ou não a casa em Cush, onde Nora, Maurice e os filhos passavam todos os Verões; há que arranjar um trabalho, visto que a pensão de viuvez não é suficiente para os suportar daí em diante; há que pensar na logística dos almoços dos filhos, Conor e Donal, que ainda vivem em casa, e no tempo que terão de passar sozinhos até Nora sair do trabalho; há remodelações para fazer, a lareira, as carpetes, o papel de parede e os cortinados para substituir. Decisões que Nora agora tem de tomar sozinha. Aquilo que poderia ser um «acontecimento», um «evento» – umas férias em Espanha –, é relatado como mais um episódio a meio de um capítulo, não lhe sendo dada relevância maior do que aquela atribuída, por exemplo, à compra de uma aparelhagem.
O desejo mais profundo de Nora é o de liberdade, de não sentir que os seus movimentos são tolhidos por vontades ou conselhos alheios. Tal como ela não quer que saibam da sua vida, também não quer que lhe digam como há-de vivê-la. Porém, é isso que ela sente que todos estão a fazer. Desde a morte de Maurice que os conhecidos se dirigem a ela com um tom de voz que lhe parece sempre autoritário, como se soubessem «melhor do que ela como devia viver e o que devia fazer» (p. 230). Falam-lhe como se fosse uma criança e Nora reage como tal; recusando teimosamente todas as tentativas de lhe prestarem cuidado, tomando-as como uma ameaça à sua autonomia, aceita de forma imatura um convite para passar um fim-de-semana em casa de uma das suas irmãs mais novas: «Ocorreu-lhe que Catherine pudesse gostar de sentir que tinha, de alguma forma, ajudado a cuidar de Nora. Aquela visita era uma forma de o fazer. E já que queria cuidar dela, pensou Nora, bem podia cozinhar, limpar, lavar a louça e deixá-la ler em paz» (p. 96).
Também como uma criança, Nora teme constantemente que as suas acções sejam alvo de recriminação: «Esperou que nem Phyllis nem os O’Keefe tivessem dito a ninguém que estava a aprender a cantar. E não contou a ninguém no trabalho, nem sequer a Elizabeth. Haveria pessoas na cidade, entre elas Jim e Margaret, que não veriam com bons olhos ela andar a ter aulas quando devia estar a ocupar-se do trabalho, da casa e dos filhos» (p. 238). Guardar segredo das decisões que toma é uma das estratégias para escapar a estas recriminações que, na verdade, poderão estar apenas na sua cabeça – em vários momentos de diálogo percebemos, sem saber se Nora o compreende ou não, que as pessoas não a vêem como ela julga. Por outro lado, tomar decisões sozinha não significa somente preservar a sua liberdade; Nora retira um gozo desmedido da possibilidade de as suas escolhas, quando descobertas, poderem provocar choque ou irritação nas pessoas que conhece, e isso fá-la exultar secretamente.
Parece haver um desfasamento entre aquilo que Nora vive, a maneira como o vive, e as pessoas e as situações que a rodeiam. No período de cerca de três anos que o livro cobre, Nora, apesar de todas as questões práticas com que a vemos ocupar-se, parece estar continuamente no estado em que é descrita na noite em que vai pela primeira vez a um pub depois da morte do marido: «perdida num mar de gente com a âncora içada, e tudo aquilo estranhamente absurdo e confuso» (p. 202). Há momentos em que ela parece pairar sobre o que se passa à sua volta, e não ficamos certos que isso se deva ao luto. O seu alheamento em relação à vida de pessoas que conhece há anos e em relação à vida das irmãs e dos próprios filhos é, suspeitamos, consequência não de um estado mas de um traço do seu carácter (como o escritor Julian Barnes assume, sofremos de acordo com aquilo que somos).
Josie, a tia de Nora, irmã da sua mãe, encarrega-se de lhe fazer ver que os dois meses em que ficou com o marido no hospital, deixando Conor e Donal em casa de Josie, foi um período tão difícil que causou a actual gaguez de Donal; revela-lhe também que as irmãs a temem, tendo sempre procurado a sua aprovação. Também só agora, e através da irmã Thomas, Nora se apercebe do quanto a sua irmã Una terá sofrido depois da morte da mãe, visto que vivia sozinha com ela. A própria Nora admite que, após um jantar com os quatro filhos e os cunhados Jim e Margaret (irmãos de Maurice), «descobriu que estava a par de mais pormenores sobre as vidas dos seus filhos do que soubera em meses» (p. 132). Se por um lado há uma preocupação notória com o bem-estar dos filhos, principalmente dos mais novos, por outro lado Nora espanta-nos com certas reacções: perante a possibilidade de uma das suas filhas, Aine, estar envolvida em actividades do IRA e encontrar-se agora desaparecida, Nora parte para Dublin em busca dela; porém, ao saber por intermédio de uma amiga que a filha se encontra em segurança, recusa vê-la e volta para casa, em Enniscorthy, pedindo apenas que a informem por telefone acerca do estado de Aine. Ficamos nós com o peso de avaliar este comportamento, que pode ser considerado uma forma de castigo pela preocupação que Aine lhe causara ou uma atitude mais altruísta: a de não querer meter-se na vida da filha. Se há algo que Nora deixa claro é que não quer ser como a mãe, que constantemente se imiscuía na sua vida.
Parecendo alheada das pessoas que lhe são mais próximas, Nora demonstra conhecer as rotinas, os hábitos, as histórias que passaram de boca em boca, e de ano para ano, das pessoas que habitam a cidade de Enniscorthy e arredores. Este tipo de conhecimento não é particular a Nora: é uma característica intrínseca a cidades pequenas. Por saber (ou pensar que sabe) tanto da vida dos outros é que reage tão violentamente à aproximação das pessoas após a morte do marido. Maurice protegia-a dessa intromissão; com Maurice ela tinha uma posição privilegiada que estimava e pela qual estava grata: «Acima de tudo, adorava ter Maurice ao seu lado, estarem juntos num casamento, com roupa nova, e toda a gente na festa saber que ela estava casada com ele» (p. 201). Nora deixou de ser a mulher de Maurice para ser a viúva Webster, e agora já não lhe cabe a ele protegê-la, mas à cidade onde ela vive. É isso que a irmã Thomas lhe diz: «Tudo se há de compor. Estamos numa cidade pequena, que irá protegê-la» (p. 152). A promessa é cumprida de várias formas: é graças à irmã Thomas que Nora consegue um emprego; Tom Darcy, amigo do casal desde há anos, evita que ela e a amiga Phyllis sejam importunadas no pub quando os ânimos estão prestes a exaltarem-se; há um problema com Conor na escola que é resolvido invocando o respeito devido à memória de Maurice Webster; e consegue que lhe façam um desconto na aquisição e montagem do que é necessário para a remodelação que quer fazer em casa. A cidade é uma teia de relações, para o bem e para o mal, e é como viúva, e não como esposa de Maurice, que Nora tem agora de aprender a viver nela.
Não é apenas num sentido de auto-preservação que se deve tomar a atitude de Nora em não querer dar contas a ninguém do que faz e das decisões que toma; é também enquanto sinal de imaturidade por ser mais uma forma de provocação e afirmação agressiva perante os outros do que um assumir responsabilidade pelas suas acções. Na mesma medida, se Nora acede em ser cuidada, é nos seus próprios termos que o faz, como acontece naquele fim-de-semana em casa de Catherine; contudo, não se pode obedecer aos caprichos de uma criança. Quando Nora fica realmente debilitada e recorre a Josie, esta vai cuidar de Nora nos seus termos, e não naqueles que a sobrinha antes impusera. A partir deste momento, Nora começa a aceitar que pertence a um mundo onde Maurice já não está e nunca mais voltará a estar; a um mundo onde é possível cantar Brahms em catedrais no sudeste da Irlanda, ouvir os passos dos seus filhos no andar de cima de uma casa onde a lareira está acesa, e pedir às suas irmãs que tratem, finalmente, da roupa do marido que está no roupeiro desde que ele morreu. Neste mundo, há que aprender que não é preciso guardar segredo do que se pensa e do que se faz para se ser livre; a liberdade consiste precisamente em assumir responsabilidade pelo que se é, e para isso é preciso dar-se a conhecer. Nesse momento, será possível reconhecer nas outras pessoas desejos e necessidades que não têm necessariamente de constituir uma ameaça à autonomia.
É exigida muita mestria para conseguir dar conta dos momentos quotidianos e triviais que constituem, talvez, a parte mais importante das nossas vidas, e com isso dar a conhecer uma pessoa. Colm Tóibín está, neste livro, muito perto disso, conseguindo manter a neutralidade e o ritmo de forma quase exímia do início ao fim da narrativa. Porém, a impressão que a descrição da vida de Nora deixa não é suficientemente forte; não podendo aquilo que falta ser justificado invocando o desinteresse de uma vida – porque nenhuma vida é desinteressante, e muito menos a de Nora –, só se pode alegar que o autor da descrição não possui ainda a perícia que lhe garantiria a designação «mestre».