Título: “Cortázar. Aulas de Literatura – Berkeley, 1980”
Editora: Cavalo de Ferro
Prefácio e tradução: Miguel Filipe Mochila
Páginas: 312
Convém esclarecer desde logo que Julio Cortázar não é, nem pretende ser, um professor. Cortázar é um escritor mas, tal como ele também faz questão de deixar claro várias vezes ao longo do curso de literatura que é convidado a leccionar na Universidade de Berkeley, em Outubro e Novembro de 1980, ele é, antes de tudo o mais, um latino-americano. Na primeira aula começa por dizer que é «leitor e autor de contos e romances com a mesma dedicação e o mesmo entusiasmo» (p. 17), justificando o facto de começar as suas aulas pela análise dos seus contos, e não dos seus romances, apenas porque os primeiros são «mais acessíveis», deixando-se «prender mais facilmente» (p. 17). Afirmar-se leitor e autor é desde logo indicador da atitude que assume naquela sala, sendo também nessa primeira aula que Cortázar explica que se apercebeu que:
“ser um escritor latino-americano significava fundamentalmente que era preciso ser um latino-americano escritor: era preciso inverter os termos e a condição de latino-americano, com todas as responsabilidades e deveres que isso implicava, era preciso transpor essa condição também para o trabalho literário. (p. 26)”
Estas são as posições que definem Cortázar nos momentos em que ele está perante os cerca de cem alunos que todas as quintas-feiras, durante duas horas, comparecem às suas aulas; posições determinadas pela vida do escritor, que ele admite ser inseparável da sua obra literária (p. 18). O tempo passado com os alunos qualifica-se mais como uma conversa do que como uma aula, uma vez que Cortázar faz questão de, no final de cada sessão, responder a todas as questões que os alunos queiram colocar-lhe, sejam elas de que natureza forem. É, aliás, notório o desconforto do escritor na posição hierárquica de professor, expresso no início de cada aula com declarações de como seria tão melhor se em vez de metidos num auditório demasiado pequeno e quente fosse possível estar «à sombra das árvores num sítio onde pudéssemos fazer uma grande roda e ficarmos mais perto uns dos outros» (p. 73). Cortázar tende, como Miguel Filipe Mochila escreve no prefácio, para a imposição de uma ordem «marcada pela horizontalidade» (p. 11), e isso revela-se não só no seu incómodo em ter hora marcada para receber os alunos semanalmente no gabinete que lhe foi designado, sentindo-se como «um dentista que a cada meia hora espera um paciente» (p. 45), mas também no afirmar constante de que o que está a apresentar nestas aulas «não é teoria literária, são sempre hipóteses, pequenas garrafas que podemos ir lançando ao mar e vocês também podem discutir e criticar» (p. 135).
No entanto, há realmente uma posição muito forte que Cortázar defende e que pode ser considerada uma teoria da literatura, pelo menos uma teoria da literatura latino-americana tal como o autor a concebe. Esta teoria abrange tanto a criação quanto a crítica literária e tem como argumento principal a inseparabilidade da literatura das condições em que a mesma é produzida. Cortázar acredita – e é desta crença que deriva a sua teoria – que o seu dever, e o de qualquer escritor latino-americano, é o de «perante a interacção e a interfusão da realidade histórica com a nossa produção literária» colocar a ênfase das suas obras «nesses pontos de contacto» (p. 283), invectivando que não se pode escrever nem analisar obras literárias separando-as do «contexto social e histórico que as fundamenta e lhes confere a sua mais íntima razão de ser» (p. 284).
Esta posição define-se por contornos éticos indiscutíveis, expressos naquilo que é o dever de um escritor, a sua responsabilidade e compromisso. Se tal significa que um escritor assume uma posição política, Cortázar não deixa de esclarecer que a sua contribuição só pode caracterizar-se como intelectual e que o verdadeiro compromisso, a verdadeira responsabilidade, consiste em dar «o máximo de si enquanto criador» (p. 294); segundo Cortázar, «quanto mais literária é a literatura (…), mais histórica e mais operante esta se torna» (p. 295). Acreditar neste pressuposto traz a implicação lógica de acreditar que aquilo que se escreve tem consequências, nomeadamente a de influenciar leitores; implica, também, acreditar que esses leitores serão capazes de entender totalmente aquilo que o escritor pretende, incluindo a «mensagem não exclusivamente literária» (p. 36) que Cortázar acha que deve ser colocada na obra.
A crença de Cortázar acerca daquilo que deve ser a literatura reflecte-se principalmente na caracterização dos seus contos e na explicação que dá para certos aspectos das suas obras. Na sua literatura, o fantástico é um elemento quase sempre presente, e Cortázar define-o como sendo, para si, «tão aceitável, possível e real como o facto de comer uma sopa às oito da noite. (…) Eu aceitava uma realidade maior, mais elástica, mais dilatada, onde tudo tinha lugar» (p. 52). Assumindo que não pode fazer «uma distinção muito clara entre fantasia e realidade, excepto, claro está, quando saio da literatura» (p. 104), o autor não se coíbe de afirmar que o conto mais realista que escreveu é assim designado porque se baseou em algo que viveu, «que me aconteceu e que tentei relatar e escrever com toda a fidelidade e clareza possíveis» (p. 111). Parece ser esta a medida de Cortázar para tomar um conto como realista, o que está de acordo com o papel que ele crê que a realidade deve ter na criação literária. Contudo, se por um lado o autor testa as suas histórias contra a realidade (ele relata um momento em que é colocado numa situação muito semelhante à que tinha descrito num conto, e a primeira coisa que pensa é «Agora vais ver se o que escreveste é mais ou menos verdadeiro, ou se, como se costuma dizer, fizeste uma aldrabice» – p. 93), também prontamente explica que não é o facto de uma obra descrever uma situação real que a torna automaticamente literatura.
Aliás, as tais hipóteses que lança ao mar para serem discutidas, quer acerca dos requisitos estruturais de um conto, daquilo que é a música em literatura, ou das técnicas que distinguem humor de comédia, são todas sãs e, até, comuns quando comparadas com teorias literárias vigentes (as sensatas, diga-se). Neste sentido, esta compilação das aulas de Cortázar em Berkeley não se destina apenas àqueles que se interessam especificamente pelo autor; é óbvio que se trata de Cortázar a falar de si e das suas obras, citando-as extensamente, fazendo por vezes leituras integrais de certos contos e explicando a elaboração técnica dos mesmos, mas os assuntos que estão a ser discutidos, a conversa que está a ser tida com aqueles alunos interessa a todos os que se interessam por literatura. É uma vantagem não ter de esperar uma semana para podermos ouvir Cortázar retomar a sessão anterior ou iniciar um novo tema; «ouvir», aqui, está pela sensação que a leitura destas aulas origina, uma vez que foram transcritas de uma gravação áudio feita por um dos alunos. Esta particularidade concede-nos acesso ao tom e à atitude que Cortázar adopta perante aqueles alunos e daqueles alunos perante Cortázar: a força e a certeza com que fala do seu trabalho e da literatura latino-americana são acompanhadas por uma honestidade e uma humildade que nos dá a conhecer quem está a falar e nos permite compreender as suas ideias, embora por vezes possamos não concordar com elas.
Na sexta aula, em que fala sobre O Jogo do Mundo (Rayuela), o autor explica que para começar a falar desse livro «talvez o melhor seja contar aquilo que me aconteceu naquele momento, por que razão comecei a escrevê-lo e o que me aconteceu enquanto estava a escrevê-lo» (p. 207); já na primeira aula, Cortázar desculpava-se por fazer «um pouco de autobiografia, coisa que sempre me embaraça» (p.26), mas a verdade é que as informações autobiográficas que ele dá são aquelas que podem contribuir para uma análise mais completa e adequada de uma obra literária. Tal como o autor defende que não se pode ignorar o contexto de produção de uma obra – estando neste caso claramente a referir-se a situações de ordem política, social e económica determinantes nos países latino-americanos à época destas aulas –, também não se pode ignorar quem a produz, ou seja, a pessoa que está a viver nessas condições e como as está a viver.
Talvez a melhor maneira de explicar as coisas, e a mais acertada, seja enquadrá-las na nossa vida, no modo como tivemos contacto com elas, como as experienciámos; explicar, no fundo, as razões pelas quais essas coisas nos interessam. É importante saber, por exemplo, que Cortázar acha que «certos tangos de Carlos Gardel ensinaram-me mais do que um artigo de Azorín em matéria de aprendizagem das técnicas da língua» (p. 158), ou que a sua primeira visita a Cuba, em 1961-62, foi determinante para a sua «tomada de consciência a que podemos chamar histórica e que significa simplesmente descobrir que não estamos sozinhos» (p. 239). Nesta medida, o modo como Cortázar explica literatura aproxima-o de alguns professores, certamente dos melhores.