Arrumou-se (por ora) o episódio dos elevados salários dos gestores da Caixa Geral de Depósitos e entrou-se num segundo ato: a equipa de António Domingues está ou não está isenta de entregar as respetivas declarações de rendimentos e património no Tribunal Constitucional? É que quando o Governo convidou os novos administradores do banco público ter-lhes-á prometido que, com a exceção que seria criada ao estatuto de gestor público, ficariam de fora não só dos limites salariais como também da obrigação de divulgarem os seus rendimentos à chegada e à saída do mandato. Só que não será bem assim…

Estoirada a polémica, o gabinete de Mário Centeno começou por afirmar que não havia “lapso” nenhum e que o escrutínio era feito através da própria Caixa (a quem os administradores apresentaram declaração de rendimentos) e do acionista Estado; António Costa pôs depois o PS a dizer que a lei em vigor (uma lei de 1983) obriga à transparência e que, por isso, os gestores do banco não eram exceção. Mas, pelo sim pelo não, e por respeito à “separação de poderes”, remeteu a decisão para o Tribunal Constitucional, que deveria funcionar aqui como árbitro e notificar os administradores a mostrarem os seus rendimentos. Mas o Tribunal Constitucional veio dizer que aguardava um “estímulo” para o fazer, ou seja, que precisaria de ser interpelado para agir nesse sentido. O estímulo chegou esta sexta-feira, por via do Presidente da República.

Marcelo Rebelo de Sousa, que se mantivera em silêncio durante o desenrolar da novela, decidiu emitir uma espécie de parecer jurídico (com o carimbo extra de ser um parecer presidencial) sobre o assunto. Pressionando todos os intervenientes em todas as direções: a lei é clara e os administradores da Caixa têm de apresentar a declaração de rendimentos, dizia, acrescentando que cabia ao TC descalçar acabar com este impasse.

Estímulo suficiente? Talvez sim. As notificações dos juízes do Palácio Ratton chegarão em breve à caixa de correio dos gestores da CGD.

O que pensa o PSD e que propostas tem

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  • Salários. Limitar os salários dos gestores ao salário do primeiro-ministro mas com uma exceção: ministro das Finanças pode autorizar um salário superior para determinado administrador, se achar “razoável”, desde que esse salário não exceda a média da remuneração que aquele gestor auferiu nos últimos três anos.
  • Transparência. Alterar o estatuto do gestor público e impor deveres de transparência aos administradores da Caixa, nomeadamente através da publicação obrigatória dos documentos no site da empresa pública em questão.

Propostas do PSD já deram entrada no Parlamento, sob a forma de projetos de lei.

No meio desta guerra, no Parlamento, os partidos atropelavam-se para cavalgar a onda, ora dos salários elevados ora da falta deliberada de escrutínio, chegando à estranha união de que todos, da esquerda à direita, concordavam com o princípio: sim, é preciso mostrar os rendimentos; sim, os administradores da Caixa, que foram excecionados do estatuto de gestores público, não podem ser excecionados do dever de transparência.

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Só que uns (à direita) dizem que é preciso mexer na lei, para retirar a exceção imposta pelo atual Governo. E os outros (à esquerda) dizem que a lei em vigor já os obriga a tal. Todos se multiplicaram em anúncios sobre propostas legislativas, com o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, a dizer mesmo que seria “uma vergonha nacional” que os partidos, que concordam com o princípio, não conseguissem aprovar uma lei para obrigar à transparência. Primeiro age o Parlamento e depois o TC? Ou primeiro o TC e só depois, se não der certo, o Parlamento?

É, na verdade, uma novela sem fim. Portanto, o que tem dito cada interveniente sobre isto?

Não é lapso, Centeno diz que Governo já faz escrutínio suficiente

Foi aqui que tudo começou. Luís Marques Mendes, no espaço de comentário na SIC, lançou a dúvida de que o regime de exceção em que o Governo tinha colocado os gestores da Caixa também os podia isentar de divulgar publicamente os seus rendimentos. Lançada a dúvida, o gabinete do ministério das Finanças respondeu: não era “lapso”, não eram mesmo obrigados a declarar rendimentos ao TC.

O que pensa o BE e que propostas tem

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  • Salários. BE quer limitar salários dos gestores públicos ao salário do primeiro-ministro, sem exceções.
  • Transparência. BE entende que a lei em vigor já obriga todos os gestores públicos, incluindo da CGD, à entrega das declarações de rendimentos e incompatibilidade.

O BE, contudo, só vai apresentar estas propostas no âmbito das propostas de alteração ao Orçamento do Estado.

“Os corpos dirigentes da CGD têm que prestar contas ao acionista e aos órgãos de controlo interno” e “estão disponíveis para revelar essa informação ao acionista”, explicava Mário Centeno num comunicado, dizendo que o controlo e o escrutínio já eram feitos pelo Estado e que Domingues e companhia já tinham remetido as suas declarações de rendimentos à própria Caixa e, consequentemente, ao Governo. Isso chegava. A ideia, explicava Centeno, era mesmo essa: a Caixa ser tratada como qualquer outro banco privado e, assim sendo, não tinha de ser sujeita às mesmas regras das empresas públicas.

Mas não foi isso que depois veio dizer o primeiro-ministro, depois o líder parlamentares do PS e esta segunda-feira o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, que, em entrevista ao DN/TSF, negou que tenha sido intenção do Governo excecionar os gestores da Caixa em relação à obrigação de escrutínio público. “Se fosse essa a nossa intenção tínhamos alterado a legislação” de 1983, disse, atirando mais esclarecimentos para o ministro das Finanças.

Palavra de César (e de Costa): lei é lei, gestores têm de declarar

Governo e PS aparecem aqui, numa primeira fase, a falar a duas vozes. Depois de o ministro das Finanças ter vindo dar voz ao acordo que tinha feito com os novos administradores da Caixa (de que não teriam de divulgar declaração de rendimentos porque estavam isentos do estatuto de gestores públicos), António Costa e Carlos César aparecem concertados e com as tarefas dividias: um empurra a decisão para o Tribunal Constitucional; o outro diz que lei é lei e a lei do controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos obriga os gestores a declarar o património. A partir daí, a posição do PS ficou definida e não voltou a haver foras de tom: é apologista da entrega da declaração de rendimentos no TC.

Em causa está a lei 4/83 que regula o controle público da riqueza dos titulares dos cargos políticos e que obriga os gestores públicos e os titulares de empresas participadas pelo Estado a apresentarem no Tribunal Constitucional, “no prazo de 60 dias contado da data de início do exercício das respetivas funções, a declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais”.

Enquanto Carlos César dava voz a esta posição, António Costa tentava não contrariar em absoluto o que tinha sido dito pelo ministro das Finanças. “No que diz respeito às obrigações do Conselho de Administração em relação ao acionista, o Estado, essas estão cumpridas”, dizia Costa, sublinhando que o escrutínio da administração por parte do acionista Estado estava a ser feito. Se não fosse suficiente, então Costa empurrava as demais decisões para o Tribunal Constitucional — em nome da boa “separação de poderes”. “Compete ao Tribunal Constitucional apreciar se [declarações] são ou não devidas”, dizia. Mas uma coisa é certa: “se há valores legais a cumprir, há que cumpri-los”. Ou seja, lei é para cumprir.

PSD diz que lei não obriga, por isso propõe alteração e pressiona esquerda a apoiar

Mas nem todos entendem que a lei atualmente em vigor obriga de facto os administradores da Caixa a declarar e, portanto, há quem queira mudar a lei. É o caso do PSD, que foi o único partido a avançar efetivamente com projetos de lei nesse sentido, ainda que CDS e BE também mostrem vontade de o fazer. Para o PSD, além dos limites aos salários, é também preciso mudar a lei para repor a obrigação de os gestores da CGD apresentarem as declarações de rendimentos ao Tribunal Constitucional. Mas os sociais-democratas vão mais longe, obrigando mesmo à publicação dos contratos de gestão na Internet e à declaração (antes de início de funções) de todas as participações e interesses patrimoniais e contratuais que detenham “direta ou indiretamente” na empresa onde vão exercer funções.

O que pensa o PCP e que propostas tem

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O PCP tinha uma proposta legislativa relacionada com a limitação dos salários dos gestores da Caixa ao teto máximo de 90% do salário do Presidente da República, mas foi chumbada pelo PS e pelo PSD. Quanto a isto, o PCP não pode voltar a insistir.

Quanto à transparência, o PCP não deve, para já, avançar com nenhuma proposta, por entender que lei já obriga gestores a declarar rendimentos. Se não declararem, no limite, devem perder o mandato.

PCP não deverá ter propostas legislativas sobre esta matéria.

 

O PSD considera que deve ser o Parlamento, enquanto legislador, a esclarecer esta questão, não o TC, e para reforçar isso decidiu até autonomizar o projeto de lei sobre a transparência (deixando a proposta sobre os salários à parte). “Seria uma anedota, um perfeito absurdo”, que não fosse o legislador, a Assembleia da República, a decidir sobre essa matéria, já que a grande maioria dos partidos está de acordo, disse Luís Montenegro na altura. A ideia era pressionar BE e PCP, que também já se manifestaram publicamente contra a isenção de escrutínio conferida aos administradores do banco público, a unirem-se à direita pelo menos nesta questão.

TC só força a barra se tiver um “estímulo” para isso

Mas deve ser o Parlamento a decidir ou deve ser o Tribunal Constitucional? O que o Governo e os partidos da maioria de esquerda acham é que a lei atualmente em vigor já obriga os gestores do banco público a declararem rendimentos, por isso põem o ónus no TC, para desfazer o imbróglio.

Mas o TC também lava daí as suas mãos. No meio da polémica, o presidente do Tribunal Constitucional Costa Andrade disse ao Expresso que os juízes não se iriam pronunciar sobre o caso da entrega da declaração de rendimentos dos administradores da Caixa até fossem questionados sobre o tema. Precisavam de um “estímulo”, dizia. “O Tribunal Constitucional tem que ser estimulado e até agora ninguém o estimulou”.

Um dia depois, o estímulo.

Marcelo, o estímulo chegou

Esteve sempre em silêncio, coordenando posições na retaguarda. Até sexta-feira à tarde. Marcelo Rebelo de Sousa publicou uma nota no site da Presidência da República onde deixou claro qual era o seu entendimento sobre o assunto: a nova administração da Caixa Geral de Depósitos, presidida por António Domingues, tem a obrigação de entregar uma declaração de rendimentos e de património ao Tribunal Constitucional por uma questão legal e de transparência.

O que pensa o CDS e que propostas tem

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  • Salários. CDS quer que, no tempo de exceção enquanto decorre o processo de reestruturação da Caixa, o salário dos administradores do banco tenha o teto do salário do primeiro-ministro, mas com possibilidade de atribuição de prémios por objetivos.
  • Transparência. CDS anunciou que vai avançar com oura proposta autónoma para obrigar os administradores da Caixa a divulgarem rendimentos e património.

Ainda não se conhecem as propostas concretas, sendo que Assunção Cristas já garantiu que vão surgir sob a forma de propostas de alteração ao OE.

Numa nota divulgada no site da Presidência da República, Marcelo defende que é do “interesse nacional” que haja um “consenso nacional em torno da necessidade de transparência, que permita comparar rendimentos e património à partida e à chegada, isto é, no início e no termo do mandato, com a formalização perante o Tribunal Constitucional, imposta pela administração do dinheiro público”. E, por isso, Marcelo “estimulava” os juízes do TC a notificarem os administradores do banco a entregarem as ditas declarações.

Só se o TC não agir, dizia Marcelo, deve ser a Assembleia da República a “clarificar o sentido legal por via legislativa”. Mas, para o Presidente da República, não há dúvidas sobre a interpretação da lei atualmente em vigor: “a obrigação de declaração vincula a administração da Caixa Geral de Depósitos”.

Governo reafirma e atira esclarecimentos para Centeno

No rescaldo da pressão feita pelo Presidente da República, o PS apressou-se a corroborar a tese presidencial de que a lei de 1983 é que vale e que a lei obriga os administradores da Caixa a declarar os rendimentos, apesar do regime de exceção de que gozam como gestores públicos. Do lado do Governo também não tardou a chegar uma segunda versão que dá cobro à mensagem que tem sido passada pelos socialistas, mas agora com o carimbo do Executivo: em entrevista publicada esta segunda-feira pelo Diário de Notícias e TSF, Pedro Nuno Santos reforça a ideia de que os novos administradores da Caixa Geral de Depósitos estão obrigados a depositar no Tribunal Constitucional declarações de rendimentos e atira esclarecimentos adicionais para o ministério das Finanças.

Na entrevista, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares cita a lei de 1983 para afirmar que todos os gestores públicos “têm de apresentar a declaração de rendimentos porque a lei de 83, aliás invocada pelo Presidente da República ainda na sexta-feira, diz isso mesmo e essa não foi alterada e portanto há um conjunto de outras matérias, nomeadamente do ponto de vista remuneratório que não se aplica”.

A lei é clara e, portanto, a bola está do lado do TC, que, como disse Marcelo, deve notificar os administradores da Caixa. Se não o fizer, a bola passa então para a eventual clarificação da lei via Assembleia da República.