Bob Dylan é o vencedor do prémio Nobel da Literatura 2016, “por ter criado novas expressões poéticas na tradição da canção americana”. O anúncio foi feito esta quinta-feira pela Academia Sueca, em Estocolmo. “É um poeta maravilhoso”, justificou a secretária permanente Sara Danius. É a primeira vez que o Nobel é entregue a um compositor, “que pode e deve ser lido”, para além de escutado.
Apesar de Bob Dylan ser presença habitual nas listas que tentam adivinhar qual será o vencedor, é uma escolha que pode ser polémica, sobretudo porque a carreira de Robert Allen Zimmerman — verdadeiro nome de Dylan — é sobretudo musical. O norte-americano de 75 anos merece o Nobel porque “é um grande poeta”, capaz de se “reinventar” ao longo de 54 anos de carreira, justificou Sara Danius, que garantiu ter havido “grande unanimidade” entre os jurados.
Sobre se antecipa críticas à escolha da Academia, respondeu simplesmente um “espero que não.” E acrescentou: “Talvez the times they are a’changing“, numa alusão à música de Dylan com o mesmo nome.
Já em 2008 o músico causou surpresa, ao ter vencido um Pulitzer especial pelo seu “profundo impacto na música popular e na cultura americana, marcado pela sua composição lírica de extraordinário poder poético”.
BREAKING 2016 #NobelPrize in Literature to Bob Dylan “for having created new poetic expressions within the great American song tradition” pic.twitter.com/XYkeJKRfhv
— The Nobel Prize (@NobelPrize) October 13, 2016
Para quem só agora quer começar a ouvir as canções ou a ler os livros de um dos maiores nomes da música do século XX, Sara Danius aconselhou Blonde on Blonde, sétimo disco do norte-americano, de onde saíram canções como “Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again” ou “Just Like a Woman”. Um bom exemplo “da sua forma brilhante de rimar”, acrescentou a secretária, que a cada pergunta sobre a carreira musical de Dylan tenta incluir na conversa os dotes poéticos do laureado.
Quem pesquisar livros da sua autoria tem mais probabilidade de encontrar obras escritas sobre o músico, e não por ele. O primeiro livro que publicou, em 1971, chama-se Tarantula e é um misto experimental entre prosa e poesia. Encontra-se traduzido para português pela já extinta Quasi Edições, cogerida por Jorge Reis-Sá e Valter Hugo Mãe.
Mas o livro mais popular do músico será Crónicas: Volume 1, lançado em 2004 (editado em Portugal pela chancela Ulisseia). Primeira parte das memórias do autor de “Like a Rolling Stone”, a ideia era que a autobiografia tivesse mais volumes. Mas Dylan nunca mais publicou a segunda parte. É através destas páginas que o leitor fica a saber que Robert Allen Zimmerman, nascido a 24 de maio de 1941 no Estado americano do Minnesota, numa América onde a segregação racial era a realidade do dia-a-dia, começou a escrever poemas com dez anos de idade. E que aprendeu sozinho a tocar piano e guitarra.
Em 1961, deixa a universidade e a sua cidade para trás e muda-se para Nova Iorque, onde começa a tocar em cafés e clubes na zona de Greenwich Village. Influenciado por Woody Guthrie, editou o seu álbum de estreia, homónimo, em 1962, feito sobretudo de versões de canções tradicionais.
No ano seguinte, dá ao mundo The Freewheelin’ Bob Dylan. Logo a abrir, “Blowin’ in the Wind”, que se torna imediatamente canção hino de protesto e que, até aos dias de hoje, vai acumulando versões de diferentes artistas. “Girl from the North Country”, “Masters of War”, “A Hard Rain’s a-Gonna Fall” e “Don’t Think Twice, It’s All Right” estão também neste disco, obrigatório para quem quer conhecer a carreira do novo Nobel da Literatura, e onde a poesia é longa e não se subjuga às doutrinas da pop. “Masters of War”, por exemplo, tem oito estrofes anti-corrida ao armamento, que marcou a Guerra Fria.
Há uma data que ficará marcada para sempre na biografia do músico: 25 de julho de 1965. Depois de duas participações no Newport Folk Festival, em 1963 e 1964, com Joan Baez, Dylan aparece como cabeça de cartaz em 1965 e decide fazer, ali mesmo, o seu primeiro espetáculo elétrico. A reação às guitarras elétricas, por oposição à tradição blues/folk, chegaou em forma de apupos, vaias e até ameaças por parte do público. Foi um choque para o mundo da música em geral. É também nesse ano que lança Bringing It All Back Home, já com as primeiras canções rock n’roll — “Subterranean Homesick Blues” –, sem esquecer o lado acústico — “Mr. Tambourine Man”.
The Times They Are a-Changing?
Discutir a escolha do laureado é quase um desporto internacional. Mas o facto de ter vencido um músico pode abrir uma Caixa de Pandora — e os possíveis candidatos são muitos, de Leonard Cohen a Chico Buarque, ou Patti Smith. Para o Ministério da Cultura português, que reagiu no Twitter, “é o reconhecimento de um grande poeta que alia de forma exemplar a palavra e a música”. Bruno Vieira Amaral, que no ano passado venceu o Prémio José Saramago, considera que “mais do que qualquer outra coisa, este prémio é um manguito a todos os grandes escritores norte-americanos dos últimos 40 anos. Roth, McCarthy, DeLillo, Pynchon, foram ultrapassados de moto por Dylan.”
Um dos nomes mais frequentemente apontados à corrida ao Nobel é Salman Rushdie. O autor d’OsVersículos Satânicos não tem dúvidas de que a música e a poesia andam de mãos dadas e que Bob Dylan as conjuga como só os melhores sabem.
From Orpheus to Faiz,song & poetry have been closely linked. Dylan is the brilliant inheritor of the bardic tradition.Great choice. #Nobel
— Salman Rushdie (@SalmanRushdie) October 13, 2016
Também Joyce Carol Oates, eterna candidata à distinção e sempre muito interventiva no Twitter, defende a escolha da Academia Sueca.
No, I think that the Nobel committee thought long & carefully about this choice, & that it is, while perhaps controversial, very deserving. https://t.co/9tbG2RV9nB
— Joyce Carol Oates (@JoyceCarolOates) October 13, 2016
Ao Observador, o britânico Michael Gray, autor do primeiro trabalho crítico da obra Dylaniana, em 1972, com Song & Dance Man: The Art of Bob Dylan, acolhe com normalidade a ausência de unanimidade nas notícias. “Não só por ser músico, mas porque ele sempre causou reações mistas, há quem não goste das suas músicas, atitudes, livros, filmes, quadros“, lembra, numa entrevista telefónica.
O estudioso da carreira de Dylan não previu um dia como o de hoje. “Bem, sempre achei que ele nunca o receberia. Mas agora estou muito satisfeito.” E Dylan, que ainda não reagiu: estará satisfeito? “Não sei, não posso falar por ele”, começa por dizer Gray. “Mas acho que uma pequena parte dele está desiludida.” Isto porque, quando era jovem, o autor de “Knockin’ on Heaven’s Door” era contra prémios, por serem uma espécie de tributo à segurança, ao establishment. “Se ele estivesse a fazer algo novo, disruptivo, não ganharia os prémios”, afirma, lembrando a fase em que trocou o blues, o folk e o country pela guitarra elétrica, chocando a indústria.
Sobre a poesia musicada de Dylan, Michael Gray destaca duas passagens. A primeira é de “Idiot Wind“, do disco Blood on the Tracks, de 1975:
Down the highway, down the tracks
Down the road to ecstasy
I followed you beneath the stars
Hounded by your memory
And all your ragin’ glory
A segunda passagem que o autor destaca está incluída em “Mr. Tambourine Man”, esccrita 10 anos antes:
Yes, to dance beneath the diamond sky
With one hand waving free
Silhouetted by the sea
Circled by the circus sands
With all memory and fate
Driven deep beneath the waves
Let me forget about today until tomorrow.
Teremos um novo livro de Dylan para ler?
Para além dos volumes já mencionados, o músico conta na sua bibliografia com alguns livros de arte. Michael Gray, autor de várias obras sobre Dylan, descreve Tarantula como “maravilhoso e muito divertido”, com “sátiras maravilhosas sobre a consciência norte-americana contemporânea”, ainda que “não seja fácil de compreender”.
As Crónicas: Volume 1 são totalmente diferentes, desde logo porque autobiográficas. No entanto, Gray alerta para o “erro” que é encarar estas páginas como um retrato fiel da sua história. “Ele evita claramente escrever sobre a maior parte dos momentos mais importantes da sua carreira, como o momento em que se torna elétrico, em 1965″, aponta. Um exemplo de como Dylan nunca teve uma relação aberta com a fama. Também por duas vezes escreve “a minha mulher” ao longo do livro, apesar de se estar a referir a duas pessoas diferentes: Sara Lownds, com quem se casou em 1965 e se divorciou em 1977, e Carolyn Dennis, esposa entre 1986 e 1992. Os mais atentos, como Scott Warmuth, notaram também frases inteiras de outros escritores mais antigos, como Jack London e Robert Louis Stevenson, num tributo disfarçado.
“Não espere pelas Crónicas: Volume 2“, avisa. Apesar de Dylan ter dito numa entrevista à Rolling Stone, em 2012, que estava a trabalhar nelas, o autor considera que “já estão incorporadas no Volume 1”. “Acho que provavelmente nunca vão chegar… Mas eu erro muitas vezes [risos].”
Quem quiser ler as letras das canções que valeram, pela primeira vez, o Prémio Nobel a um músico, pode fazê-lo em português e em inglês, graças à editora Relógio D’Água. Em Canções Volume 1 (1962 – 1973) estão as composições abrangidas por aquele espaço temporal. Na página da esquerda fica o texto original, em inglês, e na página da direita, em espelho, a tradução feita por Angelina Barbosa e Pedro Serrano. O mesmo se passa em Canções Volume 2 (1974 – 2001).
Depois de 2001, a editora não voltou a traduzir as canções. Para Michael Gray, não vem grande mal ao mundo. Assumidamente fã, reconhece que “nem todos os trabalhos sao marailhosos” e considera mesmo que “o grande último álbum é Love and Theft, de 2001″. Os restantes, entre os quais o 35.º e último de originais, Tempest, de 2012, não estão à altura de composições passadas. Este ano saiu Fallen Angels, feito de versões de cantores e compositores norte-americanos, como Johnny Cash.
Há 23 anos que não vencia um norte-americano
Desde Toni Morrison, em 1993, que um norte-americano não vencia o Nobel da Literatura. Já no ano passado a escolha foi surpreendente com Svetlana Aleksievich, escritora bielorrussa de não-ficção cujos livros se centram na história da União Soviética e na identidade russa. Em 113 premiados, apenas 14 são mulheres. Para além do prestígio, o vencedor ganha oito milhões de coroas suecas (cerca de 821 mil euros, à taxa de câmbio atual).
Ao contrário de prémios como o Man Booker Prize ou o Prémio Camões, o vencedor do Nobel é sempre uma incógnita, já que não existe lista de finalistas. Ainda assim, há nomes que se repetem ano após ano nas listas de apostas, casos de Philip Roth, Joyce Carol Oates e Haruki Murakami. Bob Dylan também costuma ser presença habitual, mas não nos lugares cimeiros.
Para esta edição, a empresa britânica de apostas Ladbrokes, por exemplo, colocava no primeiro lugar o queniano Ngugi wa Thiong’o, seguido do japonês Murakami, o poeta Adonis, o romancista americano Don DeLillo e, em quinto lugar, o norueguês Jon Fosse.
O dia em que o mundo conhece mais um prémio Nobel da Literatura fica marcado pela morte de Dario Fo. O escritor e dramaturgo italiano foi distinguido pela Academia Sueca em 1997. Faleceu esta quinta-feira, aos 90 anos de idade.