Quem esperava que o momento da declaração unilateral da independência da Catalunha fosse feita a gritos de “viva a república!”, certamente ficou desiludido. Não foi isso que aconteceu — pelo menos numa fase inicial — quando se determinou que havia uma maioria de deputados a votar favoravelmente esse desfecho. Strictu sensu, não era a independência que estava a ali a ser votada, mas antes a ativação da lei que agora importa compreender: a lei da transitoriedade da Catalunha.

Esta lei, aprovada a 7 de setembro pelos deputados do Juntos Pelo Sim e da CUP, e que mais tarde viria a ser declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, contempla quais são os passos a dar após a declaração da independência da Catalunha — mesmo que, a partir de Madrid, nada disto seja reconhecido.

Por pontos, conheça o que diz a lei da transitoriedade, que Carles Puigdemont e o seu governo querem agora levar avante.

Quem serão os cidadãos da Catalunha?

Segundo a lei da transitoriedade, a nacionalidade catalã será um direito de todos aqueles que…

  • Estiverem registados num município catalão desde data anterior a 31 de dezembro de 2016;
  • Quem não cumprir o requisito anterior, pode candidatar-se à nacionalidade catalã depois de estar dois anos registado num município catalão;
  • Todas as pessoas que tenham nascido na Catalunha; que vivam foram daquela região mas que, anteriormente, tenham vivido nela durante pelo menos cinco anos; filhos (biológicos ou adotados) cujo pai ou mãe têm a nacionalidade catalã; filhos de pais estrangeiros, desde que nascidos na Catalunha; filhos nascidos na Catalunha mesmo que a identidade da mãe ou do pai seja desconhecida;
  • Segundo a lei da transitoriedade, a “atribuição da nacionalidade catalã não requer a renúncia à nacionalidade espanhola nem a qualquer outra nacionalidade” e diz que o governo catalão irá “o mais depressa possível” negociar com o Governo espanhol um tratado sobre a nacionalidade.

Quem são os seus líderes políticos?

Segundo a lei da transitoriedade, o parlamento regional da Catalunha passa a desempenhar as funções legislativas até ao final de abril, altura em que está prevista a realização de eleições constituintes. A partir desse plebiscito, será criada a assembleia constituinte da Catalunha, que terá a função de discutir e propor a Constituição que caberá aos catalães aprovar, ou não, pela via de um referendo.

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E quem é que escolhe o presidente do novo governo da Catalunha? Essa é uma decisão que cabe à Assembleia Constituinte — e, como tal, ainda não é líquido que essa pessoa venha a ser Carles Puigdemont. Porém, é pouco provável que seja outro nome o escolhido para liderar o governo secessionista catalão.

Tanto o presidente do governo da Catalunha como os seus deputados têm imunidade enquanto exerçam os seus mandatos. Porém, podem ser detidos e presos em casos de flagrante delito. Nesse caso, o seu julgamento cabe ao Tribunal Supremo da Catalunha.

Ao parlamento, cabe o poder de legislar, de aprovar orçamentos, monitorizar e promover a ação governamental. Em casos de “necessidade extraordinária urgente”, o governo pode emitir um decreto-lei provisório. Os decretos-lei não se aplicam ao processo constituinte, à Constituição da Catalunha, ao orçamento nem à lei eleitoral.

Como vai funcionar o processo constituinte e quais são os seus prazos?

Segundo a lei da transitoriedade, a declaração da independência dá lugar a “um processo constituinte democrático, de base cidadão, transversal, participativo e vinculativo com o objetivo de redigir e aprovar a Constituição da república”.

Este processo divide-se em três fases: uma primeira de processo deliberativo; uma segunda de eleições constituintes e de elaboração de uma proposta constitucional por parte do parlamento; uma terceira onde a proposta constitucional é levada a referendo.

A primeira fase, do processo deliberativo, dura seis meses. Durante esse tempo, prevê-se que sejam chamados partidos e membros da sociedade civil para formarem o Fórum Social Constituinte. Também o Governo vai estabelecer um Órgão Conselheiro, formado por especialistas internacionais e académicos.

A segunda fase inicia-se com a dissolução do parlamento e a convocatória de eleições constituintes — ou seja, no final de abril de 2018, a Catalunha vai a eleições. A assembleia constituinte terá de então de chegar a acordo quanto a uma proposta constitucional a ser aprovada pelos cidadãos catalães. Numa primeira fase, a proposta terá de ser aprovada por três quintos do plenário da assembleia constituinte. Se isto falhar, bastará uma maioria absoluta numa segunda votação.

A terceira fase inicia-se com a aprovação da Constituição em referendo. Assim que esse passo for dado, a assembleia constituinte é dissolvida e são convocadas eleições legislativas.

Quem exerce o poder judicial? E que leis imperam?

A mais alta instância da justiça da Catalunha será, segundo a lei da transitoriedade, o Tribunal Supremo da Catalunha (TSC). O TSC será criado a partir do atual Tribunal Superior de Justiça de Catalunha que, na prática, muda de nome e deixa de responder a outras instâncias, já que passa a ser a mais alta.

O presidente do TSC é designado pelo presidente do governo da Catalunha — presumivelmente, Carles Puigdemont.

Os juízes, magistrados, procuradores e advogados que pretendam ser reconhecidos pelo sistema judicial da Catalunha têm de contar três anos de serviço antes da aplicação desta lei — ou seja, desde 27 de outubro de 2014. Esses são admitidos automaticamente, a não ser que declarem abdicar desse direito. Todos aqueles que queiram entrar no sistema judicial, mas que trabalhem há menos de três anos terão de entregar uma candidatura.

As leis locais, regionais e estatais em vigor na república da Catalunha serão as mesmas que já estavam em vigor antes da proclamação da independência — até que, mais tarde, sejam atualizadas por decisão do parlamento, que tem o poder legislativo. A exceção é aplicada a todas as leis que, pelo seu objeto ou alcance, vão contra a lei da transitoriedade. Nesse caso, perdem valor.

A nível internacional, a Catalunha irá continuar a respeitar os regulamentos da União Europeia, a lei internacional e os tratados internacionais, a não ser que estes “sejam submetidos a mudanças radicais”. No prazo de um ano, o governo da Catalunha irá submeter ao parlamento a lista de tratados internacionais que quer continuar a seguir ou que pretende alterar, renegociar ou até abandonar. A decisão final cabe ao parlamento.

Vai haver indultos aos presos e condenados do processo independentista?

Segundo a lei da transitoriedade, sim. Aquele documento prevê que os tribunais “anulem os processos penais contra suspeitos ou condenados por condutas que procuraram um pronunciamento democrático sobre a independência da Catalunha ou a criação de um novo Estado de maneira democrática e não violenta”.

Esta alínea assenta que nem uma luva em Jordi Sànchez, líder da ANC, e em Jordi Cuixart, dirigente da Òmnium Cultural. Neste momento, os líderes daquelas duas associações independentistas estão em prisão preventiva por suspeitas do crime de sedição. Além disso, também pode ser perdoado aos antigos dirigentes catalães uma multa em que incorrem por terem usado dinheiros públicos para realizar o referendo à independência da Catalunha (não vinculativo) de 9 de novembro de 2014. É o caso do ex-presidente da Generalitat, Artur Mas, condenado a pagar 5,2 milhões de euros, tal como dos seus conselheiros de governo Irene Rigau (3 milhões), Francesc Homs (2,1 milhões) e Joana Ortega (800 mil euros).

O que acontece aos contratos assumidos pelo Estado espanhol, incluindo os da função pública?

De acordo com a lei da transitoriedade, o governo catalão terá de chegar a acordo com o Governo espanhol para “estabelecer um quadro de colaboração para integrar na administração do governo da Catalunha os funcionários do Governo espanhol que trabalhem na Catalunha”.

Sobre os funcionários públicos, tal como nos contratos públicos com empresas, o governo da Catalunha diz que se substitui automaticamente ao Governo de Espanha nos “contratos onde participa o Estado, que são sujeitos à legislação contratual dentro do setor público e em relação a obras públicas, tal como o fornecimento de serviços que dizem respeito à Catalunha”.

Pode ser declarado o estado de emergência? Por quem?

Pode. Esse é um poder que assiste ao governo, apenas em “circunstâncias excecionais”.