António Guterres, o primeiro europeu a chegar a secretário-geral das Nações Unidas desde 1981, esteve esta quarta-feira em Estrasburgo para propor um “pacto global de imigração”. No seu discurso ao Parlamento Europeu, o português fez uma crítica em relação a um tema sensível em muitos países, ao dizer que poderiam ter-se evitado muitas mortes no Mediterrâneo nos últimos três anos se tivesse havido “plena solidariedade” dos diferentes Estados para enfrentar a crise.
Os reparos de Guterres à Europa foram mais longe: “Para ser muito franco, se queremos ser campeões do mundo em [matéria de] Direitos Humanos temos de ser credíveis, e a autoridade moral dos vários países do mundo tem sido posta em causa pelo tratamento dos refugiados”, declarou, numa das críticas mais contundentes à atuação da Europa neste domínio.
Solidariedade e união, continuam assim a ser as duas palavras que ficaram assim como eco depois da passagem de António Guterres pelo Parlamento Europeu. O secretário-geral das Nações Unidas não ignora que a União Europeia tem mostrado dificuldades para falar a uma voz sobre a crise dos refugiados, da mesma forma que – se nunca se referir diretamente ao Brexit – reconhece as ondas de choque que o divórcio entre o Reino Unido e o projeto europeu vai provocar. Só uma “Europa forte e eficaz” pode lidar com a “nova ameaça” mundial do terrorismo, disse Guterres, decidido a reformar uma máquina pesada como são as Nações Unidas.
O primeiro europeu a liderar as Nações Unidas desde há 35 anos — o último tinha sido o austríaco Kurt Waldheim, entre 1972 e 1981 — esteve cerca de cinco horas em Estrasburgo. Depois, seguiu para Genebra onde esta quarta-feira o núcleo forte da ONU discute o conflito na Líbia. Nessa passagem rápida pelo Parlamento Europeu, o único desvio ao programa aconteceu quando Guterres e a sua ex-ministra Maria João Rodrigues se reuniram “em privado”, à porta fechada, à margem do almoço oferecido pelo presidente Antonio Tajani.
O encontro, depois de um cumprimento “caloroso” (descreve quem assistiu) entre os dois socialistas, durou poucos minutos mas serviu para a eurodeputada portuguesa – e ex-ministra da Qualificação e do Emprego de Guterres – partilhar com o secretário-geral da ONU algumas notas pessoais sobre o futuro da Europa, um tema a que se tem dedicado.
Na sala do protocolo, por cima do plenário e com uma vista privilegiada sobre a rede de canais do Reno, Guterres voltou a focar os pontos centrais do seu discurso, num almoço em que também participaram os chefes de delegação dos vários partidos portugueses com representação no Parlamento Europeu: Carlos Zorrinho (PS), Paulo Rangel (PSD), Nuno Melo (CDS), Marisa Matias (BE), João Ferreira (PCP), José Inácio Faria (MPT) e o independente António Marinho e Pinto. A reforma das Nações Unidas – um dos quatro temas centrais da intervenção de Guterres no plenário, a par dos “refugiados”, das questões do clima e da “solidariedade” europeia – foi tema de destaque.
Reformar a máquina humanitária
As Nações Unidas precisam de ser mais “transparentes” e “eficazes” na sua ação. Numa referência genérica, Guterres disse aos eurodeputados que a organização que lidera precisa de mudar para tornar-se “mais próxima das expetativas das pessoas” que serve.
Eleito em outubro do ano passado, o secretário-geral da ONU tomou posse em janeiro e está, por isso, há quase seis meses em funções. E, ainda que a experiência seja curta, Guterres reconhece que já se deparou com “dificuldades” durante o seu mandato. Quais, não concretiza, mas o Observador sabe que a rigidez da máquina das Nações Unidas é uma das preocupações do ex-primeiro-ministro português.
Não sei se encontrei dificuldades que não esperava, mas que há muitas dificuldades, há”, reconheceu, em declarações aos jornalistas portugueses.
O objetivo final de Guterres é, por isso, levar a reforma interna da organização até à cúpula da organização, mas esse trabalho tem de começar pelas bases e fazer o seu caminho, de forma progressiva e ascendente, sob risco, admite Guterres, de a intervenção da ONU ficar comprometida. Um cenário que o português quer evitar a todo o custo. Em suma, o secretário-geral das Nações Unidas quer uma organização com “procedimentos mais simples, mais transparência e mais responsabilização” na sua ação.
Europa “podia ter resolvido o problema” dos refugiados
A crise de refugiados é tema central do mandato de Guterres. Antes de chegar à liderança da ONU, o secretário-geral esteve dez anos com essa pasta, enquanto Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Eleito para o topo da hierarquia, manteve o tema no centro da sua ação. E o tema manteve-se atual, num mundo que enfrenta “desafios sem precedentes”.
“Podia vir aqui dizer que o mundo nunca esteve melhor”, começou por sugerir Guterres na sua intervenção, sempre em inglês, no plenário – a primeira como secretário-geral e que mereceu uma ovação (pouco comum) de pé dos eurodeputados no final do discurso. Entre eles estava o eurocético Nigel Farage.
Mas a mensagem do português era outra. E não abonava a favor da União Europeia.
Teria sido muito importante se a comunidade internacional tivesse dado uma resposta atempada aos conflitos” na Síria e na Líbia, lamentou Guterres, sublinhando que as mortes no mediterrâneo e o caos que os países europeus mais próximos de África viveram nos últimos três anos “podia ter sido resolvido com plena solidariedade”, dos diferentes Estados.
Agora, é preciso que a União Europeia e Nações Unidas unam esforços na concretização de um “pacto global da imigração”, haveria de concretizar Guterres já na conferência de imprensa.
Europa unida, forte e eficaz
É neste ponto que o discurso sobre os refugiados se cruza com os desafios que a própria União Europeia enfrenta, sobretudo depois da decisão do Reino Unido de se desvincular do projeto europeu.
Guterres – um “europeu” convicto – não se refere diretamente aos problemas da União. Mas sublinha por diversas vezes na sua passagem pelo Parlamento Europeu a importância de “uma União Europeia unida e forte” que possa “apoiar as Nações Unidas” na resposta aos “dramas que enfrentamos”. Porque “uma Europa forte e eficaz é um pilar fundamental” para a promoção da paz e combate ao terrorismo, acrescenta Guterres.
“Solidariedade” é, por isso, um ponto central da visão do secretário-geral da ONU para a Europa, que recupera os valores sobre os quais o projeto europeu foi fundado para apontar o caminho em frente:
A tolerância e a primazia da razão, têm de ser um pilar central da nossa capacidade de construir um mundo mais tolerante, justo, pacifico e próspero”.
A mensagem para a União Europeia não foi enviada sem interesse próprio. Guterres sabe que, na Casa Branca, o inquilino do momento não morre de amores pelo trabalho desenvolvido pela ONU. E que Donald Trump vai mesmo fechar a torneira dos contributos de Washington para a organização. É, por isso, vital que as Nações Unidas encontrem novos parceiros e a União Europeia, com uma crise de refugiados a pulsar no seu coração e com uma histórica relação com África, ganha peso no diálogo que interessa à ONU aprofundar.
Não foi tema central, mas a mensagem sobre o combate às alterações climáticas acabou por sustentar muitos dos argumentos de Guterres no plenário. “As mudanças climáticas” e a “fome” andam de mãos dadas e, por isso, é “fundamental” implementar o acordo de Paris. Guterres recupera aquele que será o principal legado de Ban Ki-moon no seu mandato à frente das Nações Unidas e pressiona a União Europeia para que garanta o respeito pelo documento. “Contamos com a Europa para liderar” o combate às mudanças climáticas, sublinhou o responsável máximo da ONU.
O Observador viajou a convite do presidente do Parlamento Europeu