É preciso subir dez andares da Torre 2 das Amoreiras para encontrar a casa da Undandy em Lisboa. É um escritório soalheiro com uma equipa do mundo, que tem oito nacionalidades e que, muitas vezes, se reúne à volta do tabuleiro de xadrez que está na mesa de reuniões. Rafic Daud, 38 anos, diz que é para trabalhar o “pensamento abstrato” da equipa. A mesma que é responsável pelos sucessivos “Xeque-Mate” da Undadny, diz o cofundador da empresa ao Observador. É que, há seis meses, esta marca que vende sapatos personalizados na Internet fazia 100 pares por mês. Hoje, vende 1.000.
O conceito pôs a marca debaixo do olho da Google. No início de 2016, a gigante tecnológica contactou a Undandy para desenvolver uma “estratégia de internacionalização da marca, de expansão e de utilização das ferramentas digitais”, explica o líder da empresa ao Observador. Sendo o marketing digital a principal “ferramenta de aquisição” de potenciais clientes, Rafic conta que a Google “viu algum potencial no produto”, numa altura em que ainda vendiam apenas dez pares de sapatos por mês.
A Google tem uma estratégia ótima para Portugal de apoio às PMEs. Um dos desafios, quando falamos do mundo digital, é que ainda temos um tecido empresarial composto maioritariamente por PME’s, muitas delas compostas por pessoas que não dominam todas as ferramentas digitais e a Internet. Um dos desafios é adaptar o tecido empresarial à realidade, porque o digital já não vai embora. Está cá e é para ficar”, refere.
A Undandy é um projeto que está “completamente formatado para o estrangeiro, para o mundo”, diz Rafic, que acrescenta que mais de 99% das vendas são para o exterior. A empresa vende para mais de 60 países, com os Estados Unidos como principal mercado, seguido pelo Reino Unido e Alemanha, Canadá e Austrália. Em Portugal, a proporção do digital no total das vendas é baixa, quando comparada com “mercados mais maduros como o dos Estados Unidos”, sublinha. “Ainda há alguma tradição de querer experimentar [antes de comprar]”, nota o líder da startup.
De Lisboa com “amor”
São sapatos que saem de Lisboa e de São João da Madeira para o mundo, com o “esforço”, a “alma” e o “amor” das quase 20 pessoas que ali trabalham, diz Rafic, para que cada homem possa ter um par de sapatos à medida do gosto de cada um. Em 2016, a Undandy vendeu cerca de 300 mil euros. Só o mês passado, vendeu cerca de 200 mil euros. Para este ano, admite o líder da empresa, a meta é chegar aos 4 milhões de euros.
Rafic pergunta na sala ao lado quantos pares foram vendidos desde que, em abril de 2015, lançou os sapatos personalizados com Gonçalo Henriques (que já não está no projeto). Maria, uma das portuguesas da equipa, perdida entre os cálculos das tabelas de Excel, atira: 4.751. Só no último mês, venderam 1.000. Este mês estão a caminhar para os 1.200, diz.
Nos próximos três meses, vamos vender tanto quanto aquilo que já vendemos na história toda da empresa. Estamos com uma crise de crescimento, porque cada semana tem sido sempre a melhor semana de sempre”, admite Rafic Daud.
A Undandy acabou por nascer para “tentar coçar a própria comichão” (“scratch your own back“): encontrar o par de sapatos certo.
Para os homens, é muito difícil encontrar um sapato que agrade. Ou é o sapato que tem a cor certa, mas não tem a forma ou a pele certa. Ou é mesmo aquele modelo de sapato, mas em cinzento. Surgiu quase como uma necessidade, aliando a tendências de mercado”, conta o líder da empresa.
Quando lançou a Undandy, Rafic Daud, filho de pais moçambicanos e com origem indiana, não tinha tido experiências na indústria do calçado nem no comércio eletrónico, mas escolheu Lisboa para ser a sede da empresa, depois de já ter vivido em Barcelona, Paris, Luanda, Londres, Arábia Saudita, Médio Oriente e Brasil.
Sou português, nasci cá, passei 15 anos fora do país, mas se fosse nova-iorquino e quisesse fazer uma empresa que se chama Undandy, que vai dedicar-se a fazer calçado manufaturado para o mundo, provavelmente metia-me num avião e ia instalar-me em Lisboa”, diz.
Mas porquê Lisboa? Rafic fala de uma “herança” que Portugal tem de saber trabalhar a pele e o calçado, que “não se encontra em muitas partes do mundo”.
Este saber trabalhar o produto com amor, com manufatura. Cada par é fabricado um a um. Vou ser um bocado esotérico, mas quase que ousava dizer que isto está um bocado na cultura dos portugueses, este saber fazer“, considera.
A arte e o engenho de fazer cada sapato fica com “o senhor Artur” na fábrica que tem em São João da Madeira, a capital do calçado portuguesa. Depois, diretamente da fábrica, os sapatos vão ter a casa dos clientes, onde quer que seja no mundo, diz o fundador da Undandy.
“Mostrem-me um par de sapatos que não consigamos fazer”
Há aqui um nicho que permite não só estar de acordo com tendências de mercado, falando da customização, e alavancar aquela que é a indústria mais sexy [a do calçado], como é conhecida em Portugal”, diz.
Como? Incluindo o consumidor no processo criativo que tem carta branca para escolher os materiais, cores, costuras, ou até gravar as iniciais ou alguma frase na sola dos sapatos. Tudo é feito no site da marca. “Mostrem-me um par de sapatos que nós não consigamos fazer”, desafia Rafic Daud. Até hoje, entre amigos, diz que só perdeu essa aposta uma vez.
O limite é a imaginação de quem não calça sapatos formais de uma forma regular, mas que precisa de calçado para um casamento ou outra ocasião mais formal, de um homem que usa fato diariamente ou de alguém que usa dezassete cores no vestuário e quer um sapato a condizer com essas cores todas. Um dos primeiros clientes, conta Rafic, desenhou uns sapatos com as cores da bandeira da Irlanda para usar no próprio casamento.
É, por isso, difícil traçar o perfil do utilizador da marca, admite o líder da Undandy, acrescentando que cerca de 80% são homens na faixa etária dos 35 aos 55 anos. Existe “uma diversidade tal que é, no fundo, o que está no ADN da marca”, nota.
A taxa de recompra está nos 40%, o que quer dizer que quase metade dos clientes voltam a comprar os sapatos da marca. Além dos sapatos, botas e ténis, começaram a vender cintos em fevereiro e, para o próximo mês, querem lançar carteiras e pequenos acessórios de pele, sempre dentro do universo masculino.
“Uma corrida com o mundo”
“Houve aqui um processo de curva de aprendizagem natural a qualquer empresa, em que estivemos a aprender como fazer este negócio, que consumiu uma boa parte de 2015 e de 2016. Estamos desde o início de 2017 com uma curva exponencial”, explica o cofundador da Undandy. Em janeiro, venderam 336 sapatos, cerca de 10 sapatos por dia. Em maio venderam quase mil sapatos, cerca de 31 pares por dia. Junho começou com uma média de 35 por dia. A empresa está a projetar vender 2.000 sapatos “muito rapidamente”.
Temos aqui um problema de crescimento que tem a ver com a produção. Um dos nossos principais fatores de diferenciação é que fazemos os sapatos em duas semanas. Mas não temos estado a cumprir, porque passamos de 100 pares de sapatos para 1000 e não estávamos preparados”, admite Rafic.
Para fazer face às dificuldades na produção, o cofundador da Undandy conta que a empresa está a planear construir uma unidade de produção própria que terá capacidade para fazer 200 pares de sapatos por dia. Também em São João da Madeira, porque é lá que está “muito do saber fazer“.
O recente escritório nas Amoreiras já é pequeno para acolher a equipa que tem crescido “todas as semanas”. “Temos aqui uma equipa de 14 ou 15 pessoas, a crescer todos os dias”, conta. Entre elas está um refugiado sírio, pessoas do Luxemburgo, Canadá, França, Irlanda ou Inglaterra. Por outro lado, nota Rafic, está a ser difícil criar a cultura de uma empresa que está a ser “criada do zero”, sem cultura, sem história. Encontrar as pessoas certas tem sido difícil, admite Rafic, para uma empresa que diz estar numa “corrida com o mundo”. “Não estamos a competir com a sapataria do lado em Portugal. Estamos a competir com o mundo”.
Até ao momento foram investidos 1 milhão de euros, em capitais próprios. No primeiro ano, a empresa beneficiou de fundos comunitários do Portugal 2020, no âmbito de um programa específico de internacionalização.
Em 2016, a Undandy vendeu cerca de 300 mil euros. Só o mês passado, vendeu cerca de 200 mil euros. Para este ano, diz Rafic, o objetivo é chegar aos 4 milhões de euros, o que significa uma receita mensal acima dos 350 mil euros. Para, em 2020, estar acima dos 15 milhões de euros, admite.
Antecipar o que vem a seguir não tem sido fácil, diz. “Não devemos correr para onde a bola está, mas deve correr para onde a bola vai estar. Como é que se antecipa, como é que se recruta, treina, adapta as pessoas a uma cultura que é alicerce e base para o sucesso da empresa, a esta velocidade?”, questiona. A dificuldade, admite Rafic, tem sido acompanhar a rapidez com que a bola rola.
*Tive uma ideia! é uma rubrica do Observador destinada a novos negócios com ADN português.