Acabou tudo com um jantar a dois na capital francesa. E com as respetivas equipas penduradas, inesperadamente sem os chefes. Este fim de semana foi um idílio de coabitação. Mas se um dia as coisas correrem mal — e a história diz que presidentes e primeiros-ministros raramente acabam bem — Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa podem sempre usar a deixa que Humpfrey Bogart disse a Ingrid Bergman no fim de Casablanca: “We will always have Paris“. Nós teremos sempre Paris.
Só a história deste jantar demonstra como os dois homens têm uma relação que vai para além da política. António Costa tinha uma refeição marcada para sábado à noite, em Paris, com o seu gabinete de São Bento, o ministro da Defesa Azeredo Lopes e o secretário de Estados das Comunidades, José Luís Carneiro. A meio da tarde, em La Couture, onde tinham ido homenagear os mortos portugueses da Grande Guerra, Marcelo Rebelo de Sousa aceitou juntar-se ao repasto. Assim, o staff do primeiro-ministro marcou mais seis lugares no restaurante para o pessoal de Belém.
Umas horas depois, já regressados a Paris, Marcelo e Costa iam no mesmo carro — a sós com os seguranças — e foi o Presidente da República a ter a iniciativa. Afinal, em vez de um convívio alargado, decidiu que o melhor era jantarem apenas os dois num restaurante parisiense. Convidou o primeiro-ministro. Costa aceitou, ou não teve como recusar. Mas houve mais. Marcelo Rebelo de Sousa não é um Chefe de Estado típico. Pegou ele próprio no telefone — segundo apurou o Observador — e telefonou para um restaurante que Costa desconhecia, a marcar mesa.
Ao contrário do que estava combinado, os dois homens mais poderosos de Portugal nem passaram pelo hotel (no caso de Costa), nem pela embaixada portuguesa, onde estava hospedado Marcelo. Foram diretamente para o restaurante. Não foi possível ao Observador apurar o nome do local (António Costa riu-se perante a pergunta do Observador e não quis responder), nem a natureza do momento. Terá sido um jantar de Estado, ou tão-somente uma refeição entre um antigo professor e um antigo aluno, ou apenas um encontro entre dois políticos com pensamento diferente, mas que se respeitam. Muito menos foi possível saber o teor da conversa, se sobre as 35 horas, os contratos de associação, as eventuais derrapagens orçamentais ou outros assuntos delicados como o europeu de futebol, pintura, livros e viagens. Ou quem pagou a conta. Se a Presidência da República, se o próprio Marcelo que convidou. Mas ambos terão comentado que comeram maravilhosamente.
Um voo histórico que podia pôr em risco a segurança nacional
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Não foi este, porém, o único insólito do fim de semana de comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que Marcelo e Costa levaram para França. António Costa publicou no seu Instagram uma fotografia pouco comum, que classificava o momento como um “voo histórico”. O Presidente e o primeiro-ministro partilharam o mesmo avião C-295 da Força Aérea Portuguesa para percorrerem rapidamente os quase 300 quilómetros até Richebourg e La Couture, e colocarem flores nos túmulos dos soldados portugueses mortos na I Guerra Mundial. Onde é que está o “histórico” do momento? A segurança nacional aconselha que Presidentes e primeiros-ministros nunca partilhem a mesma aeronave por razões de segurança. Se o avião tem um acidente há uma grave crise institucional e política no país. Por essa razão, Marcelo Rebelo de Sousa tinha viajado para Paris num Falcon e António Costa no mesmo C-295 que os levou ao Norte de França. Esta situação é rara.
E o protocolo não terá sido observado de forma rigorosa. Segundo as regras, o Presidente (apesar de ir de boleia) é que devia ir no lugar onde estava sentado António Costa. Mas as quebras de protocolo têm sido permanentes essas regras de certa forma desvalorizadas.
A última vez que um Presidente e um primeiro-ministro viajaram juntos no mesmo avião terá sido em 1980, quando morreu o Marechal Tito, Presidente da antiga Jugoslávia. O Chefe de Estado era Ramalho Eanes e o primeiro-ministro era Sá Carneiro, quando para irem ao funeral voaram ambos numa aeronave da Força Aérea para a região balcânica, recordou ao Observador uma fonte diplomática. A diferença é que estes dois políticos tinham um gravíssimo conflito institucional (senão mesmo algum ódio mútuo) e os atuais titulares do mesmo cargo parecem dar-se às mil maravilhas. Por agora.
Até os encontros de Chefe de Estado e de Governo não eram frequentes no estrangeiro. Normalmente, só participavam em conjunto nas Cimeiras Ibero-Americanas e nas da CPLP. E não voavam nos mesmos aviões.
Muito menos partilhavam os carros. Mais uma originalidade: nesta visita a França, houve quem se indignasse ao ver, na televisão, o primeiro-ministro sair da viatura do Presidente. Mais um pormenor invulgar para os que estão habituados aos protocolos das mais altas figuras do Estado. Aconteceu várias vezes. No domingo, no caminho de Paris para a Festa dos Santos Populares da Rádio Alfa, a comitiva de António Costa chegou a esperar pela de Marcelo Rebelo de Sousa — que tinha ido à missa na Igreja de Nossa Senhora de Fátima — para seguirem juntos no mesmo automóvel. Partilharam até presentes: em La Couture, Marcelo recebeu um cabaz com produtos locais, mas não havia um igual para Costa. Generoso, o Chefe de Estado disse que o dividia com o chefe do Governo, com quem tinha uma “boa relação”.
Uma fonte que conheceu bem o palácio de Belém e o de São Bento diz ao Observador que “não são estas demonstrações que reforçam a ou diminuem a cooperação entre eles. Podem estar ambos a tirar partido um do outro, mas o Presidente não pode parecer que é mais íntimo de alguns dos agentes políticos e não dos restantes”.
A exibição de sinais exteriores de coabitação, chamou a atenção de responsáveis franceses. Valérie Pécresse, presidente da região de Paris, a Île de France, assistiu à cena de Costa a segurar no guarda-chuva de Marcelo no palco da Festa da Rádio Alfa. Pareceu ficar impressionada. Talvez não tenha, no entanto, percebido a piada que o Presidente disse em português quando o primeiro-ministro lhe deu cobertura com o chapéu de chuva a dizer Fidelidade. “Estão a ver o que é a colaboração entre os dois poderes? Vejam bem: quem tem o guarda-chuva é um primeiro-ministro de esquerda, e quem é apoiado é um presidente que vem da direita. É solidariedade”. Valérie compreendeu, nem que fosse pela linguagem gestual, o que era a relação aparentemente descontraída entre aqueles dois titulares de cargos públicos.
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A presidente da região Île de France — que trabalhou com Jacques Chirac no Eliseu — ficou de tal maneira marcada que, minutos depois de ter assistido ao espetáculo, fez uma “reflexão sobre a coabitação” no seu discurso ao almoço. “Fizeram-me lembrar a coabitação entre Chirac e Lionel Jospin [um socialista], disse Valérie Pécresse, que é dirigente da UMP, de direita.
As palavras de Pécresse deram força a Marcelo (mais ainda), que discursou fazendo novas piadas a Costa, por este ter dito no seu discurso tudo de essencial, deixando-o com pouco restava acrescentar. “O aspeto duro da coabitação política em Portugal é falar depois de um primeiro-ministro que é brilhante, pois antecipa todas as mensagens. É um desafio muito duro, mesmo para alguém que foi seu professor, confirmando a teoria de que os alunos ultrapassam sempre os professores”, disse Marcelo para ouvir as gargalhadas nos convivas.
Amigos amigos, relação institucional à parte
Apesar de ter dito aos jornalistas que estava “irmanado” com António Costa nas comemorações do Dia de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de referir, ainda em Paris, que havia diferenças entre ambos. “Há diversidades”. E exemplificou: “Eu vou à missa, e o sr. primeiro-ministro não vai à missa. Temos visões diversas sobre vários aspetos e maneiras de encarar o mundo.”
Quase antes da partida para Portugal, António Costa também havia de reconhecer, durante uma visita à exposição de Amadeu Souza-Cardozo no Grand Palais, que “a relação com o atual Presidente é objetivamente muito saudável e muito sólida”.
Não posso esconder que boas relações pessoais ajudam a boas relações institucionais. Mas, como já disse o Presidente da República, as relações institucionais têm de superar essa relação pessoal”, afirmou António Costa aos jornalistas.
Não parecia haver sombra de mal-estar por causa do veto às barrigas de aluguer, nem por causa das advertências na promulgação da lei das 35 horas, ou por Marcelo Rebelo de Sousa ter dito que as autárquicas de 2017 poderiam marcar um novo ciclo político. Ainda menos tensão haveria por causa ao cumprimento das metas orçamentais. “Nunca vi nas palavras do presidente qualquer tipo de crítica, mas sempre um incentivo para que o Governo persista nos objetivos”, disse Costa. Se um dia tudo mudar e Marcelo tiver de agir com mais dureza contra o Governo, poderá ter de se inspirar no cinema para recordar estes dias: “António, sempre teremos Paris!”