Até há uma semana e meia, Samim Bigzad temia pela vida. Estava escondido num quarto de hotel de Cabul, com homens armados sempre a entrar e sair do hotel, intimidando o concierge para conseguirem o número do seu quarto. Os empregados do hotel iam levar-lhe as refeições e Samim estava convencido de que também eles iriam sofrer as consequências de o terem protegido.

A milhares de quilómetros, no Reino Unido, o (agora) seu advogado Jamie Bell fazia tremer as instituições, ao conseguir que um juiz acusasse o Governo de Theresa May de desrespeito aos tribunais. No centro da história que liga Londres a Cabul está Bizgad, um afegão de 23 anos que luta por asilo no Reino Unido desde 2015. Chegou a ser salvo por um piloto da primeira vez que o tentaram deportar, mas a máquina da Administração Interna voltou a colocá-lo num avião. Desta vez tem, finalmente, a máquina judicial do seu lado. E com o barulho que a imprensa tem feito sobre o caso, uma grande parte dos britânicos.

Aliado durante a guerra, dispensável depois dela

Apesar de só ter 23 anos, ainda nem tinha 16 quando começou a trabalhar na construção civil, no Afeganistão. Fazia parte dos milhares de afegãos que acabaram com o nome na folha de salários da coligação da NATO que invadiu o país em 2001, como resposta aos ataques de 11 de setembro. Alguns trabalhavam como tradutores, outros como guias, alguns como informadores, e a maioria trabalhava a construir as infraestruturas necessárias à presença dos mais de 150 mil homens e mulheres, que, no pico do esforço de guerra, chegaram a estar presentes no país.

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Ora o motivo invocado para a invasão de 2001 foi sempre a luta contra uma milícia taliban de bárbaros, uma tribo de gente sem qualquer respeito pela vida humana, quanto mais pela Lei Internacional. Foi a eles que os homens e mulheres que tinham facilitado a vida aos soldados da coligação ficou entregue quando Barack Obama decidiu fazer regressar a larga maioria do seu contingente. De essenciais passaram a traidores e muitos têm a cabeça a prémio ainda hoje. E tê-la-ão sempre: ou morre a presa ou morre o carrasco.

Samim também a teve. E por isso decidiu fugir.

“A primeira vez que Samim tentou escapar foi em 2015. Chegou ao Reino Unido através de Calais, em França, dentro de um camião, quase a sufocar. O seu pai já estava no Reino Unido há mais de dez anos, tendo sido admitido por sofrer de stress pós-traumático por ter sido torturado pelos taliban no início da guerra”, conta ao Observador Jamie Bell, advogado de Samim.

Depois de chegar ao país, Samim interpôs o primeiro pedido de asilo. Em 2015, alegava que a sua vida corria perigo no Afeganistão. Foi-lhe negado, tal como dois recursos, um em março e outro em abril de 2016. Durante todo este tempo, Samim viveu em Kent, com uma família de acolhimento, ao abrigo de um programa de proteção de refugiados.

Samim Bigzad foi detido no Centro de Imigração perto da casa onde vivia com a sua família de acolhimento, em Kent, já em agosto de 2017, onde apenas se tinha deslocado para uma obrigatória, mas rotineira, visita mensal. “Todos os requerentes de asilo têm que se apresentar junto do Centro de Imigração uma vez por mês só para dizer ‘estou aqui’, ‘sim, ainda estou à espera de notícias sobre o pedido de asilo’ e responder às perguntas que os técnicos tenham”, explica Bell.

Já não saiu de lá livre. Do Centro de Imigração passou para o Centro de Detenção de imigrantes ilegais. Foi só aí que soube da intenção do Estado britânico em o remover do país. “Estamos a falar de alguém que era o principal cuidador do seu pai, que tem família aqui no Reino Unido, todos já são cidadãos britânicos, que se desloca ao Centro de Imigração como fazia sempre e é apenas aí é que é informado da iminência da sua deportação para um país tão perigoso como o Afeganistão, mesmo para os que não estão marcados para abate”, conta o advogado.

Na terça-feira, dia 26 de agosto, a polícia escoltou Samim a um voo destinado a Istambul. Dali iria para Cabul, onde já não tinha família, apenas os taliban à sua espera.

Os insistentes pedidos da família para que ele não fosse deportado não resultaram, nem os de Kavel Rafferty, uma ilustradora que ofereceu um quarto vago em sua casa para receber Samim quando ele chegou, em 2015. Durante o tempo em que permaneceu no país, apesar de não ser permitido aos requerentes de asilo trabalhar enquanto esperam o resultado do pedido de asilo, Samim estudou inglês, tomou conta do pai e ajudou o seu primo na mercearia da família.

Foi através desse primo, Ashan — que nunca deu o segundo nome à comunicação social — que se ficou a saber que tipo de ameaças Samim recebeu enquanto trabalhava para as tropas da NATO.

“O meu primo recebeu uma chamada, enquanto ainda trabalhava nas obras, de um homem a dizer que era representante dos taliban e que tinha ordens para lhe comunicar que o iriam matar se não parasse de trabalhar com as firmas americanas. Disseram-lhe: ‘sabemos onde vives, onde trabalhas, vamos cortar-te a cabeça assim que te virmos’“, contou ao Independent. Depois de a sua mãe o ter instado a que fugisse, a família de Samim pagou a quem o ajudasse a chegar ao Irão, e daí para a Turquia, de onde atravessou o mar Egeu com milhares de outros refugiados no pico da crise das migrações.

Depois de saber que tinha um voo marcado de regresso a esta realidade, Samim parou de comer, deixou de falar com as pessoas e isolou-se mais do que normalmente. Quem conta é Rafferty, que descreve Samim como um jovem calado que nunca se queixava de nada, nem da sua situação complicada.

Bem-feitor desconhecido

Há vários grupos no Reino Unido que se reúnem para tentar atrasar ou impedir a deportação de pessoas que viram os seus pedidos de asilo negados. Um deles é o “End Deportations” que, em março de 2017, ocupou a pista do aeroporto de Stansted em protesto contra a deportação de várias pessoas para a Nigéria.

No dia do seu voo, Samim também teve a companhia dos ativistas que se dirigiram ao aeroporto de Heathrow para tentar parar a deportação. Mas o seu herói foi outro.

Um grupo de cerca de uma dezena de ativistas foi ter com os passageiros na fila para embarcar no voo da Turkish Airlines e começaram a informá-los de que naquele voo ia Samim, um jovem afegão com família no Reino Unido, que corria perigo de vida se chegasse ao seu destino e que, caso se sentissem confortáveis com isso, deviam informar o piloto ou a tripulação do que se estava a passar. Uma petição a impedir a sua deportação, iniciada pela família que o acolheu, tinha nesse momento mais de 3000 mil assinaturas.

Mas toda a gente embarcou sem grande alarido, exceção feita a Samim, que enviou uma última mensagem a Rafferty: “Eles vão levar-me”.

Mas algo de inesperado aconteceu. Uma hora mais tarde, Samim voltou a ligar: “O piloto disse que não levantava voo comigo”. E não levantou. Samim permaneceu em solo britânico e foi levado de volta a um Centro de Detenção perto do aeroporto.

Jamie Bell não sabe o nome do piloto, na imprensa britânica o seu nome também ainda não apareceu, mas o advogado frisa que esta é uma situação raríssima. “O piloto foi muito humano, deu tempo para que conseguíssemos organizar melhor o seu caso para asilo, mas isto é raríssimo. O que acontece 99% das vezes é que os oficiais da Administração Interna vão para dentro do avião e falam com a tripulação e com o piloto e garantem que está tudo bem, que ninguém fará mal aos deportados”, conta Bell que, desde que começou a exercer, há cerca de 10 anos, se tem focado nos casos de afegãos que não conseguem aceder ao asilo no Reino Unido.

Segundo testemunhas dentro do voo, o piloto terá saído do avião e ter-se-á dirigido à polícia britânica dizendo: “Vocês não o vão deportar neste avião. Não levanto voo. Há alguém aqui com a vida em risco”. Segundo a legislação da Agência Europeia para a Segurança Aérea os pilotos são responsáveis pela segurança nos seus voos e têm a autoridade de remover passageiros do avião, por exemplo, alegando razões de segurança.

Segundo conta o diário The Telegraph, Samim estava bastante agitado na altura em que embarcou, chorando e dizendo sem parar: “Eles vão decapitar-me”. O piloto terá sido chamado à atenção para o seu estado por um dos membros da sua tripulação a decidiu então retirar Samim do voo.

“É uma batalha constante, há muita descrença dentro do ramo da Administração Interna que trata dos pedidos de asilo. Não acreditam que os taliban sejam um perigo assim tão grande, não acreditam que o país seja assim tão perigoso, não acreditam nas histórias das pessoas. São uma máquina cética, sem coração”, diz o advogado numa conversa com o Observador pelo telefone a partir de Londres.

Uma das pessoas que tratou do seu processo, que também falou sob anonimato ao diário The Guardian, disse que, segundo a sua experiência, os afegãos tinham mais dificuldade em conseguir asilo do que outras nacionalidades: “A recusa original foi baseada em questões de credibilidade da sua história — é um caso clássico. Os afegãos são muitas vezes rejeitados porque a Administração Interna entende que lhes falta credibilidade e há muitos atritos entre nós, que estamos perto dos centros de acolhimento, e o governo nesta questão”, disse o técnico.

Uma ministra em maus lençóis

Mas dia 12 de setembro, data agendada para a segunda tentativa de deportação, o piloto já não foi tão condescendente. Samim foi mesmo colocado num voo ao fim da tarde com destino a Istambul. Ligação a Cabul: 22h30.

Por volta das 16h00 o avião partiu. “Duas horas depois de Samim ter embarcado nós conseguimos uma ordem do tribunal para que ele regressasse ao Reino Unido e telefonamos imediatamente ao departamento de imigração da Administração Interna. Ainda não tínhamos o documento na mão mas iríamos ter em breve e não tínhamos motivos para lhes mentir”, conta Bell, que confessa ter estado “horas num corrida contra o tempo e contra a intransigência”.

Por volta das 21h50, a Administração Interna recebeu finalmente o documento ordenando ao departamento que contactasse as pessoas que estavam com Samim para que este não embarcasse no voo de ligação a Cabul. Bell diz que o que se passou a seguir é o que mais o inquieta e é isso que, neste momento, está a tentar investigar. “Sabemos que os oficiais que estavam com Samim receberam uma chamada por volta das 22h00 a informar que teriam que trazer Samim de volta e uma outra poucos minutos depois a refutar essa ordem, autorizando a viagem até Cabul”, conta ao Observador. “Sabemos que a ordem veio da Administração Interna mas não sabemos ainda de quem, nem por que é que um oficial, isto se foi um oficial e não alguém mais alto, haveria de tomar uma decisão contra uma ordem tão explícita do tribunal”, completa.

Samim embarcou sem saber quem o esperava em Cabul. Depois de lá chegar ficaria sozinho, a última ligação ao Reino Unido partiria quando os oficiais da Administração Interna partissem. Informado disto, o tribunal emitiu um novo comunicado, muito mais duro, já na quarta-feira, dia 13, onde dizia que esta decisão da ministra da Administração Interna, Amber Rudd, tinha sido tomada “in contempt of court”, ou seja em desrespeito pelas ordens do tribunal.

No mesmo documento, o juiz Robert Jay ordenava ao governo para “acionar imediatamente todas as medidas necessárias para trazer de volta o indivíduo em questão para o Reino Unido”.

“Isto é extremamente preocupante. A deportação no geral de pessoas em perigo de vida é ainda mais preocupante mas é muito, muito raro que, depois da ordem de um juiz, um departamento governamental escolha mesmo assim prosseguir com a sua intenção de deportação. A legalidade desta ação é muito questionável e por isso abrimos um processo contra este departamento“, disse Jamie Bell, que acredita que a Administração Interna descurou as ordens dos juízes não uma, mas duas vezes, ao se ter recusado a trazer de volta Samim, primeiro em Istambul e depois já em Cabul, quando já tinham a informação do juiz mais que confirmada.

Os dias que se seguiram foram de agonia para Samim, que se manteve barricado num hotel de Cabul onde ia sendo informado pelos empregados de que alguns taliban “à paisana” sabiam que ele lá estava e que exigiam aos gerentes do hotel saber o seu exato paradeiro. Pela televisão por cabo ia acompanhando o desenvolvimento da sua história no Reino Unido — uma das poucas que conseguiu atenção da imprensa de todo o mundo e talvez isso não seja um facto negligenciável no desenlace desta história.

No domingo, dia 17 de setembro, cumpre-se finalmente a ordem judicial britânica. Samim é retirado em segurança do hotel em Cabul e regressa ao Reino Unido, para sua família de acolhimento. Jamie Bell está a preparar um caso “à prova de bala” para que Samim consiga asilo e fique “para sempre” no Reino Unido.

“Não mais que uma gota no oceano”

A pressão mediática para uma explicação precipitou a emissão de um comunicado por parte do Home Office. “Tomamos todas as medidas necessárias para aceder às ordens do tribunal e fazer trazer de volta Samim Bigzad apesar dos problemas logísticos, da falta de documentos do indivíduo e do número limitado de voos. Mantemos que, quando a ordem chegou, era demasiado tarde para o fazer desembarcar do voo de Istambul para Cabul”, disse um porta voz do organismo tutelado por Amber Rudd, citado pelo diário The Guardian.

Claire Rimmer, advogada do Conselho Europeu para os Refugiados e Exilados falou ao Observador sobre o panorama geral destes casos, e ele não é muito animador. “Temos que ter em consideração que Samim conseguiu um advogado bem colocado para o ajudar, um especialista. Eles lutaram em várias frentes para o trazer de volta. Outros não têm esta sorte. As restrições orçamentais à ajuda legal fazem com que esta seja negada para os recursos a menos que os advogados assim o indiquem à Agência de Ajuda Legal, o que nem sempre acontece”, explica, frisando ainda que “é difícil a uma pessoa num centro de detenção ter acesso a um advogado se já não tiver um anteriormente, se não falar a língua e se não souber sequer onde procurar ajuda”.

A responsável pela coordenação da ajuda legal aos requerentes de asilo considera o caso de Samim “uma gota no oceano”, mas importante, na medida em que permite mostrar “os labirintos” onde estas pessoas têm que se movimentar. “Os recursos têm sempre que ter efeito de suspender a deportação até serem esgotadas todas as vias legais. Novas provas têm sempre de ser avaliadas. Agora, é preciso entender como é que alguém com um caso tão forte como o de Samim Bagzad pode ter sido repatriado contra a política do próprio departamento [de imigração]”, argumenta Rimmer.

A pressão para reduzir os números de exilados, refugiados e imigrantes torna-se mais apertada à medida que mais e mais pessoas chegam à Europa. Por exemplo, o acordo chamado “Joint Way Forward”, assinado entre o Afeganistão e a Europa em outubro de 2016, compromete os Estados-Membros a um esforço para reconstruir o país, mas também abre as portas ao repatriamento de milhares de afegãos presentes na Europa, que fugiram à guerra que dura há mais de 16 anos.

O documento na sua totalidade não foi tornado público, mas o The Guardian teve acesso a uma cópia onde se lê, entre outras coisas, que a União Europeia poria fim à ajuda financeira ao país caso as suas autoridades se recusem a receber os repatriados. Outras medidas incluem prazos muito mais curtos para as remoções voluntárias, menos ajuda legal, repatriação de mulheres e crianças, que, até agora, só acontecia a partir da Noruega.

Ao diário britânico, Liza Schuster, uma académica especialista em migrações residente em Cabul disse que este acordo é uma prova de como os países desenvolvidos conseguem impor a sua agenda a países onde simplesmente não existe a possibilidade de empurrar as decisões noutro caminho”. A economia interna do Afeganistão só gera 10.4% do PIB, pelo que parece impossível que o país possa entrar em conflito com os Estados-membros.

Tanto o Reino Unido como a União Europeia arriscam-se a perder a sua capacidade de serem os promotores dos Direitos Humanos e de valores democráticos, como até aqui, se todos os processos legais referentes àqueles que precisam de ajuda desaguam numa recusa e se a nossa política externa se basear apenas em alcançar números mais baixos de imigração através de retornos forçados”, disse ainda Claire Rimmer.

Desde que a violência piorou no Afeganistão, no início de 2015, já pediram asilo na Europa mais de 190 mil afegãos.