A Comissão Europeia não se pronuncia sobre eventuais violações da lei no incidente que levou à morte 268 refugiados sírios, em outubro de 2013, no Mediterrâneo. Mas, ao Observador, fonte do executivo comunitário sublinha que a vida dos refugiados “tem de ser a prioridade” e que todos os países têm de cumprir com as suas “responsabilidades e obrigações”.
O caso, divulgado esta semana pela revista italiana L’Espresso, fez soar alarmes sobre a forma como as autoridades italianas lidaram com um pedido de socorro de um barco carregado com 480 pessoas. Uma investigação da L’Espresso trouxe a público a gravação das comunicações feitas entre um refugiado sírio num barco à deriva no Mediterrâneo e a Guarda Costeira italiana.
Países devem cumprir com as “obrigações”
Durante cinco horas, e apesar de logo na primeira comunicação lhe ser facultada a localização exata da embarcação, a Guarda Costeira de Itália não dá indicações ao seu navio no Mediterrâneo para que vá ao encontro do grupo de refugiados. O barco lotado de sírios acaba por voltar-se, centenas de pessoas caem ao mar. Morrem 268 pessoas, 60 das quais crianças.
Ao Observador, fonte oficial da Comissão Europeia refere que “a coordenação e cooperação entre Estados-membros é essencial durante as operações de busca e salvamento, em linha com a Lei Internacional do Mar”, numa referência à forma (demorada) como Itália e Malta discutiram entre si a ajuda a prestar à embarcação com refugiados sírios que tinha partido da Líbia.
O executivo acrescenta, de resto, que “a vida e a segurança dos migrantes tem de ser uma prioridade” para os países com responsabilidades no resgate de cidadãos africanos e do médio-oriente que tentam chegar à Europa de barco, quase sempre arriscando a vida para fugir aos conflitos nos países de origem.
E, ainda que sem pronunciar-se sobre eventuais consequências legais para os oficiais italianos — porque “cabe às autoridades nacionais acompanhar e investigar quaisquer violações da lei nacional ou internacional” — , o executivo não ignora que há papéis que não podem deixar de ser cumpridos.
Todas as partes envolvidas nas operações de busca e salvamento devem respeitar as suas responsabilidades e obrigações”, refere fonte oficial da Comissão Europeia.
“Trezentas pessoas, estamos a morrer!”
O vídeo divulgado pela L’Espresso tem pouco mais de dez minutos, durante os quais um dos cidadãos sírios a bordo da embarcação — Mohanad Jammo, um médico sírio — liga para a Guarda Costeira de Itália para pedir ajuda.
Por favor, despachem-se. Está a entrar água. Por favor, despachem-se. Por favor, despachem-se. Por favor, despachem-se. Por favor”, repete o refugiado sírio várias vezes, na primeira comunicação com Itália.
Jammo explica ainda que o barco partiu de Zuwara, na costa mediterrânica da Líbia, e que a bordo seguiam 300 pessoas: “Cerca de 100 crianças, 100 mulheres e 100 homens”, contabiliza por alto e com a voz trémula. Eram 12h39 e a primeira de três comunicações com a Guarda Costeira fica por aqui. Ainda haveriam de passar várias horas até que os meios de socorro chegassem perto da embarcação com os refugiados.
Quase 40 minutos depois da primeira chamada, Mohanad Jammo — é sempre ele quem faz os contactos com pedidos desesperados de ajuda — faz uma segunda tentativa. O interlocutor, entretanto, mudou. A mulher que tinha recebido o primeiro contacto dá lugar a um outro oficial da Guarda Costeira.
O refugiado pergunta se a ajuda está a caminho. O barco já deixou entrar bastante água, que nesse momento chega a cerca de meio metro de altura. “Vou dar-lhe o número de Malta, porque vocês estão perto de Malta, estão perto de Malta, percebem?“. É essa a única solução apresentada. Itália, que já dispunha das coordenadas do barco a naufragar há quase uma hora, não liga para o centro congénere em Malta. Opta por indicar a um refugiado sírio perdido no Mediterrâneo o contacto de outro serviço europeu de resgate.
Passou uma hora desde o telefonema inicial quando Jammo volta a contactar Itália. É a mulher que o ouviu no primeiro contacto quem volta a responder à chamada.
– “Liguei para Malta, que me disse que estamos mais perto de Lampedusa que de Malta. Estamos a morrer, por favor. Trezentas pessoas, estamos a morrer!”
– “Ligaram para Malta? Ligaram para Malta?”
– “Não nos abandonem, estamos sem capitão, o capitão fugiu.”
– “Tem de ligar para Malta, tem de ligar para Malta”, insiste, com a voz do interlocutor masculino da Guarda Costeira dando indicações a escutar-se em segundo plano.
“O [navio] P42 é o vosso navio”. Autoridades desorientadas
Já tinham passado quatro horas desde o primeiro pedido de socorro dos refugiados, quando, às 16h44, a Guarda Costeira de Itália decide pegar no telefone e ligar diretamente para Malta. As palavras do oficial italiano que falou ao telefone com Mohanad Jammo, quando conversa com a colega de Malta, deixam perceber que, durante a tarde, alguém confundiu os meios no terreno.
Itália toma a dianteira da conversa.
– “Sabem que o navio de guerra é um importante meio para avistar novos alvos. Digam-nos se precisam de que enviemos um navio de guerra para resgatar pessoas. Com o nosso navio estamos responsáveis por transferir as pessoas para a costa mais próxima. Penso que é a melhor forma de agirmos”, propõe o oficial italiano.
– “OK, é a P402 esse navio de guerra?”, pergunta Malta.
– “O P42 é o vosso navio.”, responde a Guarda Costeira italiana, no momento em que começa a ficar clara a confusão que reina relativamente aos meios que estão no terreno nas operações de busca e salvamento de refugiados.
– “Não, P402 é um navio de guerra italiano, não sei se é a vossa embarcação.”
– “Provavelmente é um navio de guerra da Marinha e não da Guarda Costeira, não estou certo disso.”
– “Não é da Guarda Costeira? OK, OK. Essa é a mais próxima, entende? Porque nós temos um avião naquela zona que avistou os migrantes. São cerca de 250 e a embarcação aparentemente parou de se mover. Eles continuam a ligar e a perguntar quando é que o barco chega. Essa é a mais próxima. Se vocês não conseguem enviar a vossa embarcação, temos de ver como vamos fazer. Também dissemos a um navio civil para fazer uma busca naquela área mas são 70 milhas náuticas.”, acaba por informar Malta.
Pequenos pontos laranja espalhados no mar
No barco, Mohanad Jammo e os cerca de 400 refugiados sírios desesperam. Passaram quatro horas e meia desde que a água começou a invadir a embarcação, ainda não era uma hora da tarde. Mas isso foi na primeira fase da tragédia.
Ao final da tarde, o barco já se virou, centenas de pessoas caíram à água. Morrem os primeiros refugiados, incapazes de manter-se à tona. O número final ficou nos quase 270 refugiados sírios.
Na última chamada para Itália, as autoridades de Malta também já dão sinais de impaciência.
– “Sou a oficial de serviço [de Malta a ligar] para dizer-lhe que o nosso avião viu o barco virado ao contrário. As pessoas estão na água.”
– “É o mesmo barco de que me falou?”, pergunta Itália.
– “É o mesmo barco. Está virado ao contrário.”
– “Bom, vamos passar a informação ao nosso navio Libra“, informa, finalmente, o oficial da Guarda Costeira italiana.
– “OK. Pode dizer-lhes que se apressem a chegar à posição? Porque as pessoas estão na água”, pede a responsável de Malta.
– “Estão na água e o barco está virado”, reconfirma o italiano.
São pequenos pontos laranja que se destacam no imenso azul do Mediterrâno. Esses, os que ainda se podem identificar nas imagens do avião de Malta que sobrevoou o local, tiveram sorte. Puderam contar com um colete salva-vidas que os manteve à tona o tempo suficiente para que chegasse a esperada ajuda. Outros, menos, também conseguiram salvar-se agarrados aos pedaços do barco que não afundaram.
A maioria desapareceu no fundo do Mediterrâneo. Mohanad Jammo, a mulher e a filha de cinco anos conseguiram salvar-se. As outras duas filhas, de seis anos e nove meses, morreram afogadas. Durante todo o tempo — quase cinco horas — em que o médico sírio telefonou para Itália, e depois para Malta, e mais uma vez para Itália, o Libra, um navio italiano de busca e salvamento, esteve parado à espera de indicações sobre que rumo tomar. Estava a uma hora e meia de distância da embarcação à deriva.