“Excesso de colagem ao Governo”, começa a ser “um bocadinho demais”, revelou “pouca equidistância”, está a “extravasar os poderes constitucionais”. As frases são de dirigentes do PSD e revelam o mal-estar com que o partido recebeu a entrevista do Presidente da República à SIC este domingo. O Observador explica os pontos em que o Presidente colocou Passos Coelho em causa e verifica se o que os factos que invocou sobre a banca e a dívida estão corretos.

Houve dirigentes do PSD a optar pela ironia para classificar o tom do Presidente da República: “Foi perfeita a entrevista. Deu para perceber que afinal o primeiro-ministro é do PSD. É um militante suspenso nosso que já foi líder. Assim, é difícil fazer a oposição alternativa que ele quer. Não estamos no Governo mas o primeiro-ministro é do PSD”, disse um dirigente do PSD ao Observador. Mais a sério, o mesmo social democrata diz não entender “como um constitucionalista não percebe que está a extravasar os poderes constitucionais”.

Outros dirigentes do partido apontam uma “grande colagem ao Governo”, mas não estranham as críticas ao líder do PSD: é mais do mesmo, a relação dos dois é assim e não há nada a fazer. Até porque Passos Coelho o foi sempre provocando Marcelo ao longo deste ano. Em geral, os sociais-democratas contactados pelo Observador percebem a proximidade a António Costa — “ele como Presidente tem de apoiar o Governo”, diz um vice da bancada –, mas acham que exagerou durante a entrevista.

Na mesma linha, até o antigo ministro Nuno Morais Sarmento — muitas vezes do lado oposto ao de Passos — defendeu, em declarações à Rádio Renascença que Marcelo “passou da medida” nos elogios ao Governo, mesmo que faça bem em garantir a estabilidade. Para Morais Sarmento, Marcelo “saiu de uma zona de reserva em que nós precisamos que o Presidente da República permaneça. Pecou por excesso”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Tem havido outras manifestações, mais tímidas, mas igualmente críticas do Presidente. Os circuitos paralelos de apoiantes PSD nas redes sociais têm destacado o facto de ser a esquerda a defender Marcelo. O vice-presidente da bancada do PSD, Carlos Abreu Amorim deu conta disso, mas não em tom crítico a Marcelo. Foi mais como um “nós tínhamos razão”. No Twitter, Carlos Abreu Amorim partilhou um tweet elogioso de Pedro Sales — antigo assessor do Bloco de Esquerda e de Sampaio da Nóvoa, hoje com Fernando Medina na Câmara de Lisboa –, onde este defende Marcelo.

O dirigente da bancada social-democrata fez acompanhar do texto de Sales (que atualmente é assessor de Fernando Medina) a frase: “I rest my case“.

Como Marcelo atacou Passos

  1. Défice. Durante a entrevista Marcelo lembrou os que “diziam que é matematicamente impossível cumprir o défice”. Ora, os que diziam foi Maria Luís Albuquerque em setembro de 2016 a utilizar a expressão “aritmeticamente impossível” o défice ficar abaixo dos 3%. Mas o ataque também aqueceu as orelhas de Passos Coelho, já que no final de agosto dizia que “tudo aponta” para que o “caminho” já não fosse o “de voltar ao défice do ano anterior”, mas sim o de “poder até ficar além desse défice”. Ou seja: abaixo dos 3%;
  2. Alternativa forte. Marcelo disse na entrevista que era “fundamental ter uma oposição muito forte, que seja alternativa.” E recusou depois a comentar se Passos teve uma demonstração de fraqueza na questão da TSU. Fez lembrar quando a 13 de outubro, no encerramento do seminário “Portugal uma estratégia para o crescimento”. Nessa ocasião, Marcelo aproveitou o facto de Passos estar na primeira fila e — de acordo com o relato de vários jornalistas presentes no local — o Presidente olhou para o líder da oposição (que estava na primeira fila) e pediu uma “clareza de demarcação de alternativa de Governo”. O país estava em véspera da entrega do Orçamento do Estado.
  3. Intervenção na banca. Na entrevista de domingo, Marcelo voltou a considerar fundamental a intervenção do Governo na banca: “No BPI está definida a composição do capital – houve intervenção pública, se não tem havido não tinha havido esta evolução. No BCP também”. Ora, foi precisamente isto que Passos Coelho sempre criticou e de uma forma muito clara. No final de março chegou a dizer: “Quem faz a regulação financeira é o Banco de Portugal e é a CMVM. Não é o primeiro-ministro, não é o ministro das Finanças, que não têm nenhuma competência na matéria. Nenhuma! Nem o Presidente da República, por maioria de razão.”
  4. TSU. Marcelo assumiu que foi “daqueles que se bateram para que fosse conseguido um acordo de concertação social” e lembrou que defendeu “publicamente” a descida da TSU para patrões. Sobre a posição de Passos, não se imiscuiu de colocar alguma pressão, dizendo: “Continuo a acreditar que haverá uma preocupação relativamente a Pequenas e Médias Empresas e IPSS e misericórdias.” Isto depois de Marco António Costa, vice-presidente do PSD, ter defendido que a baixa da TSU devia ser também para IPSS.

Portugal está a conseguir fazer “reestruturação de dívida, pacificamente”, como diz o presidente?

O Presidente da República voltou a desvalorizar a subida recente das taxas de juro. Reconheceu que Portugal pagou 4,2% por dívida a 10 anos, o que é elevado, mas salientou que nas sessões seguintes os juros desceram para menos de 4% (estão agora nos 3,8%).

Porém, faz pouco sentido falar na descida dos juros no mercado, nos dias seguintes àquela emissão de dívida, porque esse alívio não é mais do que a típica reação técnica de quando o mercado já digeriu os títulos que foram vendidos, depois da subida que houve nos dias anteriores ao anúncio da emissão.

Por outras palavras, se Portugal agendasse amanhã outra emissão a 10 anos, os juros voltariam a subir no mercado e o Estado pagaria juros novamente mais elevados.

Como explicámos neste texto, o acesso de Portugal ao mercado é exíguo e os juros não dependem apenas da perceção de risco a um dado momento. É preciso ter sempre em conta que não se pode querer emitir demasiada dívida porque a procura não é muita e os juros que se pagam dependem muito da procura que existe.

Marcelo salientou, também, que Portugal tem conseguido fazer uma “reestruturação de dívida”, de forma “pacífica”. Referia-se ao facto de o Estado ter vindo a emitir dívida a custos mais baixos do que os juros que se pagam pelo stock de dívida acumulada. Ou seja, à medida que dívida antiga vai “vencendo” — sendo reembolsada –, o IGCP substitui essa dívida por dívida com juros mais baixos.

Contudo, se isso foi verdade nos últimos anos, não está a ser verdade em 2017. Não se Portugal continuar a financiar-se a mais de 4% num prazo de referência como 10 anos. Como se pode ver numa apresentação recente do IGCP aos investidores. O custo médio da dívida portuguesa (do stock) era de 4,1% em 2011, de 3,9% em 2012, 3,6% em 2013 e 2014, e 3,4% em 2015.

Parte dessa descida deveu-se aos juros progressivamente mais baixos que o Estado pagou nas emissões que fez a cada ano: 5,7% em 2011, 4% em 2012, 4,2% em 2013 (o ano do regresso aos mercados), 3,6% em 2014 e 2,4% em 2015.

Contudo, essa tendência de queda no custo das novas emissões interrompeu-se em 2016, com o endividamento de longo prazo a sair a uma taxa média ponderada de 2,7%. Até ao momento, em 2017, temos uma emissão a 4,2%. Portanto, estamos a arriscar uma subida grande dos custos médios de um ano para o outro. O governo está confiante de que os juros vão baixar mas isso não é a expectativa dos analistas.

Isto significa que Portugal não está a conseguir aproveitar as compras do BCE no mercado, para se financiar a juros mais baixos do que a média do seu stock. Marcelo tinha razão quando dizia que Portugal esteve a fazer uma “reestruturação pacífica” através da renovação da dívida a custos mais baixos. Mas neste momento isso não está a acontecer em Portugal — está, sim, a acontecer em países como Espanha e Irlanda, que pagam 1,4% e 0,9% por dívida a 10 anos, respetivamente.

De que falava Marcelo quando elogiou a ação do governo na banca privada?

O Presidente da República defendeu que a intervenção pública, nomeadamente do Governo nos bancos privados foi decisiva para a resolução de problemas em bancos, como o BPI e o BCP.

Na entrevista à SIC, Marcelo Rebelo de Sousa assumiu que considerava a banca o principal problema do país em 2016. E debafou que houve semanas, na Primavera passada, em que não via um problema no sistema bancário que fosse possível resolver. Mas, peça por peça, alguns problemas foram resolvidos. O presidente destacou a clarificação da liderança de capital do BPI, comprometida pela guerra entre Isabel dos Santos e o maior acionista espanhol, o Caixabank, e a recomposição de capital do BCP. Bancos privados onde, defendeu, “foi muito importante a intervenção pública. Fui atacado e foi atacado o Governo” — numa alusão às críticas do líder do PSD. “Se não tem havido a intervenção pública, não teria havido a evolução privada que houve”.

Mas qual foi a intervenção pública nestes bancos? No caso do BPI, foi público que o primeiro-ministro mobilizou o seu amigo e negociador, o advogado Lacerda Machado para intermediar o conflito entre Isabel dos Santos e o CaixaBank, O Governo, com o apoio do Presidente, promulgou ainda uma lei feita à medida, o chamado decreto BPI, que permitiu ao banco alterar os estatutos sem o voto de Isabel dos Santos, rompendo o impasse que durava desde o início de 2015. Os dois acionistas privados fecharam um acordo, em cima do ultimado do BCE para resolver o problema de Angola, mas o esforço caiu por terra, com a gestão do banco português a acusar Isabel dos Santos de ter desrespeitado o acordo.

Costa lavou as mãos do assunto, remetendo para os acionistas. As parte acabaram por chegar a um entendimento no final do ano que resolveu o problema de Angola e viabilizou a OPA do Caixabank. ´

Menos conhecida é a intervenção no BCP. Uma notícia do Expresso dizia que Isabel dos Santos tinha manifestado interesse em investir no BCP depois de sair do BPI; vendendo a posição ao CaixaBank. Na verdade, nenhuma destas coisas se concretizou ainda e quem entrou no BCP, reforçando a estrutura acionista e o capital, foram os chineses da Fidelidade, a Fosun. Mais uma vez, o Governo, com o apoio do Presidente, foi célere a aprovar legislação que permitiu ao BCP fundir as suas ações, o que era uma condição dos chineses para investir.