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O que disse Marcelo nas entrelinhas este 5 de outubro

Este artigo tem mais de 5 anos

Veja aqui a descodificação do que disse o Presidente no dia da República: os recados, os destinatários de críticas, as referências implícitas, os significados da intervenção. Por Vítor Matos

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PAULO NOVAIS/LUSA

PAULO NOVAIS/LUSA

Marcelo Rebelo de Sousa fez um discurso no dia da Implantação da República com avisos, apelos e críticas mais ou menos velados. A meio, disse que estava a fazer um balanço do que correu bem e do que correu mal. A segurança interna e a justiça estão a correr mal, mas a maior crítica vai para a ministra da Administração Interna. A abstenção nas autárquicas e as Forças Armadas estão a correr bem. Para o futuro: os políticos deviam pensar mais no longo prazo, não ceder a eleitoralismo neste ciclo até às legislativas e ter “grandeza de alma” para fazer “convergências”.

O discurso do Presidente da República está a itálico e a interpretação e o comentário estão a amarelo:

“Uma Democracia assente em antiga e sólida Unidade Nacional, razão de legítimo orgulho de todos nós”.

Referência de contexto: toda a gente sabe que Portugal é um Estado Nação, sem separatismos. É uma forma de o Presidente sublinhar que não temos os problemas que se estão a viver em Espanha e na Catalunha

“Uma Democracia política. Com um Poder Local forte e próximo das pessoas. E as eleições de há quatro dias devem ser encaradas com apreço, olhando às centena de milhar de candidatos e à redução do nível de abstenção. Os portugueses entenderam a importância do seu envolvimento cívico, bem como a urgência de começar a inverter um sintoma de aparente desinteresse pela coisa pública”.

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Marcelo disse antes das eleições que não ir votar "por amor à terra" era "impedoável". Na realidade, a abstenção desceu e a participação aumentou. Nas autárquicas de 2103 votaram 4,9 milhões de portugueses, ou seja, 52,6 dos votantes inscritos. No passado domingo votaram 5,1 milhões, ou seja, 55%. A redução da abstenção já é uma vitória para Marcelo, que não contou com a ajuda do seu antecessor. A quem não se perdoa é a Cavaco Silva, o ex-presidente que, depois de anos a fazer apelos ao voto, confessou que não foi votar porque tinha ido a um casamento na Escócia. Ficam as palavras de Marcelo do passado sábado: "[Não votar] pode representar uma omissão incompreensível ou um descuido imperdoável”.

“Uma Justiça que veja o seu estatuto devidamente prestigiado e se revele capaz de resolver os litígios em horizonte comparável ao dos nossos parceiros europeus.”

Para uma avaliação mais política, podíamos dizer que Marcelo estava a falar de casos como o de José Sócrates: o ex-primeiro-ministro foi preso preventivamente há três anos durante dez meses, o caso tem conhecido sucessivos adiamentos e ainda não há acusação. Mas o Presidente também se está a referir a aspetos mais gerais e preocupantes no comparativo comunitário: os tribunais portugueses estão no fundo da tabela da rapidez processual, pois precisam em média de de 710 dias para resolver os litígios, quando em Espanha a média ronda os 200, segundo o dados divulgados em abril pelo Painel de Avaliação da Justiça na União Europeia. Apesar de tudo, em 2010, a média de demora chegava aos 1100 dias. Alguma evolução entretanto se deu. A questão do reconhecimento do estatuto pode ser um amortecedor para a contestação dos magistrados e para as ameaças de greve dos juízes.

“Uma segurança interna que seja vista como penhor de tranquilidade e previsibilidade por parte dos cidadãos no exercício dos seus direitos, sempre e, em particular, em momentos mais críticos.”

Esta é a segunda grande crítica ao Governo, se considerarmos que a da Justiça foi a primeira. A tragédia do fogo de Pedrógão Grande e Castanheira de Pera foi apenas há dois meses, e o Presidente já tinha dito que não se pode "minimizar o apuramento cabal dos factos e das responsabilidades". Mas esta é uma referência implícita a um caso em que o Presidente se empenhou de forma muito pessoal. É uma maneira de dizer que o Estado falhou, que num momento crítico em que devia estar presente não conseguiu garantir a segurança dos cidadãos. Morreram 64 pessoas, muitas famílias foram afetadas de forma definitiva e muitas outras tiveram prejuízos materiais. Marcelo aponta aqui para António Costa e para a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa e para as falhas sucessivas que foram identificadas e que colocam a segurança dos cidadãos em causa. Quanto a responsabilidades, até agora nem vê-las.

“Forças Armadas que continuem a merecer o unânime reconhecimento nas suas missões internacionais e, em simultâneo, sejam sentidas como nossas, cá dentro, isto é, como elemento essencial que são da nossa identidade desde que Portugal é Portugal. Unidas, orgulhosas dos seus pergaminhos e do valor das condições indispensáveis ao cumprimento do seu desígnio coletivo.”

O código para decifrar esta passagem pode estar na necessidade de haver "condições indispensáveis" para o exercício das missões. O Comandante Supremo faz saber que são mesmo "indispensáveis", mas não vai mais longe porque pelo menos no Exército já há convulsões que bastem. O caso de Tancos não está explícito na referência elogiosa às Forças Armadas, mas pode estar presente no ponto anterior relativo à segurança. Em todo o caso, o Presidente, que acompanha de perto as missões militares de Portugal no estrangeiro ainda no dia 2 de outubro esteve a bordo no submarino Arpão a despedir-se dos militares que vão participar na Força Nacional Destacada para a “European Union Naval Force Mediterranean - Operation Sophia”

“Democracia política, ainda, e sempre, com protagonistas capazes de apontar para o médio e o longo prazo, ultrapassando o mero apelo dos sucessivos atos eleitorais. Sendo certo que não há sucessos eternos nem revezes definitivos.”

Um aviso muito sério e vincado, condensado numa pequena frase que vai direitinho ao Governo -- sobretudo para os parceiros da coligação -- em vésperas de Orçamento do Estado, para travar a continuação de políticas populares mas perigosas do ponto de vista financeiro. Marcelo dá a entender que a bonança não dura sempre, da mesma maneira que já tinha avisado para este segundo ciclo político não ceder a tentações eleitoralistas. O Presidente não quer o Governo a trabalhar para as eleições de 2019. Por outras palavras, Rebelo de Sousa está a dizer que Governo e os parceiros baseiam-se no crescimento económico do presente e no curto-prazo para suportar as políticas que têm efeitos de longo prazo, quando o mundo vive momentos de grande instabilidade. É um aviso à navegação política e económica e uma forma de questionar a sustentabilidade das escolhas da "geringonça". Mas para equilibrar afirma que igualmente aquilo que corre mal também não dura para sempre.

“Democracia política, sobretudo, com garantia dos direitos de todos. Sem discriminações de qualquer espécie, do sexo à raça, da idade à condição social, da situação física à orgânica ou atividade territorial ou socio-profissional.”

Depois do efeito mediático da campanha acusada de ser racista e xenófoba de um candidato do PSD à câmara de Loures, que teve apenas 21% no concelho -- mas cujo discurso teve impacto nacional --, Marcelo deixa claro que uma democracia não pode ser discriminatória em nenhum aspeto. Perante os sinais dos tempos, é uma forma pedagógica de mostrar que uma democracia evoluída deve ser inclusiva e não discriminatória.

“Mas Democracia que não se quede na política, chegue à economia, à sociedade, à cultura. O que impõe, desde logo, conjugação entre vitalidade económica, equilíbrio financeiro e preocupação social, condições para a salvaguarda da liberdade integral, não permitindo que as desigualdades ou as injustiças a esvaziem ou inviabilizem. (…) Para que não esmoreçamos no percurso já feito e pugnemos por maior independência financeira, por maior criação de riqueza e de emprego, por mais justa distribuição do rendimento, por mais eficaz e, por isso, determinado mas realista combate à pobreza, às discriminações, às intolerâncias e segregações.”

Marcelo entra na segunda fase do discurso para dizer que sem finanças públicas em condições, sem contas equilibradas, não há independência para fazer escolhas políticas: não é possível, assim, haver boas políticas sociais nem forma de combater a pobreza. A questão é que os caminhos da direita e da esquerda são totalmente diferentes para atingir estes objectivos de que fala o Presidente.

“Ano após ano, a celebração do 5 de Outubro, que o mesmo é dizer da República Democrática, deve servir para fazermos um balanço do passado e assumirmos um compromisso com futuro. Balanço do que, no último ano, construiu ou fortaleceu a Democracia e do que a corroeu ou enfraqueceu. Balanço do passado, mas, acima de tudo, compromisso com o futuro.”

Chave de leitura. O Presidente da República está a dizer-nos que este discurso está a elencar o que correu bem e o que correu mal ao longo do ano. Embora não o esteja a fazê-lo de forma totalmente explícita, nesta descodificação já percebemos o que falhou ou pode estar a falhar na sua análise: a segurança interna e a proteção dos cidadãos, o sistema de justiça e a desatenção às contas públicas que desguarnecem o longo-prazo. O que correu bem? A redução da abstenção apesar de Cavaco, as missões das Forças Armadas e a unidade nacional.

“E tudo façamos para que as portuguesas e os portugueses saibam que as suas vidas e bens estarão mais seguros, que a sua inocência ou culpabilidade não será um novelo interminável, que a crise financeira e económica não regressa mais, que a educação – hoje bem presente neste dia especial para os professores – como a saúde e a segurança social não cavam fossos inaceitáveis, que os cidadãos dispõem de vários caminhos de escolha – sabendo que a existência de alternativa quanto à governação é sempre preferível às ambiguidades diluidoras, e que só reforçam os radicalismos anti-sistémicos –, mas que os seus responsáveis políticos e sociais têm a grandeza de alma para fazer convergências no verdadeiramente essencial mantendo as frontais e salutares divergências naquilo que o não é.”

O "professor" Marcelo volta a sublinhar os problemas de segurança e de justiça, os mais relevantes do discurso, e faz uma referência aos professores no Dia do Professor -- que também é a 5 de outubro -- ao mesmo tempo que havia docentes a manifestarem-se entre a multidão que assistia aos discursos. Mas o ponto mais importante desta passagem é o regresso do apelo às convergências políticas, com uma referência à "grandeza de alma" dos políticos para encontrarem terreno comum. Com Passos Coelho fora da jogada, terão os próximos protagonistas essa "grandeza de alma" de que fala Marcelo? E António Costa? Entendamos aqui "grandeza de alma" como capacidade para engolir o orgulho, baixar as armas da luta política e procurar terreno comum onde for possível.

“Se, ano após ano, e, também este ano, mostrarmos a coragem necessária para sublinharmos o que correu bem, ou muito bem – mesmo que isso, aparentemente, favoreça outros que não nós –, e para reconhecermos o que correu mal, ou muito mal – ainda que isso nos apareça como intolerável fragilidade própria –; se assim for, o 5 de Outubro continuará a valer a pena, a República Democrática será mais do que uma conquista histórica, ou umas centenas de artigos da Constituição, ou uma proclamação para sessões solenes. Eu acredito que somos capazes deste exercício de humildade cívica. De afirmar êxitos, sem complexos ou arrogâncias. De confessar fracassos, sem temores ou inibições. E de assumir que, no futuro, teremos de ser igualmente perseverantes no que fizemos de certo, e radicalmente melhores no que fizemos de errado ou insuficiente, ou, pura e simplesmente, não fizemos.”

Mais uma vez, o Presidente explica que esteve a fazer um balanço do ano, sensibilizando os responsáveis políticos para terem a humildade de reconhecer onde falharam, mesmo que para o Governo esse reconhecimento favoreça a oposição (e vice-versa). Não deixa de ser uma referência à crispação entre esquerda e direita ou às posições rígidas de António Costa ou de Passos Coelho, quando se confrontavam no espaço público, onde sempre apareceram como tendo razão a todo o transe e sem nunca assumirem qualquer falha. Marcelo parece querer transformar os dias 5 de outubro no palco para fazer esse balanço. Vamos esperar pela próxima comemoração da Implantação da República, em que teoricamente estaremos muito mais próximos de legislativas, para percebermos se continuará a ser assim.

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