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Guardar, transformar numa árvore ou, até, numa jóia. O que fazer às cinzas depois da cremação?

Este artigo tem mais de 5 anos

"Ninguém sofre ou ama mais outro pela forma como coloca as cinzas", diz um responsável da Servilusa. O Vaticano pede aos seus fiéis que mantenham as cinzas em lugares sagrados. Há outras opções?

Cemitérios dispõem de espaços próprios para depositar as cinzas
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Cemitérios dispõem de espaços próprios para depositar as cinzas

MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR

Cemitérios dispõem de espaços próprios para depositar as cinzas

MICHAEL M. MATIAS /OBSERVADOR

A ideia do corpo em putrefação debaixo da terra, que anos depois será removido e trasladado para uma gaveta prolongando a dor do luto. Os cemitérios sobrelotados, que vendem os terrenos a preços exorbitantes ou que nem sequer dão essa opção. As deslocações ao cemitério. Estas são, segundo quem lida com o negócio da morte, apenas algumas das razões que fizeram disparar o número de cremações — que em 2010 rondava as 8700, para em 2015 quase duplicarem para 15 mil. E mesmo com o Vaticano a preferir manter as cinzas nos cemitérios, vai haver quem continue a levar as cinzas consigo. Para onde?

Os destinos variam e as opções tomadas pelas pessoas não diferem por serem católicas ou não católicas. Grande parte dos clientes das funerárias opta por deixar as cinzas dos seus familiares ou amigos no cemitério, em locais apropriados. Mas muitos preferem trazer as cinzas para casa. Depois, há quem as conserve por perto das mais diversas formas, quem as mande transformar em obras de arte e, até, quem as lance à Natureza, delegando-lhe o destino final.

“Ninguém sofre ou ama mais outro pela forma como coloca as cinzas”, afirma ao Observador Paulo Carreira, diretor geral de Negócio, da Servilusa.

O aumento do número de cremações nos últimos anos tem, na perspetiva do presidente da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), uma explicação quase “sociológica”. Ao Observador, Carlos Almeida recorda que entre 70 a 80% das pessoas, entre as décadas de 50 a 70, migraram do interior para o litoral do país e instalaram-se nas metrópoles e arredores. Consequência: “Sociologicamente ficaram desenraizados, criaram novos laços e estas novas cidades onde vivem disponibilizam um terreno no cemitério por um prazo legal. Em Lisboa, dois metros quadrados custam 10 mil euros, depois a construção conforme as regras do cemitério custa mais 4 ou 5 mil euros e há a manutenção dez anos depois. Alguém está disponível para pagar estes valores?”, interroga-se.

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Por outro lado, perdeu-se a ligação às terras onde muitas vezes as pessoas até tinham jazigos de família. Afastaram-se esses locais como hipótese de sepultura. Recorde-se, ainda, que mesmo quando se opta por terrenos provisórios, as ossadas do defunto têm que ser depois levantadas — terminado o prazo legal — e mudadas de sítio.”Parece um funeral sem fim”, diz por seu turno Vítor Cristão, presidente da Associação Agentes Funerários de Portugal ao Observador.

Mas há outras razões que levam à opção pela cremação. Há quem já não se reveja na ida ao cemitério como forma de culto dos mortos e que mantenha, até, uma visão mais “higienista e ecológica” do defunto. “Há uma morbidez associada à putrefação do corpo, debaixo da terra”, justifica Carlos Almeida.

O diretor geral de negócio da Servilusa, Paulo Carreira, afirma que há várias opções no mercado e o site da própria empresa assim o mostra. Nos cemitérios onde estão instalados os seis crematórios da Servilusa existe o chamado “Jardim da Memória”, para onde podem ser lançadas as cinzas. E já muitos cemitérios começam a disponibilizar locais para o mesmo efeito. Para quem não queira dispersar as cinzas, como aliás recomenda o Vaticano, poderá optar por comprar um gavetão à junta de freguesia para depositar as cinzas.

Para quem recusa deixar as cinzas no cemitério, mas não sabe bem o que lhes vais fazer, há agências funerárias com espaços provisórios nas suas sedes. Carlos Almeida é gerente de uma delas. Na funerária do Alto Pina fez obras e destinou um espaço provisório para depositar as cinzas dos mortos cujos familiares ainda não sabem bem o que fazer com elas. Há cinzas que já ali esperam um destino há dois anos. Mas Carlos Almeida garante que há um contacto frequente e que não estão esquecidas.

Carlos Almeida refere, ainda, que há todo um universo de urnas para armazenar as cinzas. E de todos os preços. Das mais simples às mais ornamentadas e dos mais diversos materiais: aço, madeira, louça, material biodegradável para a terra e para a água. Há, também, quem opte pela discrição e de uma obra de arte faça uma urna. “Já vi uma estatueta tipo africana, enorme, em que no fundo se colocavam as cinzas. Também há quadros de parede em que na frente está, por exemplo, uma aguarela do “falecido ou o seu retrato e, por trás, uma caixa inviolável onde se guardam as cinzas. Não se parte se cair no chão”, afirma Carlos Almeida. Escolhas que servem para, nas palavras de Paulo Carreira, “não ferir suscetibilidades” de quem possa ir lá a casa. Há, também, quem escolha objetos aos quais o defunto sentia alguma ligação e os adapte a um depósito de cinzas.

“A morte como homenagem é algo muito íntimo, cada um vive à sua maneira”, diz Paulo Carreira.

Mas as opções não se resumem a urnas mais ou menos complexas. As agências funerárias conhecem empresas suíças que fazem diamantes com as cinzas e com os cabelos dos defuntos. Carlos Almeida nunca vendeu nenhuma joia para um anel ou para um pêndulo, mas Paulo Carreira diz que sim, que já fez negócios destes. “Estamos a falar de uma forma de fazer diamantes sintéticos, trata-se da transformação de carbono em diamante. O que fazemos é a extração deste carbono através do cabelo. Na Europa fazem com cinzas, mas como não tem a mesma garantia que tem com o cabelo nós não fazemos”, diz o responsável da Servilusa, empresa portuguesa que detém 55 agências funerárias de norte a sul do país. Um diamante destes pode custar 700 a 800 euros. Há até uma empresa holandesa que se dedica a fazer pêndulos em ouro ou em prata com a impressão digital do defunto. Mas esta é apenas uma forma de guardar uma recordação do ente querido e não de conservar as cinzas.

Para quem deseja que as cinzas sejam absorvidas pela Natureza — o que o Vaticano repudia — pode optar por uma urna biodegradável, seja para a água ou para a terra. Também há urnas que trazem já terra e sementes e que podem, depois, ser plantadas e gerar uma árvore. Uma solução que Carlos Almeida não recomenda aos seus clientes, pelo menos,”quando envolve crianças aconselho a não fazer, porque se a Natureza não permitir fazer nascer a árvore, será qualquer coisa para a criança como perder um animal de estimação, uma frustração enorme”, diz. Para Paulo Carreira esta opção significa um ciclo.

Há ainda a polémica opção de lançar as cinzas ao mar. O presidente da Associação de Agentes Funerários de Portugal, Vítor Cristão, afirma renitente ao Observador que há funerárias que garantem este serviço. “Mas não é permitido”, diz. Também a Marinha usou o mesmo argumento em 2014, quando o Bloco de Esquerda se indignou por ter sido numa embarcação da Marinha que as cinzas do comandante Alpoim Calvão viajaram até ao seu destino final. A explicação oficial viria a informar que qualquer pessoa podia pedir ajuda à Marinha para deitar ao mar cinzas resultantes de uma cremação. Isto desde 1999, em que um despacho interno da Armada de Guerra estabelecia as regras para que uma cerimónia destas decorresse “com dignidade”. Assim, só a Marinha podia fazer este tipo de cerimónia.

No entanto, este é um serviço que a Servilusa oferece no seu site, “utilizando uma urna de cinzas biodegradável com registo de coordenadas GPS”, lê-se. “O transporte marítimo da família e amigos pode ser feito num iate de 32 lugares, num veleiro de 12 lugares ou numa lancha de nove lugares”, acrescenta. Este não é um serviço exclusivo desta empresa. Também Carlos Almeida oferece o mesmo serviço na agência que gere, a do Alto Pina. “É uma cerimónia muito bonita, porque se vê Lisboa de uma perspetiva completamente diferente. No final dá-se o comprovativo da localização onde foram colocadas as cinzas”. O serviço é feito por uma empresa portuguesa contratada pelas funerárias.

Carlos Almeida escuda-se na lei que regula a remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres, em vigor desde 1999. Diz que antes, sim, era necessário passar por um processo burocrático de autorização da Marinha e as cinzas tinham que ser lançadas das embarcações do Estado a duas milhas da costa. Hoje, o destino das cinzas em caso de cremação está previsto numa lei que é muito clara em relação à sua livre circulação:

  1. “As cinzas resultantes de cremação ordenada pela entidade responsável pela administração do cemitério são colocadas em cendrário.
  2. As cinzas resultantes das restantes cremações podem ser:
    a) Colocadas em cendrário;
    b) Colocadas em sepultura, jazigo, ossário ou columbário, dentro de recipiente apropriado;
    c) Entregues, dentro de recipiente apropriado, a quem tiver requerido a cremação, sendo livre o seu destino final.

Perante o aumento do número de cremações a nível internacional, o Vaticano decidiu emitir esta semana uma instrução onde define a sua posição. A Igreja prefere que os corpos sejam sepultados, mas não se opõe à cremação, desde que as cinzas sejam depositadas em locais sagrados, de forma a favorecer “a memória e a oração pelos defuntos da parte dos seus familiares e de toda a comunidade cristã, assim como a veneração dos mártires e dos santos”, lê-se no documento assinado pelo prefeito Müller e aprovado pelo Papa Francisco.

“Enterrando os corpos dos fiéis defuntos, a Igreja confirma a fé na ressurreição da carne, [e deseja colocar em relevo a grande dignidade do corpo humano como parte integrante da pessoa da qual o corpo condivide a história. Não pode, por isso, permitir comportamentos e ritos que envolvam concepções erróneas sobre a morte: seja o aniquilamento definitivo da pessoa; seja o momento da sua fusão com a Mãe natureza ou com o universo; seja como uma etapa no processo da reincarnação; seja ainda, como a libertação definitiva da “prisão” do corpo”, refere o Vaticano.

Os agentes funerários ouvidos pelo Observador lembram que não se pode privar outros cidadãos que não sejam católicos de escolherem o que querem fazer com as cinzas. A advogada Margarida Santos Jorge, que se tem dedicado ao direito canónico, explica, por isso, ao Observador que o “Estado do Vaticano é independente do Estado Português”. E que apesar de haver uma Concordata entre os dois para assuntos como o do matrimónio, não existe qualquer concordata relativamente ao tema das cremações. “Foi só uma orientação para os fiéis para quem quer seguir aquilo que diz o Papa. Tinha-se uma ideia que se podia enterrar os mortos, se podiam cremar. O Papa foi muito claro: não proíbe as cremações mas recusa que as cinzas sem dispersas, seja pela família, seja pela natureza. Não podemos desprezar algo, como o corpo, que nos ajuda a comunicar com Deus”, diz.

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