Garcia Pereira foi chamado de “canalha” e de “chulo” no jornal oficial do MRPP — o Luta Popular, controlado pelo fundador Arnaldo Matos. Acabou fora do PCTP/MRPP: primeiro suspenso a 6 de outubro de 2015, na sequência dos maus resultados nas legislativas; depois apresentando a demissão em mão a 18 de novembro do mesmo ano. Apesar disso, ficou em silêncio. Há dois dias, a 23 de maio, quebrou-o e diz-se traído por alguém que considerava um “pai” e confessa que o que mais o magoou foi ser chamado de “social-fascista” ou de “anticomunista primário“.

A oferta de um par de sapatos, os Mercedes supostamente alugados para Arnaldo Matos ir ao teatro, o nível burguês de duas lanchas de recreio ou um corte que o retirou de um vídeo do partido são algumas das histórias que esta resposta de Garcia Pereira torna públicas.

A “traição” do “pai”

Desde o último trimestre de 2015 que Garcia Pereira se recusou a dar entrevistas a falar sobre a sua saída do PCTP/MRPP. Agora, criou um site, com o endereço “Em Nome da Verdade” e o título “Só a verdade é revolucionária”, exclusivamente para responder ponto por ponto a Arnaldo Matos e aos membros do partido que o atacaram.

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Garcia Pereira confessa que o silêncio decorreu da “completa estupefação e do autêntico estado de choque” em que ficou por ser “apodado de social-fascista, de anticomunista primário e de outros epítetos similares”. O advogado — que foi o rosto do MRPP em várias campanhas — admite que pode “ter cometido erros”, também na “última campanha eleitoral”, mas nunca foi nem será “social-fascista”.

O que “magoou” mesmo Garcia Pereira foi, explica no mesmo texto, “o facto de esses ataques terem vindo precisamente de alguém que considerava como um verdadeiro amigo e até como um Pai”, o que “constituiu um golpe e uma traição que senti profundamente.” Ficou ainda surpreendido por camaradas que o conhecem há décadas terem aceitado “assinar textos que eles nunca escreveram por si (mas sim Arnaldo Matos, com o seu estilo inconfundível) com coisas que eles sabiam que eram perfeitas falsidades”.

Garcia Pereira começou depois a questionar-se “sobre o que realmente estava a acontecer e onde estava o Arnaldo Matos que conhecera e com quem tanto aprendera.” E no texto enumerou alguns exemplos do que considera virtudes de Arnaldo Matos: “Onde estava, na verdade, o Arnaldo Matos que, em 1975, ordenou a Durão Barroso – que apareceu na sede nacional do Partido, na Avenida Álvares Cabral, com uma camionete cheia de mobiliário da Faculdade de Direito – que o fosse de imediato restituir pois no PCTP/MRPP não éramos ladrões e que aquela era uma atitude indigna de comunistas? Onde estava o Arnaldo Matos que, na noite da morte de Sá Carneiro em Dezembro de 1980, na mesma sede nacional, verberou com veemência alguns camaradas que se vangloriavam da morte daquele, afirmando que os comunistas desejam a derrota política dos seus adversários mas não se vangloriam com a sua morte física?”

O antigo rosto do MRPP afirma já não reconhecer o amigo como o mesmo, já que Arnaldo Matos sempre lhe disse que, por mais “desagradável ou negativa que a verdade pudesse ser, os marxistas-leninistas não a distorcem, não a falsificam, não a reescrevem”. No mesmo texto, Garcia Pereira lembra os elogios que Arnaldo Matos fizera a si, ao seu trabalho e à sua atividade ao longo de décadas, não só “em privado”, mas também “em reuniões, sessões, comícios” ou até “no discurso de padrinho de casamento.” Nesta longa exposição, Garcia Pereira divulga também um vídeo feito por Arnaldo Matos numa homenagem feita ao advogado quando fez 60 anos.

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As três razões da quebra do silêncio e os agentes da CIA

Garcia Pereira enumera três razões para agora enfrentar em público o seu mentor. Primeiro, começa por dizer que, “antes de partir desta vida”, não tem “o direito de esconder, ou de permitir que escondam ou distorçam” a verdade. Em segundo lugar, por “respeito aos camaradas, militantes, simpatizantes e amigos do PCTP/MRPP” e por achar que o deve aos “60 mil votantes que permitiram ao PCTP/MRPP obter a subvenção, uma explicação”.

Por último, explica que não pode continuar a “ignorar situações” que lhe “revolvem as entranhas”. E acrescenta ainda: “Ao contrário do que sucedeu com diversos apoiantes de Arnaldo Matos, eu NÃO passei a ser amigo do José Manuel Coelho nem fui, ao contrário do que fez Arnaldo Matos, poucos dias antes do julgamento daquele, desistir da queixa apresentada por ambos contra ele por nos ter apelidado de agentes da CIA. E, ao contrário das ordens dadas a Arnaldo Matos a alguns dos seus seguidores, NÃO espiei, nem fiz espiar, os movimentos, horários e rotinas de quem quer que fosse, como NÃO fiz ou mandei fazer cartas ou telefonemas anónimos provocadores ou ameaçadores nem sugeri, propus ou ordenei a aplicação de ‘justos corretivos’ quando possível contra quem quer que fosse.”

O início da rutura: “Só me resta mandar-te à merda”

Já antes das legislativas de 2015, havia um degradar da relação entre Arnaldo Matos e Garcia Pereira, que mais tarde — em julho de 2016 — seria revelado por um dos camaradas próximos do fundador, que assina no Luta Popular Online como “Frederico”. No dia 21 de Agosto de 2015, Arnaldo Matos já fazia avisos ao seu discípulo:

Caro Garcia Pereira,

Estás a ir por um mau caminho, se continuas a fingir não perceber o que te digo. Olhei para a primeira página do Luta Popular Online de hoje e fico sem saber se as alterações que apresenta são ou não a nova primeira página, subsequente às minhas críticas e conselhos de anteontem. Se são, só me resta mandar-te à merda e deixar de aturar as tuas garotices.”

Arnaldo Matos lembrava nessa carta, que Garcia Pereira refere mas não reproduz neste novo site, que as observações que enviou “visavam reunir os nossos melhores gráficos para redefinirem, segundo uma nova linha política e após ampla e livre discussão, a nova maqueta da primeira página, quanto à especialidade, cor, títulos, letras e lugar de relevo a conceder ao editorial, como peça nobre da linha do Partido.” Ora, critica Arnaldo Matos, “nada disso foi feito nem entendido”.

Perante isto, Garcia Pereira respondeu com outra carta, revelada na altura pelo Luta Popular:

Caro Camarada,

Li o teu mail. Sinto-me literalmente perdido e transtornado. A tua ruptura para comigo é algo de praticamente inultrapassável. Na verdade, és e sempre serás uma referência, um farol na minha vida. Salvaste-me a vida, a física e a política, em 1978. Apoiaste-me sempre em todas as situações mais difíceis da minha vida. NUNCA o poderei esquecer! Reconheço a justeza das tuas críticas mas estou a sentir o chão fugir-me debaixo dos pés. (…)

Mas não consigo ver como posso passar sem o teu contacto, o teu apoio, a tua amizade. Desculpa. Nunca te quis atacar nem menosprezar quer política quer pessoalmente!

Os camaradas não tiram férias

Já em julho de 2015 tinha existido um momento de tensão entre ambos, num episódio revelado agora por Garcia Pereira. A 27, os dois tinham-se encontrado e Garcia Pereira desabafou algo que desagradou a Arnaldo Matos. Por isso, no dia seguinte, pela hora de almoço, Arnaldo Matos enviou um email a Garcia Pereira a recriminá-lo por pensar tirar férias antes de fechar as listas do MRPP:

Quando saíste ontem do meu escritório, já pela uma e meia da tarde, pareceu-me ter-te ouvido resmungar entre dentes qualquer coisa como ‘cansaço’ e ‘férias’. O cansaço é legítimo e faz bem à saúde. Porém, se tu e os teus amigos do Comité Central pensam ir de férias antes de constituírem as listas dos 22 círculos eleitorais e de as apresentarem ao País, isso significa ruptura total e definitiva comigo.”

No mesmo email, Arnaldo Matos acrescentava ainda que “no Comité Central de um partido revolucionário não há lugar a férias; há mas é tarefas políticas a cumprir em nome da classe operária e do povo, nos tempos apropriados.”

Demorou apenas mais um dia para que Garcia Pereira respondesse, assumindo mais uma vez um erro. Numa carta enviada a Arnaldo Matos, escreveu: “[É] muito justa a firme crítica que (…) foi dirigida pelo camarada Arnaldo Matos aos membros do Comité Central e em especial a mim próprio sobre a tarefa político-eleitoral das legislativas e os nossos erros, em particular os meus (…)”.

Garcia Pereira apagado na campanha da “Morte aos Traidores”

Só agora, mais de um ano e meio após os factos, é que Garcia Pereira decidiu afrontar o “pai” — mas, garante, “sem insultos, sem baixarias” como as que diz ter sido alvo. Lembra que Arnaldo Matos o conhece “demasiado bem” para saber que não recorre a calúnias, logo não terá as mesmas armas.

No site, Garcia Pereira avança com uma série de artigos onde vai rebatendo as acusações. No primeiro dos textos, todos publicados a 23 de maio, Garcia Pereira fala sobre as legislativas de 2015 e as regionais da Madeira e dá-lhe o título de “Morte aos Traidores — A sabotagem de uma campanha“. O advogado explica que refere a campanha na Madeira porque nela “foram feitos elevadíssimos gastos” e porque “desgastaram completamente as mesmas pessoas que depois tiveram de participar na campanha de Lisboa”.

É na sequência desse desgaste que, no verão de 2015, Garcia Pereira “e outros membros do Comité Central” constataram, “estupefactos”, o que agora denunciam: “Que Arnaldo Matos, do mesmo passo que nos ordenava que não gozássemos férias e até ‘enxotássemos as mulheres para longe’, fora ele próprio de férias para o Hotel do Bussaco durante 15 dias”.

Garcia Pereira lamenta as “pressões” de Arnaldo Matos e conta que escreveu o manifesto eleitoral do partido numa noite, a 8 de agosto, para que o partido não entrasse na campanha sem um instrumento fundamental. A esta distância, Garcia Pereira — que deu a cara em outdoors com a expressão “Morte aos Traidores” — acredita que a expressão “liquidou a campanha à partida”.

No entanto, após alguns camaradas contestarem a expressão, Arnaldo Matos chegou — acusa Garcia Pereira, divulgando um e-mail sobre o assunto — a mandar retirar a frase do material de campanha. No entanto, denuncia Garcia Pereira, Arnaldo Matos acabou por decidir manter a propaganda que já tinha sido impressa.

Ora, Garcia Pereira acha que isto fazia parte de um plano para associar o seu rosto à expressão. “Ficaram nas ruas os grandes cartazes (outdoors) com a expressão ‘Morte aos Traidores’ e a minha fotografia, cartazes esses que, após o final da campanha, foram os últimos a ser retirados, já largos meses depois, numa operação bem conveniente para quem já escrevia no Luta Popular artigos onde eu era apelidado de traidor e veio mais tarde precisamente referir e confirmar que tudo isto fora preparado com esse mesmo objetivo”, escreve o advogado.

É também relatado por Garcia Pereira que, sempre que participava como comentador num programa da Económico TV, recebia um telefonema de Arnaldo Matos, que o elogiava pela prestação. Mas, a partir de julho de 2015, houve uma nuance nestes telefonemas, que tinham sempre uma pergunta prévia de Arnaldo Matos: “Estás sozinho no carro?” Se Garcia Pereira não estivesse sozinho, a conversa ficava para o dia seguinte.

Garcia Pereira fala ainda numa manifestação, a 29 de setembro de 2015, onde esteve ao lado de Arnaldo Matos com “aparente normalidade”. Mas, ao abrir o Luta Popular online, verificou que “tinham sido retirados da primeira página do jornal toda e qualquer referência ao primeiro candidato por Lisboa”, ele próprio.

Além disso, Garcia Pereira acredita que foi eliminado do “vídeo de reportagem da manifestação [que] tinha sido censurado de forma a eliminar” a sua figura das imagens. E prova-o com frames do vídeo que publicou no mesmo site.

Printscreen do site criado por Garcia Pereira

Garcia Pereira garante que foi “tudo feito por ordem de Arnaldo Matos” e que o sabe porque confirmou “na altura com a diretora e outros elementos do Luta Popular”, que lhe disseram que eram contra aquela ordem. Para o então cabeça de lista por Lisboa esta foi uma forma de “sabotar consciente, friamente e por completo a possível eleição [para deputado]”.

Também terá havido boicote no jantar de encerramento de campanha, em que Arnaldo Matos terá enviado emails a vários camaradas a dizer que não deviam estar presentes: “Não deves em circunstância alguma estar presente no jantar de 5.ª feira em Lisboa, pois esse será o encontro da consagração dos traidores que estão no comité central“.

Apesar destas “condições inimagináveis”, congratula-se Garcia Pereira, “o PCTP/MRPP conseguiu obter mais de 60 mil votos, mantendo a subvenção, apesar de tudo e sem escamotear os diversos e graves erros cometidos.”

As contas do partido e os Mercedes alugados

Garcia Pereira considera que a acusação de que o Comité Central deixou o PCTP/MRPP numa “situação financeira catastrófica, num caos“, é “uma das mais graves e profundamente caluniosas falsas acusações produzidas por Arnaldo Matos e pelos seus seguidores“.

Candidato em várias campanhas, Garcia Pereira rebateu também a acusação de ter ficado com dinheiro. Pelo contrário, afirma que perdeu dinheiro com o MRPP. “Sendo eu, essencialmente, um advogado de barra e, logo, trabalhador por conta própria, e tendo de trabalhar como qualquer outra pessoa para me sustentar, apenas recebo quando trabalho. O que significa que todas e cada uma das candidaturas que encabecei pelo PCTP/MRPP, e das quais não me arrependo, representaram sempre e na verdade um verdadeiro desastre, não só nas minhas finanças pessoais, mas também na minha própria vida pessoal”, explicou.

O antigo candidato, que foi acusado de ter feito com que fosse o partido a pagar a viagem da sua companheira da altura à Madeira, diz que foi ele quem pagou. E mais: nas presidenciais de 2006, foi ele quem colocou, do próprio bolso, 10 mil euros na campanha que só mais tarde foram “parcialmente restituídos”. Mas Garcia Pereira garante que nunca reclamou o remanescente.

Garcia Pereira detalha também todos os gastos que o partido alegadamente tinha com Arnaldo Matos — que chegou a abandonar o partido em 1982 — e assume que concordou com eles. De acordo com o advogado, “todas as semanas eram gastos cerca de 100 euros em jornais, nacionais e também estrangeiros, que eram levados a Arnaldo Matos“. Além disso, “o PCTP/MRPP paga o salário da secretária de Arnaldo Matos desde janeiro de 2015 sendo o seu salário, em fevereiro de 2015, de 600 euros líquidos”. Além do serviço de secretariado, conta Garcia Pereira, “por não usar computador, Arnaldo Matos precisava de alguém que lhe fizesse o processamento dos textos que produzia, assim como que lhe imprimisse os mails e depois processasse as respostas que ele reduzia a escrito.”

Numa primeira fase, foi Carlos Paisana (do grupo de Garcia Pereira) que assumia essa função e que só saiu quando, escreve o advogado, Arnaldo Matos “lhe chamou de “Filho da P***” e só não lhe bateu (o que não seria a primeira vez) porque outros camaradas intervieram”.

Garcia Pereira explica ainda que, como não tinha carta de condução, “sempre que Arnaldo Matos se deslocava para fora era sempre alugado um carro e sempre de alta gama (Mercedes ou equivalente, BMW, Volvo, etc.), sendo que em 2015 o PCTP/MRPP tinha um gasto de cerca de 500/600 euros mensais com a empresa de aluguer de viaturas e com os custos do combustível, nem sempre (embora algumas vezes) pago por Arnaldo Matos, mesmo quando as suas deslocações eram feitas a titulo particular (idas ao teatro, por exemplo)”.

O advogado acusa ainda Arnaldo Matos de, de “forma intencionalmente falsa e maldosa”, ter definido como “iates” duas “lanchas de pesca/recreio” que Garcia Pereira comprou a “prestações, com o produto do trabalho”. E acrescenta: “Trata-se como Arnaldo Matos sabe – até porque viajou em ambas e até pilotou uma delas… –, de uma, em Porto Santo, com 5,40m de comprimento e mais de 20 anos de idade, e outra, em Lisboa, com 6,40m de comprimento e com mais de 10 anos, ambas com tão baixo valor comercial que, quando aflito com dificuldades financeiras em meados/finais de 2015, as procurei vender por qualquer preço, não o consegui!”

Da denúncia à PIDE ao “par de sapatos” burgueses

Garcia Pereira queixa-se que Arnaldo Matos, no artigo “De como os liquidacionistas sabotaram o jornal político do Partido”, o chama de “mitómano”, criando a tese de que Garcia Pereira “entrou para o partido depois do assassinato de Ribeiro Santos (e com a ideia de o substituir)” e que só teria entrado para o partido no final de 1975.

O advogado garante que, “semanas após o assassinato de Ribeiro Santos, ainda em 1972”, foi “recrutado como simpatizante da FEML – Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas, a Juventude do MRPP”. E dá como exemplos ações que fez pelo partido logo em 1973, como uma na Picheleira onde terá sido “visto e denunciado à PIDE”.

Cartão de militante de Garcia Pereira.

Garcia Pereira escreve ainda sobre o que chama de “outras falsidades”, como a visita à fábrica de sapatos Jóia que fez durante as legislativas de 2011, na sequência da qual foi acusado de vender “o proletariado por um par de sapatos”.

Garcia Pereira conta que, durante essa visita, foi o “Sr. Luís” (e não o gerente da empresa) que, “mesmo no final da visita” lhe “ofereceu um par de sapatos – uns ténis – no valor de uma dezena e meia de euros ou no máximo de duas dezenas” e que aceitou “tão somente por uma questão de cortesia para com aquela gentileza.”

O Observador tentou contactar Arnaldo Matos, através dos contactos da sede oficial do partido, mas não foi possível até ao momento de publicação deste artigo.