Mar, calor, água a ir contra a terra, cidade costeira, pensa-se em muito com o que entra pelo nariz. O metro fica quieto, para e deixa pessoas sair em Vieux-Port. Não se podia estar mais no centro da cidade. Subo as escadas para arranhar a superfície e, no corredor para se ir dali para fora, aparece o cheiro que diz tudo. A maresia misturada com um leve cheiro a peixe, no limiar do agradável. São as saudades de estar perto do mar que escrevem este parágrafo, um pouco abafadas pela cabeça de Quaresma que fixou Marselha como o destino seguinte da seleção. Je remercie à Ricardo. Agradeci-lhe outra vez ao sair do metro e olhar à volta.

O porto é velho, como diz o nome, e tem um quê de opulento. São prédios antigos, fachadas bonitas pela antiguidade, cores leves, sintomas de estarem habituadas a apanhar sol. O rebuliço não é muito, é o suficiente, turistas para lá e para cá, o calor apanha todos. Aqui, na praça que é uma montra para a água parada, que serve de marina, está tudo tranquilo. Olho para um dos cantos e reconheço-o. Foi retratado em éne vídeos. É um sítio bonito, fachadas com restaurante e esplanadas, que foi tornado feio há semanas, quando ingleses e russos tiveram um amigo em comum e beberam álcool suficiente para ficarem inimigos entre eles.

Ainda essas seleções não tinham jogado e o calor, a pouca roupa e a pele à mostra, a vista para o mar e a cidade com queda para a vida em função da água eram manchadas. Por violência, confrontos, pancadaria entre adeptos, garrafas e pedras a voarem, gás lacrimogéneo entre bastonadas da polícia. Houve detidos, feridos para tratar no hospital, adeptos corridos do país e um murro na mesa da UEFA, que ameaçou correr com Inglaterra e Rússia. Quem não conhecia Marselha passou a tê-la como sinónimo de violência nos primeiros dias de Europeu. É por isso que, mesmo tranquila, esta praça no velho porto da cidade não esteja tão normal quanto isso. Não pode estar.

Há polícias de todo o tipo. Uns de calções e polo, a pedalarem em pequenos pelotões de bicicletas. Outros, em grupos mais pequenos, vigiam em pé, aos cantos da praça ou em sítios por onde há mais gente a passar. As carrinhas dos gendarmerie, os guardas, vão passando e estacionando. O grande irmão policial está a olhar por nós. E Hocine Jermoune também. Vejo-o a poucos metros da saída do metro, em pé, mas à sombra da pala gigante que cobre a praça e serve de íman às pessoas, por ter um teto refletor que é sedutor para a fotografia. Ele é um segurança privado, é fácil de despistar — o polo azul que veste, o boné que lhe protege a testa, o pastor alemão que tem ao lado, com rédea curta.

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A praça do porto de Marselha

Tem a tarefa de olhar pela praça, controlar a praça, manter a tranquilidade, tal e qual tinha no dia em que ingleses e russos inventaram uma batalha campal por ali. “Notava-se um certo ambiente, um entusiasmo, aquelas sensações típicas do futebol”, conta, pausadamente, abrandado pelo calor. “Claro que o álcool foi a chave para deteriorar esse ambiente. As piadas e as brincadeiras evoluíram para os confrontos físicos”, resume. Abana a cabeça no final de quase todas as frases que dedica a estas memórias. Isto desalenta-o: “Não gosto de violência, odeio-a. O facto de estar aqui, a assistir a tudo, a ver os feridos e as garrafas a voarem, assustou-me, claro. Normalmente, um Campeonato da Europa como este devia mostrar uma Europa da fraternidade, uma Europa do futebol, do desporto. Isso é que deveríamos ver, contacto, sorrisos e alegria”.

Hocine, 54 anos, culpa o álcool, deixa grande parte da responsabilidade no que se bebe e altera as pessoas por dentro. Sabe que foi isso, viu-o, e não esquece como teve de “evitar as garrafas que voavam” quando a violência acordou. Ele e Anzo, o cão de quatro anos que é como uma sombra com vida própria, não o larga. “Ele reagiu, ladrou muito, mas consegui acalmá-lo. It’s not good moment”, solta, com a brevidade que o parco inglês lhe deixa ter para o jornalista com o francês sofrível se ficar a sentir melhor. Merci. Foram momentos que a cidade não quer deixar repetir. Daí os tantos polícias que por ali andam, a zelarem por tudo. “Todos os dias eles estão aqui, com muitas agentes. Mesmo que não seja dia de jogo, há sempre a preocupação do terrorismo e aqui estamos no centro de Marselha”, explica-me.

O ar de lamento não lhe sai da cara. Conta e retrata Marselha como cidade de boa gente, pessoas tranquilas, cheia de jovens amantes do “ambiente” — é uma palavra que repete muito, “l’ambiance” –, do estar a beber nas esplanadas, do ir aos aperitivos nos finais de tarde. Do “fazer a festa”. Marselha vive o futebol, tem-no rente à pele, vibra com ele, e Hocine sabe que, por vezes, a violência espreita e não é preciso o Europeu parar aqui. “Quando já jogos aqui contra o Paris Saint-Germain, talvez. Mas a polícia daqui já tem experiência nestas coisas. Há pouco tempo até houve confrontos na gare [estação], mas eles conseguiram tomar conta da situação”, revela, com postura de quem parece ser a pacatez em pessoa.

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Anzo, o pastor alemão, ladra repentinamente para as nossas costas. Hocine vira-se, espicaçado pelo momento, e puxa a trela enquanto repara que o motivo do latido é um cão pequenote, que passou ali a metros. Anzo amansa, volta a deitar-se, a descansar à sombra. A conversa rola e ouvimos sirenes, chegam mais carrinhas da polícia, o hábito cíclico mantém-se. A segurança é um bem precioso e tenho um senhor e um cão ao lado que o provam, além de todos os agentes, meios, armas, veículos, olhos e músculos que por ali andam. Hocine faz a sua parte, diz que o clima leva todos a “baterem na madeira”.

Estranho, não o percebo, mas entendo que o momento lost in translation se deve a uma expressão que não se deve traduzir à letra. “On touche du bois. Sabes? É uma expressão que costumamos dizer aqui em França, para que o mal não chegue. Foi inspirada no momento em que Jesus foi crucificado na madeira. Depois de um acontecimento mau dizemos essa expressão, para que não volte a acontecer”, explica-me, devagarinho, quer ter a certeza que o percebo nisto. Tento explicar-se que os portugueses não o dizem, mas fazem-no, a expressão que eles têm em França é o gesto que nós temos em Portugal. Ele entende-me, penso.

Dito ou feito, ficamos os dois a pensar na madeira e a afastar coisas más. Hocine sabe que não se tem de preocupar com os portugueses: “Os polacos ça va, mas menos tranquilos que os portugueses, que são bons, não provocam nada. São tranquilos”.