Os melhores

“Prince Valiant, vol. 14: 1963-1964”, Hal Foster (Fantagraphics)

Nas histórias aos quadradinhos há, permita-se o dogmatismo, Hergé e os outros. Hal Foster encontra-se claramente entre os melhores dos outros. A editora americana Fantagraphics iniciou em 2009, para nossa grande felicidade, a publicação da integralidade das histórias do Príncipe Valente, começando com os anos 1937-1938. O último volume a sair este ano foi o volume 14, que representa os anos 1963-1964. Seguindo um padrão já conhecido, Val divide-se entre as suas obrigações de Cavaleiro da Távola Redonda, sob o Rei Artur, e estadias na distante Tule, ao norte, o reino do seu pai. Há mesmo no Príncipe Valente um mundo imaginário que é autónomo e pode ser contemplado como uma realidade existente à qual podemos voltar durante a vida, como quisermos, quando quisermos. Porquê? Porque Hal Foster escreve muito bem, um pormenor que deve ser salientado, e desenha ainda melhor (Milton Caniff e o grande Edgar Pierre Jacobs – de quem, desde os 12 anos, tenho um desenho com dedicatória, um dos meus grandes orgulhos – são bons concorrentes). Entre ler e ver há um tempo que, com o melhor Príncipe Valente, é diferente de todas as outras histórias aos quadradinhos. Por vezes, os olhos ficam presos aos detalhes das imagens e a leitura do texto fica longamente suspensa. A curiosidade pelo detalhe, é claro. Mas quem se pode queixar disso?

“O Homem Fatal”, Nelson Rodrigues (Tinta da China)

Nelson Rodrigues é provavelmente o maior colunista brasileiro de todos os tempos. É também, como se sabe, o autor de peças de teatro geniais, como “Álbum de Família”, e de pelo menos um muito bom romance, O casamento. Mas são as suas crónicas que são hoje em dia maior objecto de atenção dos leitores em geral. Este volume contém, seleccionadas e prefaciadas por Pedro Mexia, crónicas que vão de 1967 a 1973. Não há aqui espaço para procurar ver as relações entre o escritor de peças de teatro, de uma impecável crueldade analítica, e o colunista. Sublinhar os méritos próprios deste último chega. As crónicas de Nelson Rodrigues são um exemplar exercício de liberdade e, como tal, dão a ver a realidade da mais excelente das maneiras. Assistimos ao aparecimento de uma sucessão de personagens, e dos seus modos de pensar, que são definidos através dos mais incisivos, económicos e eficazes traços. O conformismo supostamente inconformista “de esquerda” tem aqui um dos seus melhores retratos. Até as suas repetições, particularmente manifestas nas suas obsessivas (e justas) detestações, são preciosas. A declarada subjectividade casa-se às mil maravilhas com o rigor. Um prazer enorme de ler.

“The Cambridge Companion to Popper”, Jeremy Shearmur e Geoffrey Stokes (eds.) (Cambridge University Press)

Karl Raimund Popper foi indisputavelmente um dos maiores filósofos da ciência do século XX e um pensador político sob muitos aspectos determinante. Era mais do que tempo de os óptimos Cambridge Companions, que reúnem contribuições originais de vários especialistas, lhe consagrarem um volume. Os textos aqui recolhidos debruçam-se, entre outras coisas, sobre a sua filosofia da ciência, da mente e da política. Em todos estes domínios, o pensamento de Popper exerceu influência, ao mesmo tempo que suscitou forte oposição. Não em todos os domínios da mesma maneira. Em filosofia da ciência, a oposição veio mais (embora não exclusivamente) de algo como uma radicalização das suas proposta, num sentido para ele inaceitável, por alguns dos seus discípulos. Em filosofia da mente, onde a sua influência foi menor, de várias formas de reducionismo. Em filosofia política, dos pensadores que se viam como prolongando a herança platónica, hegeliana ou marxista, incluindo assim tanto a “direita” como a “esquerda”, embora esta fosse, como é uso, mais vocal. É apenas de lamentar que o Cambridge Companion não inclua nenhuma reflexão que verse sobre o pensamento estético de Popper. É verdade que se trata de um tema infelizmente pouco abordado por ele mesmo. Mas encontramos, por exemplo, em Unended Quest, a sua autobiografia intelectual, muito interessantes reflexões sobre a música. Teria valido a pena ter arriscado explorar a questão.

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“De mal a pior”, Vasco Pulido Valente (D. Quixote)

Este volume, que reúne, seleccionadas por Miguel Pinheiro, crónicas publicadas entre 1998 e 2015, é imperdível para quem queira perceber melhor Portugal e várias tendências gerais do mundo contemporâneo. Escrevo propositadamente “tendências”: Vasco Pulido Valente encontra-se, parece-me, na linhagem de Tocqueville, que justamente concebia a história, pelo menos a história sua contemporânea, como a manifestação de tendências contra as quais a possibilidade de lutar, embora efectiva, era limitada. O facto de Vasco Pulido Valente ser um excepcional escritor não significa que a leitura dos seus textos se deva ficar pelo contentamento literário que efectivamente proporciona e dispense uma avaliação da justeza das suas análises. É claro que é exactamente o contrário: é por ele ser um excepcional escritor que a avaliação é exigida e que a tarefa de concordar ou discordar pode ser levada a cabo com maior discernimento. É para isso que serve o bom estilo. E nesta recolha encontrar-se-ão sem dúvida motivos para concordar e discordar. Mas sobrará sempre, num caso como no outro, a admiração pela capacidade de ver claro e pelo muito real esforço para a exercitar, não ignorando nunca que “nada é tão simples como se pensa”. A propósito: para quando a reedição de Retratos e autoretratos? Emprestei o meu exemplar há muito tempo e, obedecendo exemplarmente ao respeito pela aquisição por usucapião, deixei-o nas mãos de a quem o emprestei. Seria sem dúvida um dos meus livros do ano para 2017.

“A invenão da natureza. As aventuras de Alexander von Humboldt, o herói esquecido da ciência”, Andrea Wulf (Temas e Debates)

É um prazer ler esta biografia de Alexander von Humboldt, o grande naturalista irmão do linguista e filósofo político liberal (uma excepção na Alemanha do século XIX) Wilhelm von Humboldt. Alexander von Humboldt, através da sua concepção de um cosmos perfeitamente articulado por relações internas que tudo uniam, sobretudo desenvolvida no seu extensíssimo Cosmos (1845-1850), foi, além de muita outra coisa, uma poderosa influência no jovem Darwin, que levou algumas das suas obras na longa viagem do Beagle — e, simultaneamente, influenciado pelo avô de Darwin, Erasmus Darwin. (Já agora: Humboldt morreu no mesmo ano da publicação de A origem das espécies (1859).) Em poucos autores como nele se reuniram tão poderosamente a investigação científica e uma concepção estética da natureza, algo que Goethe perfeitamente percebeu e que influenciou o primeiro romantismo inglês de Coleridge e Wordsworth. Andrea Wulf, se bem que o seu estilo esteja longe de ser perfeito, relata com rigor e fluidez a vida realmente aventurosa desse personagem genial e excêntrico. Viajando pela vida, viaja-se igualmente por múltiplos lugares: as Américas e a Europa, incluindo a Rússia (o irmão Wilhelm viajou igualmente, no seu gabinete, pelas línguas do mundo). E regressamos de todas as explorações, detalhadamente narradas por Andrea Wulf, a saber mesmo mais alguma coisa do que quando partimos.

O pior

“Os senhores do mundo”, Noam Chomsky (Bertrand)

Este pior livro do ano não é certamente o pior livro do ano. É apenas mais um livro “político” de Noam Chomsky, desta vez reunindo conferências e ensaios que abarcam um vasto período, indo de 1969 a 2013. Muita gente partilha a convicção que, com Noam Chomsky, nos encontramos face a um curioso caso de desdobramento de personalidade. Haveria um Dr. Chomsky, o da linguística e da filosofia, e um seu terrível duplo político, Mr. Noam. É uma visão tentadora, mas deve ser relativizada, já que Mr. Noam, o dos escritos políticos, importa justamente para a matéria política a sistematicidade do pensamento (admirável em muito, na minha opinião) do Dr. Chomsky. O problema reside em aquilo que é virtude num caso ser catastrófico no outro. Porquê? Porque conduz a postular que tudo no mundo político faz sentido, e um sentido unívoco. Daí os seus inumeráveis escritos políticos possuírem, por regra, uma dimensão teratológica bem caracterizada. Tudo faz sentido e os Estados Unidos são os exclusivos fautores do mal no Universo. Aí onde a exigência sistemática deveria parar para meditar a contingência, o individual e o sem-sentido, Noam Chomsky avança com a exigência sistemática absoluta, onde não há lugar para tudo o que seja da ordem do acidental e do multiplamente interpretável. Exactamente como na paranóia.

[as escolhas de Paulo Tunhas:]

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