Os bloquistas pressionam e o PS adia, gerindo as discussões no Parlamento. Os socialistas respondem com trabalho feito e o Bloco de Esquerda exige mais, acossado por quem diz que o partido se moderou. O elefante da dívida continua no meio da sala, ainda que desta vez devidamente acondicionado pelo relatório sobre a sustentabilidade da dívida pública que resultou do grupo de trabalho formado por Governo, PS, Bloco e economistas independentes. Um documento assumidamente “modesto”, que o Governo não subscreveu para não fazer soar os alertas em Bruxelas, e que deixa grande parte da iniciativa para a discussão no quadro europeu. O diagnóstico está traçado, as medidas também — inclusive as que dependem exclusivamente do Governo português — mas ninguém se compromete com calendários. A oposição espreita brechas e fala em “encenação”. Esta quarta-feira realiza-se o primeiro debate quinzenal depois da apresentação do relatório e é de esperar que o assunto seja explorado no hemiciclo, sobretudo as diferenças entre PS e Bloco de Esquerda.

Mais de um ano depois de terem formado o grupo de trabalho para discutirem possíveis caminhos de reestruturação da dívida — uma exigência de Catarina Martins para entrar no acordo para a solução governativa –, o grupo de trabalho criado para o efeito apresentou finalmente a análise à sustentabilidade da dívida. O documento, apresentado a 28 de abril, propõe, em linhas gerais, um corte de 72 mil milhões à dívida pública. Problema? Como os socialistas só admitem discutir essa questão num plano multilateral, a fatia de leão desse bolo depende da luz verde das autoridades europeias — e ninguém quer falar disso até às eleições alemãs, em setembro. Quanto às medidas que dependem unicamente da responsabilidade do Governo português, sobretudo de gestão normal da dívida, permitiriam, no máximo, uma poupança no pagamento de juros de 1.167 milhões de euros em 2023.

Então, que medidas é que podem ser colocadas em prática? Mais dividendos do Banco de Portugal, empréstimos com prazos mais curtos, mais pagamentos antecipados ao FMI e juros mais altos para atrair o dinheiro das autarquias e regiões, como analisava aqui o Observador. Mas nem mesmo essas estão garantidas — e os avisos do Bloco de Esquerda já se fizeram sentir.

Sessenta anos para pagar à Europa, dívida ao Banco de Portugal é “para sempre”

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“O Governo diz que está a analisar o relatório. Vamos esperar que concluam essa avaliação. Estaremos atentos“, diz Pedro Filipe Soares, em declarações ao Observador. O líder parlamentar bloquista não vai tão longe como Francisco Louçã, que, em entrevista ao Público/Rádio Renascença foi muito taxativo: os socialistas não podem fingir que o trabalho está feito e esconder o relatório numa gaveta.

O relatório compromete os partidos que o assinam (…) Tenho esperança fundada e peço ao senhor secretário-geral do PS [António Costa] para dar uma palavrinha ao primeiro-ministro [António Costa] a este respeito e, portanto, que a proposta seja para ser tomada a sério. Na política, nada pode ser a fingir“, afirmou o fundador do Bloco e membro deste grupo de trabalho.

O sinal é claro: os bloquistas vão cobrar o prometido. De resto, esta é a primeira vez que o PS reconhece, num documento oficial, que é preciso reestruturar a dívida. E esse é o maior trunfo dos bloquistas, neste momento.

Uma das medidas, pelo menos, já está bem encaminhada: socialistas e bloquistas vão avançar com uma iniciativa legislativa no sentido de obrigar o Banco de Portugal a justificar a sua política de provisões, o que na prática obrigará o banco supervisor a entregar mais dinheiro ao Estado. Na verdade, essa é a única das quatro medidas que dependem diretamente da Assembleia da República — as restantes dependem do Governo e a expectativa do Bloco é que se concretizem.

Esperemos que o Governo tenha vontade política e coragem para concretizar pelo menos estas medidas“, avisa Pedro Filipe Soares. Quanto às outras — as que dependem da discussão com os restantes Estados-membros, o líder bloquista mostra-se menos otimista que os socialistas. “O PS tem mais expectativas que nós nessa matéria. De qualquer forma, acho que o Governo deve lutar [por esse corte de 72 mil milhões de euros]. Esperamos que o Governo possa ter essa coragem“, reitera o bloquista.

E agora? O Bloco continua a defender a rutura?

Mas na Assembleia também se jogam outros jogos: um partido que sempre defendeu a reestruturação da dívida portuguesa — mesmo que fosse rompendo com Bruxelas — não sai fragilizado por um documento muito aquém das expectativas bloquistas? Pedro Filipe Soares rejeita que assim seja e repete o que já dissera durante a apresentação do documento: o relatório conseguido “partiu de um diálogo” e “não de um monólogo” e, por isso, representa o consenso possível.

Ainda assim, depois de ter participado num grupo de trabalho sobre sustentabilidade da dívida que não propõe uma decidida reestruturação da dívida — como sempre defendeu o Bloco — não perderam os bloquistas os seus trunfos? O líder parlamentar do partido rebate: “Este relatório não limita ou condiciona em nada a ação do Bloco. Continuamos a acreditar que as medidas propostas não resolvem o problema. E insistiremos sempre em propostas que vão além [das que estão inscritas no relatório]”.

João Galamba, deputado socialista, também desdramatiza. “Não concordo que este relatório represente um recuo do Bloco de Esquerda. Provou que, partindo de posições diferentes, foi possível chegar a uma posição comum. Deixou mais claros os temas das nossa discordância e da nossa concordância”, defende o porta-voz do PS, em declarações ao Observador.

De todo o modo, a assinatura do Bloco num documento que assume soluções menos definitivas do que aquelas que o partido defende não pode servir para neutralizar a pressão dos bloquistas sobre o Governo nesta matéria? Galamba discorda. “Este relatório não é arma de arremesso contra ninguém“, assegura socialista.

Ana Catarina Mendes, secretária-geral adjunta do PS, foi ligeiramente mais longe no raciocínio numa entrevista ao Observador, a 3 de maio, e admitiu que podia ser Portugal a gerar o debate sobre a reestruturação das dívidas a nível europeu:

Neste quadro, em que tem o melhor défice da sua história democrática, em que Portugal tem cumprido todos os seus compromissos internacionais e ainda assim tem conseguido gerar dinâmica na economia e com isso gerar emprego, o país deve, no âmbito da UE, gerar esse debate. Percebo que queiram perguntar: mas o debate é amanhã? Não sei se é amanhã, sei que é premente.”

Desafiada a responder sobre se o Bloco de Esquerda se tinha tornado “divida-realista”, a socialista ainda ensaiou: “A co-responsabilização com a governação exige outro olhar sobre as coisas (…) e que o Bloco percebe bem o momento político em que estamos“.

Mais: questionada sobre se António Costa, sempre que desafiado por Catarina Martins pela reestruturação da dívida, pode acenar com o relatório e citar as conclusões, Ana Catarina Mendes respondeu: “Pode“. E deve? “Pode”, repetiu a secretária-geral adjunta do PS. De qualquer forma, a socialista acabaria por sublinhar de forma assertiva que não existe qualquer “brecha” entre PS e Bloco e que cada sabe o que outro “pensa sobre este tema”.

Nessa mesma entrevista, a secretária-geral adjunta do PS ainda colocou outro cenário determinante: mesmo admitindo que possa ser Portugal a tomar a linha da frente da discussão sobre a renegociação das dívidas soberanas dos Estados-membros, a socialista reconheceu que tal só deve acontecer depois das eleições alemãs. Uma posição partilhada por João Galamba.

“O Governo deve ter em conta as recomendações do grupo de trabalho e colocar a questão nos mais diferentes fóruns, procurando as alianças necessárias. O problema da dívida é um problema que deve ser resolvido e que vai ser resolvido. Mas como se quer que seja uma negociação abrangente, este pode não ser o melhor período para anunciar um debate desta natureza. É preciso um amplo consenso entre as diferentes famílias políticas europeias”, nota o socialista. Tratando-se da Alemanha e atendendo ao facto de o período pré-eleitoral ser pouco dado a consensos, é pouco expectável que a discussão se coloque até lá. “Já esperámos tanto tempo, que podemos esperar mais um bocado“, resume João Galamba.

Em Berlim, reestruturação da dívida é tema tabu

Se em Lisboa, os socialistas já entenderam que é má ideia insistir num debate sobre a reestruturação da dívida antes das eleições alemãs, em Berlim, os maiores partidos não querem precipitar essa discussão em período eleitoral.

Foi essa a mensagem que três deputados alemães deixaram num jantar informal em Lisboa, que juntou vários órgãos de comunicação social, incluindo o Observador, e os parlamentares alemães. Os três — um social-democrata (SPD), um democrata-cristão (CDU) e um ecologista (Verdes) — concordaram num ponto essencial, apesar das diferenças ideológicas: “Falar da reestruturação da dívida só depois das eleições“.

A mensagem para o Governo português foi igualmente clara: mantenham-se fora do radar, low profile, e depois das eleições falamos. As areias eleitorais são muito movediças e ninguém quer que a corrida às urnas na Alemanha se centre, sobretudo, na relação com os países do sul da Europa.

Enquanto isso, na Assembleia da República, PSD e CDS vão pressionando os participantes no relatório, dizendo que este processo foi uma “encenação” e que a montanha pariu um rato. Além disso, os dois partidos da direita ganharam uma brecha para perguntar: onde estão os resultados? Isto, sabendo que o Governo socialista vai ter algumas dificuldades em cumprir medidas que o próprio PS subscreveu. Ponto de ordem: a discussão está a começar.