Ambos falaram da Coreia do Norte, ambos falaram da ameaça terrorista, ambos falaram de desigualdade e ambos focaram o galope dos avanços tecnológicos, que tanto podem ser utilizados para o bem dos povos como para a sua destruição.

António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas, e Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América, foram os protagonistas dos dois discursos mais aguardados da 72ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas da intervenção de estreia de Donald Trump ficaram ausentes alguns dos temas mais importantes da agenda mediática: nenhuma menção sobre a situação dos rohingyas em Myanmar, zero sobre o conflito israelo-palestiniano, nem uma palavra de crítica à atuação dos russos no leste europeu e também nenhuma pista sobre o que pretendem os Estados Unidos fazer sobre o acordo climático de Paris.

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Guterres não é um estreante neste púlpito mas foi também a primeira vez que falou à Assembleia como Secretário-Geral. E apresentou-se bastante pessimista.

O nosso mundo está em problemas. As pessoas estão a sofrer e zangadas. Veem a insegurança a aumentar, a desigualdade a crescer, o conflito a espalhar-se e o clima a mudar”, disse o secretário-geral. “Somos um mundo em pedaços. Precisamos de ser um mundo em paz.”

Mas não é só no conteúdo, é também na forma que se notam as diferenças entre os dois discursos. Um ameaça “destruir totalmente” a Coreia do Norte, outro diz que “o mundo tem medo de uma guerra nuclear“. Um fala em aceitação, o outro elenca entre os maiores perigos para o modo de vida do Ocidente a “emigração em massa”. Donald Trump diz que a América está primeiro, e que “qualquer governante responsável coloca o seu próprio país em primeiro lugar”. António Guterres foi eleito por ter feito carreira nessa função supranacional que é tentar encontrar uma solução para os milhões de pessoas desprovidas, precisamente, de uma pátria — foi diretor do Alto Comissariado para os Refugiados.

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Eis o que se aproximou, o que os distanciou e o que ficou por dizer.

Coreia do Norte e armamento nuclear

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“O uso de armas nucleares tem que ser algo de impensável”, disse o Secretário-Geral das Nações Unidas. “Mesmo a ameaça da sua utilização nunca poderá ser aceite”, completou Guterres, acrescentando, no entanto, que entende que “a ansiedade global em relação às armas nucleares está no seu nível mais elevado desde a Guerra Fria”.

Os cenários de uma catástrofe: a guerra com a Coreia do Norte seria assim

Num discurso onde pediu a todos os Estados-membros que “cumpram as resoluções do Conselho de Segurança”, Guterres condenou “inequivocamente” os testes nucleares realizados recentemente pela Coreia do Norte e sublinhou que “apenas a unidade pode conduzir à desnuclearização da Península da Coreia e criar uma oportunidade para uma relação diplomática que resolva a crise”. Sobre a retórica de guerra entre os EUA e o país de Kim Jong-un, Guterres avisou que “conversa inflamável pode conduzir a mal-entendidos fatais”.

Não podemos entrar sonâmbulos numa guerra. Os países têm que mostrar um grande empenho para um mundo sem armas nucleares. Os Estados com armas nucleares têm uma responsabilidade.”

Foi um recado para ambos os lados que Donald Trump parece não ter encaixado totalmente. Num tom austero, o presidente americano disse que “o Rocket Man está numa missão suicida, para ele e para o seu regime”. Rocket Man é o nome que Trump tem utilizado nas suas últimas intervenções públicas para se referir ao líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un.

Trump mencionou ainda os “milhões de pessoas” que passam fome na Coreia do Norte por culpa do regime autoritário em vigor e falou em Otto Warmbier, o estudante norte-americano que chegou aos Estados Unidos em coma, acabando por morrer poucos dias depois. E foi aí que disse a frase que fez manchetes por todo o mundo:

Podemos não ter outra opção se não a de destruir completamente a Coreia do Norte. Os Estados Unidos estão prontos, têm capacidade e estão predispostos, mas temos esperança de que não seja necessário termos de o fazer — é para isso que as Nações Unidas servem.”

A imigração: tema central para um, ignorado pelo outro

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Alterando entre o inglês, o francês e o espanhol, o Secretário-Geral das ONU olhou depois para os problemas do mundo. “A confiança entre os [nossos] países está a ser ameaçada por aqueles que demonizam e dividem”, disse, enumerando depois as sete grandes ameaças que o mundo enfrenta: o risco de conflito nuclear, o terrorismo internacional, conflitos por resolver e violações da lei humanitária internacional, mudanças climáticas, aumento da desigualdade, insegurança cibernética e a crise de refugiados. Guterres começou precisamente por aí, os refugiados, um tema que conhece bem:

Em vez de portas fechadas e hostilidade aberta, precisamos restabelecer a integridade do regime de proteção do refugiado e a decência simples da compaixão humana.”

E foi mais longe, referindo-se a si mesmo como imigrante, mas um que não teve que arriscar a vida “num barco que vertesse água ou na parte de trás de um camião para encontrar trabalho fora do [meu] país de nascimento”.

Para António Guterres, a “imigração segura não pode estar limitada a uma elite”.

Ora como se sabe o que pensa e o que já determinou Donald Trump sobre o tema, o presidente americano optou por omitir este tema do seu discurso, dizendo apenas que a “imigração em massa” ameaça as fronteiras do Ocidente. Perante a Assembleia, Trump esquivou-se a desenvolver um dos assuntos que mais tem marcado a sua presidência mas, em Washington, já se discutem as mudanças que deverão tornar a imigração para os Estados Unidos precisamente mais elitista, contradizendo as “indicações” de Guterres.

A premissa do “Raise Act”, um acrónimo para “Reforming American Immigration for Strong Employment” ou “Reformar a Imigração para um Crescimento do Emprego”, é reduzir o número de imigrantes legais em 50% nos próximos dez anos e um dos caminhos pensados para atingir esse fim é a instituição da admissão e imigrantes “por pontos”. O que isto significa é que as pessoas que tenham, por exemplo, educação superior e falem bem inglês terão “mais pontos” no seu “cartão” e, assim, mais possibilidades de virem a ser admitidas como trabalhadores em solo norte-americano.

E estas são as medidas “soft”, até porque o próprio Trump se tem tornado menos cáustico nesta questão. Às vezes, nos comícios que organiza como se ainda fosse um candidato em campanha, o grito de guerra “Vamos construir esse muro!” lá faz uma aparição, entusiasmando as pessoas que consideram que o número de imigrantes mexicanos atingiu níveis insustentáveis. Porém, os planos para o fim do programa de proteção dos imigrantes levados para os Estados Unidos ilegalmente enquanto menores (o DACA que ameaça os Dreamers) ainda estão a causar uma enorme onda de protestos.

Trump pode acabar com a proteção aos “Sonhadores”

Mas se em campanha vale tudo para galvanizar as massas, a realidade tem corrido de forma lenta sobre os planos iniciais de Trump. “Qualquer pessoa que entre ilegalmente nos Estados Unidos será deportado e para os imigrantes que sejam apanhados a cometer qualquer crime, não são crimes graves, não haverá amnistia”, disse o agora Presidente dos Estados Unidos, a três meses de o ser. Isto ainda não aconteceu.

Refugiados, onde o foco está agora em Myanmar

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Neste tema os dois líderes não podiam estar mais afastados. Não tivesse Trump feito campanha contra a entrada de refugiados sírios que “podem ser do ISIS“, o auto-denominado Estado Islâmico, e Guterres ter feito carreira no ACNUR.

António Guterres utilizou a perseguição que a minoria muçulmana dos rohingya está a sofrer no Myanmar (ex-Birmânia), onde a crescente crise humanitária já envolve centenas de milhares de refugiados, para defender o fim dos conflito e criticar a “violação sistemática do direito humanitário internacional”.

Atualmente existem cerca 22,5 milhões de refugiados no mundo e apenas 189 mil tinham sido reintegrados em algum país no ano de 2016, segundo os números do ACNUR. Nos seus vários discursos, antes e depois de ter ocupado o cargo mais alto das Nações Unidas, António Guterres sempre se esforçou para enaltecer “a coragem dos que decidem fugir” e a “compaixão daqueles que os recebem”: foram estas as palavras que escolheu para assinalar o último Dia Mundial do Refugiado, que se celebrou dia 20 de junho.

Já Donald Trump quis parar a aceitação de qualquer refugiado em solo norte-americano com o polémico “travel ban”, uma ordem executiva que ainda está a ser discutida nos tribunais norte-americanos, que impede pessoas de seis países com maiorias muçulmanas de entrarem nos Estados Unidos. Esta parte da lei está suspensa mas as restrições à entrada de refugiados foram aprovadas pelo Supremo Tribunal dia 13 de Setembro.

Efeito Trump. Todos contra o decreto anti-imigração

Irão, a outra ameaça nuclear (segundo Trump)

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O acordo para a desnuclearização do Irão, assinado entre este país, os Estados Unidos e outros estados nucleares, em 2015, é um dos alvos preferidos de Donald Trump. O Presidente dos Estados Unidos muitas vezes se referiu ao acordo como “o pior de sempre” que o seu país assinou. Esta terça-feira voltou a fazê-lo perante os membros da Assembleia, incluindo o Irão, representado por Gholamali Khoshroo, que, nas últimas semanas, se tem também revoltado contra o léxico persecutório dos Estados Unidos.

“O acordo com o Irão foi um dos piores e mais desequilibrados acordos que os Estados Unidos já assinaram. Francamente, o acordo é uma vergonha para os Estados Unidos e não creio que se tenham já dito tudo o que é preciso sobre isto. Acreditem em mim”, disse o Presidente que apoia uma revisão ou mesmo o fim do acordo que permitiu o levantamento das sanções económicas aos iranianos em troca de uma promessa de que toda a exploração nuclear do país servisse apenas fins civis como a produção de energia.

Foi o mote para uma longa crítica a Teerão. “O governo iraniano mascara uma ditadura corrupta, escondendo-se atrás de uma aparência de democracia. Tornou-se um país rico, com um história e uma cultura ricas, num país periférico, economicamente em ruínas que tem na violência, no derramamento de sangue e no caos as suas principais exportações”, disse ainda Trump.

António Guterres não se alongou sobre o Irão mas a sua posição é conhecida: apoia e defende o acordo de 2015. Na celebração do segundo aniversário da sua assinatura, a 14 de julho, o secretário-geral disse que “o JCPOA — sigla para o acordo — foi um enorme sucesso no caminho para não-proliferação nuclear. Dá-nos a todos esperança que outros problemas complexos como este possam também ser discutidos através do diálogo e da cooperação.” A Agência Europeia para a Energia Atómica já confirmou que o acordo está a ser cumprido pelo Irão.

Mas há mais um problema com o Irão: a suspeita, que é um pouco mais fundamentada do que normalmente são as suspeitas, de que o país se envolva no financiamento de grupos terroristas como o Hezbollah, a milícia armada libanesa, e, apesar de menos, o Hamas na Palestina. De acordo com a base de dados Terrorismo Global, a maioria dos ataques terrorista são perpetrados por sunitas, como são os membros do autoproclamado Estado Islâmico ou da al-Qaeda e não por xiitas mas, de qualquer forma, as milícias apoiadas pelos iranianos são consideradas pela comunidade internacional como grupos terroristas.

Trump disse ainda que na primeira fila das vítimas do regime iraniano estava a própria população do país, e pediu aos membros da Assembleia que não continuassem a pactuar com um “regime assassino” nem com as suas “atividades desestabilizadoras”.

Clima, onde eles não se entendem mesmo

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“Inegável” e “imparável”, são os adjetivos que António Guterres mais utiliza para se referir ao aquecimento global. Do outro lado está um Trump — e um exército de empresários — bastante céticos em relação à mera existência do fenómeno e à urgência em reduzir as emissões de CO2.

Donald Trump já disse até que o aquecimento global é “uma invenção chinesa” para se colocar na frente da corrida para maior economia do mundo mas, no entanto, a China assinou o Acordo de Paris, e Donald Trump escolheu retirar o seu país de um documento que compromete todos os países do mundo a acionar medidas que impeçam a temperatura de subir mais de dois graus este século. Trump tem apenas a Síria e a Nicarágua do seu lado, sendo que os primeiros estavam envolvidos numa das mais sangrentas guerras civis dos primeiros 17 anos deste século.

António Guterres já elegeu as alterações climáticas como um dos três mais urgentes problemas que o mundo tem para resolver. Na sua opinião, uma grande parte das guerras que se travam — e que se irão travar no futuro — são por culpa das modificações abruptas que esse fenómeno representa para algumas das economias mais frágeis: um ciclo de secas e cheias cada vez mais graves irá resultar não só em migrações em massa, como em guerras pelos poucos recursos que restem. Só através do Twitter, o Presidente dos Estados Unidos já se revelou contra a “cabala” do aquecimento global pelo menos 115 vezes, enumera — e ilustra — o site de jornalismo de dados Vox. Aqui está um exemplo: “Está um gelo lá fora, onde raio está o ‘aquecimento global'”?

Depois dos Estados Unidos se terem retirado do acordo, Guterres disse que permanecer dentro dos princípios do acordo não era apenas a “coisa certa” mas a “coisa mais inteligente” a fazer porque “as nações que agarrarem a economia verde serão as mesmas a garantir um papel central na economia do século XXI”.

Mas a Casa Branca tem outra ideia. À frente da Agência para a Proteção Ambiental está Scott Pruitt, um republicano procurador-geral do estado do Oklahoma que não só não acredita que as alterações climáticas provocadas pelo aquecimento global sejam culpa do Homem, como tem sido um grande defensor de alguns dos maiores gigantes da indústria da energia fóssil contra a legislação aprovada no tempo de Barack Obama, que, entre outras medidas, obrigava a reduções significativas dos gases poluentes das indústrias mais poluidoras, o que se traduz, pelo menos numa primeira fase, na redução da produção e dos lucros.

Esperava-se que Donald Trump fizesse uma referência ao Acordo de Paris porque nos últimos dias tinham surgido algumas informações contraditórias quanto à posição dos Estados Unidos. Na semana passada, os Estados Unidos fizeram-se representar numa reunião com os 30 signatários do Acordo de Paris e terão dito a alguns dos oficiais que o país estava “aberto a conversações”. Seguiu-se uma espécie de pingue-pongue entre os vários porta-vozes da Administração Trump e os jornalistas. Gary Cohn, diretor do Conselho Nacional para a Economia da Casa Branca, disse que os Estados Unidos iam de facto libertar-se das amarras do acordo a menos que novos termos, “mais vantajosos à indústria norte-americana” fossem discutidos. Está esclarecido.

Venezuela: um ao ataque, o outro conciliatório

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“Da União Soviética a Cuba passando pela Venezuela, em todos os sítios onde o verdadeiro socialismo ou o comunismo foi adotado, o resultado foi angústia, devastação e falhaço”, disse Donald Trump para abrir o capítulo da Venezuela. Será que António Guterres se sentiu atingido pelo Presidente dos Estados Unidos fazer equivaler o “seu” socialismo ao comunismo? É pouco provável que Trump seja um profundo conhecedor do passado partidário de Guterres. O que parece um pouco mais claro é o fosso que separa os dois homens, também na questão venezuelana.

Num encontro com os embaixadores dos vários países da América Latina, à margem da 72ª Assembleia das Nações Unidos, Trump tinha deixado algumas palavras particularmente duras ao regime de Nicolás Maduro. “Os Estados Unidos estão preparados para os próximos passos possíveis caso a Venezuela continue neste caminho em direção a um regime autoritário”, disse Trump que pediu uma “restituição imediata” da democracia do país.

Quais são os “próximos passos”? Intervenção militar. Pelo menos a ameaça já foi feita — e reiterada. No início de agosto, um mês marcado por fortes protestos nas ruas das principais cidades venezuelanas contra a escassez de produtos que está a deixar milhões de pessoas sem alimentos suficientes para se manterem saudáveis, Donald Trump disse: “Temos várias opções para a Venezuela e, já agora, eu não estou a descartar a hipótese de uma intervenção militar”. Seguiu-se um coro afinado de críticas por parte da maioria dos representantes da comunidade internacional, de entre os quais se destaca António Guterres que se esforçou por manter uma posição equidistante entre Maduro e os membros da oposição.

Em agosto, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas defendeu que a Venezuela deve “manter-se livre tanto da intervenção estrangeira como do autoritarismo” e pediu “diálogo entre o governo e a oposição”. “A América Latina conseguiu livrar-se tanto da intervenção estrangeira como do autoritarismo. E essa é uma lição que é muito importante salvaguardar, concretamente na Venezuela”, afirmou o diplomata português.