A fotografia que ilustra este artigo é de março de 2016, do dia em que a “geringonça” funcionou pela primeira vez para aprovar um Orçamento do Estado do Governo socialista. É uma raridade conseguir captar os três líderes, de PS, PCP e BE, juntos numa só imagem (nesta está também o líder parlamentar comunista João Oliveira). O disparo apanhou uma ocasião fugaz (Catarina Martins está em segundo plano) por uma razão que se mantém intacta desde que rola esta solução governativa: os acordos são bilaterais. Não há acordos a três e a disputa pelo protagonismo público entre duas das partes, Bloco e PCP, é quase sempre intensa e outras (não tantas) vezes visível a olho nú. Este Orçamento não foi exceção neste jogo de influência. Mas quem ganhou?

O Governo tentou dividir irmãmente os lucros que cada um destes partidos teria para exibir em relação ao Orçamento do Estado. Algumas foram reivindicações de ambos, caso do aumento de pensões, das alterações do IRS, ou o descongelamento de carreiras, mas houve influências decisivas, ao longo do processo, em cada um dos lados no momento do fecho das medidas.

O que ganhou o PCP?

O PCP dirá sempre que é insuficiente, mas conseguiu levar a sua água ao moinho numa série de aspetos, como no aumento das pensões, por exemplo

Aumento do mínimo de existência

O mínimo de existência funciona para garantir que nenhum contribuinte fica com um rendimento disponível abaixo de um dado valor, depois de cumpridas as suas obrigações fiscais. O aumento do mínimo de existência era pedido à esquerda e os comunistas apontavam um valor concreto: uma subida para os 9.350 euros anuais. A negociação com o Governo não permitiu ir tão longe no mínimo de existência, que em 2018 poderá ficar perto dos 9 mil euros.

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No aumento que foi feito, porém, não pesam apenas as negociações com o PCP, já que a verdadeira alteração é que o mínimo de existência, que até agora era um valor fixo (8.500 euros) passa a ser calculado em função do Indexante de Apoios Sociais (IAS), cujo valor também será atualizado no próximo ano acima da inflação. Basicamente é esta mudança que faz com que o mínimo de existência dê o salto previsto no Orçamento, para os 8.998 euros (calculando já com 1,5 IAS, a valores de 2018).

Nesta matéria, o Governo também ainda incluiu uma ideia sua e não dos parceiros: alargar a aplicação do mínimo de existência — que até agora se destinava a trabalhadores dependentes — também as recibos verdes. De acordo com o relatório do Orçamento do Estado, todas estas alterações conduzem “a um universo potencial de 1,6 milhões de agregados que beneficiarão deste alívio fiscal, com 210 mil agregados diretamente beneficiados com a alteração das regras do mínimo de existência”.

Mais aumentos nas pensões

Uma semana e meia antes da entrega do Orçamento do Estado, o primeiro-ministro disse no Parlamento que, no próximo ano, só pela aplicação da Lei de Bases da Segurança Social, as pensões teriam uma atualização automática que classificava de “extraordinária”. Mas nas negociações do Orçamento que se seguiram, o PCP não largou a questão, dizendo que esse aumento era automático. Os comunistas trabalharam, então, numa solução que permitisse beneficiar quem, por via do aumento decorrente da lei, não chegasse aos dez euros de atualização das suas pensões.

A proposta inicial comunista dirigia-se às pensões abaixo dos 588 euros que, mesmo com a atualização automática não atingiam os dez euros de aumento. Para esses, o PCP queria um aumento extraordinário que funcionasse como um complemento para suprir a diferença entre o recebido e os dez euros. A medida, nos cálculos do PCP, custaria 140 milhões de euros, que o Governo não estava disposto a acrescentar ao que já previa gastar em 2018 com o aumento das pensões (357 milhões de euros com o aumento automático).

O Governo ainda chegou a pôr em cima da mesa a ideia de aplicar esse aumento apenas a quem tivesse mais de 75 anos, mas o PCP acabou por negociar que se aplicasse a todas as pensões abaixo dos 588 euros que, pelo aumento automático, não fossem aumentadas em 10 euros. No caso das pensões mínimas, sociais e rurais, o aumento será no valor que faltar entre o que resulta do aumento automático e seis euros. Mas para conseguirem chegar até aqui, os comunistas tiveram de ceder quanto ao momento de aplicação da medida. O aumento extraordinário só vai vigorar a partir de agosto de 2018, exatamente nos mesmos moldes do aumento extraordinário do ano passado. O custo total da medida fica, assim, nos 117 milhões de euros e dividido por dois anos: 35 milhões já em 2018, 82 no próximo.

O que ganhou o Bloco de Esquerda?

O aumento dos escalões do IRS e a vinculação dos professores foram duas bandeiras ganhas pelo Bloco de Esquerda de Catarina Martins

Desdobramento de escalões do IRS

A promessa já vinha dos tempos de campanha eleitoral em 2015, quando António Costa concorria às legislativas e assumiu, numa entrevista, que era necessário alterar os escalões do IRS para introduzir maior progressividade no imposto. Depois de formar um Governo apoiado pela esquerda, a medida passou a ser exigida por um coro à esquerda, mas nos dois primeiros anos de coexistência o Governo disse sempre não haver disponibilidade financeira para acomodar a alteração fiscal.

Dois anos depois, a esquerda traçou um limite para esta espera e exigiu que os escalões de IRS fossem alterados já, aumentando a progressividade — permitindo um alívio fiscal maior para quem tem menos rendimentos. A mudança chegou neste Orçamento do Estado, com o Governo a aproximar-se mais do Bloco de Esquerda. No início das negociações, soube-se que o Governo teria como proposta inicial um desdobramento faseado dos escalões (permitindo que em vez de cinco passassem a existir sete escalões), deixando um deles (o atual terceiro escalão) para 2019.

Na semana antes da apresentação do orçamento, a negociação desbloqueou e o Governo aceitou o modelo de sete escalões de uma vez: desdobrou assim o segundo escalão (entre os 7 mil e os 20 mil euros) e terceiro (entre os 20 mil e os 40 mil euros). O novo segundo escalão vai passar a englobar os rendimentos que vão de 7.091 a 10.700 mil euros, aos quais se aplica uma taxa de 23%. Já o terceiro vai aplicar uma taxa de 28,5%, aos rendimentos entre 10.700 e 20.261 euros. Naquele que vai ser o quarto escalão em 2018, a taxa de 35% vai recair sobre rendimentos entre 20.261 a 25.000 euros e o quinto (37%) englobará rendimentos entre 25.000 e 36.856 euros.

Este ano, a alteração aos escalões vai representar um ganho de 230 milhões de euros para os contribuintes, bastante menos do que pretendiam Bloco de Esquerda e PCP (400 milhões de euros). Isto apesar do valor total gasto com mexidas ao nível do imposto sobre os rendimentos ascenda, em 2018, aos 385 milhões de euros. É que alterações como a do mínimo de existência vão ter efeito apenas no momento do reembolso.

A vinculação dos professores

Já perto do final da semana, o Bloco de Esquerda veio anunciar que tinha conseguido introduzir no Orçamento uma alteração à norma-travão que determina que para os professores serem vinculados terão de ter apenas três (e não quatro) contratos sucessivos, anuais e completos. Além disso, desapareceu também a norma que determinava que estes docentes tinham de estar sempre colocados no mesmo grupo de recrutamento. A mudança permitirá que 1.200 professores entrem no quadro no próximo ano.

Além deste número, na conferência de imprensa que deu para explicar a medida que o Bloco reclama ter conseguido no Orçamento, Joana Mortágua disse ainda que seriam incluídos “cerca de 2.400” professores através de nova vinculação extraordinária. No total, as vinculações de docentes no próximo anos deverão ascender aos 3.600.

Mais ganhos da esquerda (mas negociados com sindicatos)

Descongelamento de carreiras na Função Pública

Foi um compromisso assumido pelo Governo para este Orçamento, mas o desenho da medida demorou a fechar. Foram horas de negociação no Parlamento, com os parceiros de esquerda, e muitas outras horas com os sindicatos da função pública. Houve vários modelos em cima da mesa. O cenário colocado pela esquerda era descongelar tudo já, mas a primeira proposta que o Governo colocou em cima da mesa foi descongelar em quatro anos, com a totalidades reposta apenas no final de 2021. O Bloco de Esquerda colocou logo um entrave a esta ideia: a posição conjunta assinada com o PS em 2015 diz respeito a esta legislatura, por isso o descongelamento que ficou acordado nessa altura, teria de acontecer até 2019.

A segunda proposta já tentava um aproximação aos parceiros, prevendo a reposição da progressão de carreiras em apenas dois anos, ou seja, até ao final da legislatura. Mas ficava a faltar tudo o resto: a que ritmo? Alguém ficava de fora? O que aconteceria à contagem do tempo (para quem isso é determinante na progressão) dos sete anos em que as carreiras estiveram congeladas? O tema foi sempre tido como o mais complexo deste Orçamento, não foi por acaso que foi o último a ficar fechado, já na madrugada de sexta-feira.

Na proposta que foi enviada aos sindicatos na quinta-feira de madrugada, o Governo previa repor em três partes a progressão das carreiras: 33% em janeiro de 2018; 66% em janeiro de 2019 e 0s 100% em dezembro de 2019. Mas durante esse dia, até à madrugada seguinte, isso ainda mudou mais uma vez, para o seguinte formato: no início do próximo ano, os funcionários públicos só terão direito a 25% do aumento salarial correspondente à progressão na carreira a que teriam direito. Em setembro, este reposição passa a 50%, o que faz com que acabem o ano em melhor condições do que na proposta que estava em cima da mesa. A terceira parte da reposição acontecerá em maio de 2019, atingindo os 75%. E a última parcela acontece a 1 de dezembro de 2019, como estava previsto anteriormente. Foi este o desenho que vingou, tendo sido fechado assim depois de uma reunião com o PCP que acabou já altas horas da madrugada de sexta-feira.

Mas ainda haverá água a correr por debaixo desta ponte, já que a medida que ficou no Orçamento traça um cenário diferente para os professores, que dependem do tempo de serviço para progredirem e os últimos sete anos não vão ser contabilizados. O ministro das Finanças explicou que esta medida, acordada com os parceiros, vai abranger 80% dos funcionários públicos.

O que o BE e o PCP ainda podem conseguir na especialidade

A esquerda vai continuar a pressionar o Governo para obter mais ganhos de causa. O secretário de Estado Pedro Nuno Santos, aqui com António Costa, é o pivot das negociações

Aumentar a derrama estadual sobre os grandes lucros

Ambos os parceiros da esquerda querem que este adicional de IRC para as empresas que mais lucram seja agravado no terceiro escalão, o mais alto. Ou seja, que a taxa de 7% aplicada ao lucro tributável acima de 35 milhões de euros seja aumentada para 9%. O assunto ficou pendurado na negociação da proposta de Orçamento do Estado, mas depois de ser aprovada na primeira votação parlamentar, ainda haverá um longo debate e negociação mais detalhada — que no Parlamento se chama especialidade –, altura em que os partidos apresentam propostas de alteração ao Orçamento e procuram uma maioria que as aprove. Esta proposta de alteração concreta, da derrama, já tem presença certa e prometida pelo BE e PCP nesse debate, mas é só mesmo um tema caro à esquerda. Não é ainda claro que o PS a aprove, ainda que os comunistas garantam que existe um acordo político para isso.

O fim dos cortes no subsídio desemprego

Está também garantida a repetição da aliança Bloco/PCP numa outra matéria: o fim do corte do subsídio de desemprego depois dos primeiros seis meses a receber aquele apoio. A medida foi pedida na negociação do Orçamento, mas nenhum dos partidos conseguiu convencer o Governo a avançar. Agora, ambos assumem que vão fazer propostas de alteração no debate da especialidade à espera que uma nova negociação leve o Executivo a considerar a reversão de mais aqueles cortes.

Alargamento da gratuitidade dos manuais escolares

Chegar ao fim da legislatura a cobrir todo o ensino obrigatório com manuais escolares gratuitos era um objetivo do PS, mas este Orçamento não traz o passo seguinte que era esperado: que a distribuição gratuita destes manuais se estendesse além do primeiro ciclo, para os 5º e 6º anos de escolaridade. O PCP promete agora introduzir o tema do debate na especialidade do Orçamento do Estado, através de uma proposta de alteração.