Quatro palcos, três dias, ramos de flores na cabeça, toalhas aos quadrados na relva. Foi a festa no Parque da Cidade, gente boa, de mais de 60 nacionalidades. Foi mais um NOS Primavera Sound que acabou, num último dia que se esforçou para cumprir ao máximo e com categoria a ideia do festival: ir a todas, sobretudo as que por norma não encontramos juntas no mesmo espaço. E todas aqui são as músicas, bem distintas umas das outras mas num entendimento de fazer inveja a qualquer grupo de vizinhos que diz nunca ter tido problemas ao nível do condomínio (é mentira, só pode).

Comecemos pela realeza. De um lado houve Elza Soares a correr contra o tempo, uma tarefa que poucos conseguem cumprir com tamanho brilho. Sabe tudo da vida e parece que continua a descobrir mais mundo. Transforma isso em canções e do lado de cá vamos todos atrás dessa fome notável de nunca estar contente com nada. Tem a melhor banda que podia ter para cumprir esta missão: gente que desdobra o samba em todos os géneros possíveis e um bom gosto que todos queríamos ter, nem que fosse na coleção de discos (ainda há coleções de discos) que temos lá em casa.

Elza Soares sambou na cara dos inimigos

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Do outro, Aphex Twin. Esperar um “concerto” deste aventureiro é um erro. E ainda bem que esclarecemos isso. Vejamos: Aphex Twin podia ser nome de jogo de vídeo com naves, podia ser um limpa fornos e fogões 2 em 1, raios, podia até ser marca de medicamento para a urticária. E até pode ser tudo isso porque a música que faz é abrasiva, neurológica, sensorial e de outro mundo. É um teste aos limites da eletrónica — e na verdade não há limites. É uma prisão nervosa, descontrolada. A maior parte das pessoas observava e escutava sem se mexer, entre a contemplação, a angústia e uma vontade de dançar sem saber qual o ritmo certo, porque ali não havia propriamente um ritmo. Nos discos que fez, Aphex Twin foi sempre um Indiana Jones dos computadores, um intrépido aventureiro pelos caminhos do som. Ao vivo exagera tudo isso, testa a nossa capacidade de assimilação, de compreensão. O que é que está a acontecer? De onde é que isto vem, como é que um homem sozinho faz isto, onde é que ele deixou o ovni? Alguém lá quer saber? Houve lasers a sair daquele palco, amigos. Lasers.

Partes tu e parto eu

Durante todo o último dia de festival aconteceu sempre este ping pong de gente aparentemente distante. Mais exemplos? Muito bem. Vimos os Death Grips, o trio de “hip hop experimental”, que tem mesmo de levar aspas porque o que aconteceu foi muito mais do que estas três palavras juntas. Foi porrada de meia noite, uma hora em que estivemos presos pelos colarinhos enquanto aqueles bastardos nos juntavam como se fossemos uma manada. Heavy thrash hip hop industrial punk com rimas proibidas a quase toda a gente, construído à base de violência e desaforo. Banda sonora para a criação de um exército que tem tudo para conquistar ou destruir o mundo (riscar o que não interessa).

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Mas também estivemos com os Metronomy. Tiveram de se contentar em aquecer os corpos para Aphex Twin, o grande momento de eletrónica da noite. Os ingleses desfilaram sucessos da sua pop eletrónica, como “Love Letters”, “Everything Goes My Way”, “Reservoir” e “The Look”, entre uma bateria do mais básico que há e um baixo por vezes irresistível. Apesar de bem dispostos e competentes, a multidão estava longe da enchente de Bon Iver mas teve a graça de uma boa dança com Joseph Mount e companhia. Não foi muito mais que isso mas o que foi foi bom. E é isso, no fundo, que importa.

Mais: fomos abalroados pelos The Black Angels. 10 minutos de atraso neste festival, onde a pontualidade tem sido religiosamente cumprida, quase que são notícia. A banda do Texas começou por nos assustar ao dizer palavras como “infelizmente”, mas nada de grave. Não justificaram o atraso, mas compensaram tudo na hora seguinte. Logo em “Currency”, primeira do novo álbum e a primeira do concerto, percebemos que o som estava perfeito. Se foi para resolver algum problema técnico que se atrasaram, estão mais do que perdoados. Negros, pesados, densos, os The Black Angels não falaram uma única vez com o público sem ser no início e no fim. Havia um atraso para recuperar e, com esta qualidade, quantas mais canções melhor: “Half Believing”, “I’d Kill for Her”, “Life Song”, o instrumental sempre no mesmo patamar da voz cheia de reverb, e não a servir-lhe de apoio.

O deserto, a garagem e o resto

Bailámos forte e feio com os Sanghoy Blues, um trio do Mali que respeita a tradição musical do país e que, ao mesmo tempo, parece a melhor banda que uma festa — qualquer festa — pode ter. Tem o mais talentoso dos vocalistas/bailarinos de que há memória, com uma atitude que só encontrou competição à altura na figura de Ian Svenonius, o desavergonhado frontman dos The Make Up. Regressados dos anos 90, com as referências que mantêm sobre o pós punk de uns quantos anos antes, podem até esforçar-se e merecer todo o respeito, mas a banda nunca vai ser maior que o líder, aquele carismático malfeitor.

E, senhoras e senhores, ainda os Japandroids. Com estes miúdos foi como se aquele palco Super Bock, enorme, fosse uma garagem e nós tivéssemos o direito a espreitar o que sai daqueles dois instrumentos: rock direto, sem truques, sem tempo para introspeções ou balanços de vida. Ou tudo ou nada. É pouco provável que voltemos a falar deste concerto daqui a meia dúzia de anos, mas tem vezes que o rock’n’roll só tem de existir, nada mais do que isso.

Numas notas abaixo: não conseguimos encontrar toda a emoção que Sampha procurou transmitir; ficámos numa de abanar a cabeça e bater o pé ao escutar o rock movido a Red Bull digital dos Operators e foi basicamente isso que fizemos; Weyes Blood foi o que é sempre, controlada e sem ambição de maior; e os Growlers foram simplesmente aborrecidos. Já se sabe, não se pode ter tudo.

NOS Primavera Sound regressa em junho de 2018 e não quer aumentar a lotação

Ou melhor, até se pode ter tudo (neste festival tivemos a doçura de Angel Olsen e a revolta dos Sleaford Mods; o hip hop violento dos Run The Jewels e o minimalismo de Flying Lotus; a ginga de Miguel e o charme de Hamilton Leithauser), mas não é fácil, é raro, dá trabalho e pede sacrifício. Mas convenhamos: andar três dias de cima para baixo, entre ladeiras, palcos, relvados e uns quantos abraços não se inscreve propriamente na categoria das coisas que custam. É um gosto e um gozo, ainda que o Parque da Cidade precise de alguma atenção extra quando é dia de bilhetes esgotados (hey, Bon Iver, a culpa foi tua). Não cabe toda a gente ao mesmo tempo nos mesmos sítios, coisas da matemática. Mais de resto, é o costume: a Primavera acaba e isso só não é triste porque há mais. Há sempre mais. Tem de haver.