O arame farpado cortava-lhe as costas. Tremia descontroladamente. Depois de longas horas à espera que caísse a noite, para evitar ser vista pelos soldados turcos, Samar Yazbek levantou a cabeça, enterrou os pés no pequeno buraco escavado sob a vedação que separa a Síria da Turquia e arrastou-se, arranhando-se nos arames a cada centímetro percorrido. Respirou fundo, curvou as costas e correu o mais rápido que conseguiu, como lhe tinham dito para fazer. Meia hora de corrida ininterrupta, até sair da zona de perigo.
Quem começa a ler as memórias que a jornalista e escritora síria Samar Yazbek reuniu no livro A Travessia é levado, pela lógica, a concluir que ela está a fugir de um país devastado pela guerra, em direção à Turquia. Tal como milhões de refugiados fizeram e continuam a fazer, arriscando a vida para sobreviver. Mas, muitas vezes, a lógica perde para o coração. A jornalista foi forçada a exilar-se em França com a filha em julho de 2011, por correr risco de vida por causa dos artigos que escrevia sobre a violência que Bashar al-Assad exerce contra o povo, para conter os protestos ao regime, inspirados pela Primavera Árabe. Em agosto de 2012, ela decide voltar, para a primeira de três travessias num ano. O que pode valer tamanho risco?
“Há muitas razões”, disse ao Observador, à margem do Festival Literário da Madeira, onde apresentou o livro editado, recentemente, em português pela Nova Delphi. “Em primeiro lugar, pensei que ia ficar na Síria de vez, que não ia voltar a sair. Como jornalista e ativista, senti necessidade de escrever sobre o que se estava a passar na Síria, porque os media europeus e do resto do mundo mostram apenas uma parte da verdade.”
A parte que falta é “o sofrimento infligido ao povo por Bashar al-Assad, os bombardeamentos às cidades, a tortura às pessoas, a morte aos opositores”. É como se os atos bárbaros cometidos pelo Estado Islâmico, ou Daesh, tivessem raptado toda a atenção mediática. “Ao transmitirem apenas uma parte”, ou seja, o terror do Daesh, “é como se estivessem a difundir uma mentira, que é a de que Assad é uma parte da solução, quando na verdade é parte do problema. Que ele é presidente, e não um criminoso de guerra”.
As 316 páginas deste trabalho literário de não ficção incluem alguns dos encontros que Samar Yazbek teve com famílias que viram os seus familiares mortos por terem participado em manifestações. Ela, que é alauita, assim como a minoria no poder (Assad incluído), ouviu soldados dissidentes, na sua maioria sunitas, contarem que deixaram o exército do país por terem ordens para violar as mulheres e filhas de dissidentes, assassinando depois os homens da casa e deitando fogo às casas. E também soldados que deixaram o Exército Livre da Síria — que nasceu como resposta à violência do presidente e que defende uma solução mais democrática para o país — para se juntarem aos grupos islamitas por estes estarem mais em equipados e sentirem que só ali poderiam combater Assad.
O relato de Samar Yazbek é raro. Tão raro quanto a presença dos jornalistas junto às linhas da frente sem que estejam condicionados às regras de Assad (na melhor tradição do jornalismo embedded). E ainda mais raro pela sua condição de mulher. Além de ter ouvido os combatentes na linha da frente e de conhecer as razões que os levaram ao fundamentalismo, teve também acesso a testemunhos de mulheres que não abririam a boca caso ela fosse um homem. É assim que se vai além dos números e se dão nomes, idades e histórias de gente como nós, a tentar sobreviver num país mergulhado em caos.
Por ser contra o regime de Assad, Samar tem uma relação mais próxima do Exército Livre da Síria. Mas a jornalista foge à glorificação. “Como em breve iria descobrir, embora o nome ‘Exército Livre’ pudesse evocar unidades organizadas, de facto engloba um conjunto extremamente diversificado de grupos, com variadas características e atitudes — desde as mais cruéis às mais compassivas.” Defende que se deveriam chamar “Brigadas de resistência do povo armado”, uma vez que são um espelho das pessoas com quem nos cruzamos na rua, umas boas, outras más. Só que, num país onde a morte é o dia-a-dia, a maldade ganha outra dimensão. Junte-se a tudo isto grupos de saqueadores e de mercenários que roubam e executam raptos abusivamente em nome do Exército Livre.
Para além de querer mostrar a verdade que faltava, Samar Yazbek tinha mais dois grandes pensamentos quando regressou ao seu país. Primeiro: “Não queria sentir que estava a trair o povo sírio, que fugi e não apoiei a revolução.” Segundo: “Também tinha a vontade de formar uma sociedade civil que apoie e dê força às mulheres”, assim como “proporcionar às crianças instrução”. A ONU estima que desde o início do conflito, há cinco anos, tenham nascido 3,7 milhões de crianças sírias, dentro e fora de fronteiras. Há o risco de toda uma geração crescer sem saber ler nem escrever.
A jornalista procurou implementar no território alguns projetos de mulheres em pequena escala, através de uma organização com o propósito de conferir poder às mulheres e de educar as crianças. “Instalei-me para trabalhar com as mulheres locais, ajudando-as a organizarem sessões de formação, projetos que as conseguissem sustentar financeiramente e que também dão tratamento psicológico”, explicou. Samar deixou o país em agosto de 2013, mas a associação que ajudou a fundar, Women Now for Development, “hoje está mais forte e conta com cerca de sete mil mulheres”. A ideia é prepará-las para que possam, no futuro, fazer parte de uma solução política para o país.
A forma como a Europa lida com os refugiados sírios “expressa a queda da moralidade”
No fim da viagem, em agosto de 2013, Samar queria regressar a França e escrever um romance. Não este relato, que tornaria mais difícil o seu regresso ao país num futuro próximo. Mas foi nessa altura que o Estado Islâmico se instalou em força na Síria e a jornalista percebeu que não teria hipóteses de voltar.
Já passaram quase três anos. No meio do caos, que envolve zonas ocupadas da Síria pelo Estado Islâmico e pela Frente al-Nusra, e zonas ditas livres pelo Exército Livre da Síria, o país foi a votos no passado dia 13 de abril. Ou melhor, as zonas controladas pelo Governo foram a votos. O partido Baas, no poder há meio século e ao qual pertence Bashar al-Assad, venceu por larga maioria. Países como a França e os Estados Unidos consideram que houve fraude no ato eleitoral.
No livro, Samar Yazbek defende que a revolução foi atraiçoada, ao ver países como o Irão, a Rússia, os Estados Unidos e outros países que têm interesses na Síria a pô-los à frente do interesse de acabar com o que se está a passar. Putin anunciou a retirada das tropas russas do terreno, mas a jornalista não acredita. “E continua a estar lá o Irão”, que apoia Assad contra a maioria sunita, lembra, pelo que “serão estes a decidir o futuro da Síria, não será nem o Governo nem o povo. Esse plano está a ser delineado neste momento”, acusou. “A queda do regime acabará por acontecer de forma gradual, politica e socialmente”. Mas, por haver tantos interesses de terceiros, não está otimista quanto ao futuro.
Se pudesse fazer um só pedido aos líderes da União Europeia, pediria uma verdadeira política de integração dos refugiados, já que considera que o acordo com a Turquia significa condenar os refugiados à morte. “O tratamento que os refugiados recebem nos países ocidentais expressa a queda da moralidade na Europa. Eu tenho pena da situação em que estão. Os governos deviam ter uma política de integração que fosse mais humana. O acordo deixa sem saída refugiados que têm de fugir para sobreviver. É como condená-los à morte. Isso é imoral. Mas isso não me surpreende porque estes foram os mesmos governos que apoiaram Assad.”
Voltará a existir Síria? “Não”, disse sem hesitar. “A Síria que eu conhecia já não existe. Mas ainda tenho esperança de ver nascer a Síria com que as pessoas sonhavam no início da revolução.”