Não é bem um englishman in New York, como cantava Sting no final dos anos 80, mas a sensação de não pertencer bem nem a um lado nem a outro é algo que o chef Nuno Mendes afirma conhecer bem. Sendo um portugueseman que passou mais de metade da vida “lá fora”, entre Estados Unidos e Inglaterra, Mendes chegou a um ponto em que percebeu estar a perder as ligações a Portugal. A ideia assustou-o mas foi o estímulo necessário para “continuar a andar para a frente”, mas regressando com mais frequência. Numa dessas viagens cruzou-se com o receituário lisboeta que adorava e decidiu compilá-lo num livro de receitas, que foi apresentado pelo próprio, num evento inserido na Lisbon Food Week 2017.

Foi a propósito deste novo Lisboeta (35,25€, ed. Bloomsbury) que o Observador se sentou à mesa com o chef da Taberna do Mercado, em Londres, e conversou sobre a necessidade de preservar a identidade gastronómica lusitana, o reencontro com uma Lisboa muito mudada e a nova forma como os estrangeiros vêm o País.

Na apresentação do Lisboeta disse que começou a sentir-se desligado da cidade onde nasceu. Como é que essa sensação se materializa?
Ando fora há muito tempo. Houve uma altura, quando estava a viver nos Estados Unidos, em que passei quatro anos sem vir cá e senti que estava a perder a minha identidade portuguesa. Acho que tomei a boa decisão de dizer a mim próprio “não, eu não vou ser americano, vou continuar a ser português”. Sai dos EUA, deixei de concordar com muita coisa e senti que tinha aprendido aquilo que tinha de aprender, era tempo de andar para a frente. Estava a perder os laços com a minha cidade. O meu pai morreu há seis anos, os meus avós também, e isso fez-me ver que, de repente, os laços que me ligavam a Portugal desapareceram. Cheguei a um ponto em que das duas uma: ou fazia um esforço para continuar conectado ou era mais uma pessoa perdida…

A capa do Lisboeta. As fotografias foram tiradas pelo inglês Andrew Montgomery.

Aquela coisa de não sentir que se pertence nem num lado nem no outro…
Precisamente. Isto fez-me pena. Sentia saudades do meu país e percebi que necessitava de me ligar mais a ele. Por ter filhos também comecei a pensar que gostava de lhes passar o meu testemunho, conseguir mostrar-lhes de onde sou e, se calhar, de onde eles são também.

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Eles perguntavam-lhe coisas sobre Portugal?
Mais ou menos. Eles ainda são muito novos, a mais velha vai fazer sete anos… Acima de tudo senti que me podia desligar do país, nunca mais cá voltar e manter apenas memórias de outros tempos.

Como é que isso mudou, então?
Pela primeira vez não quis andar para a frente. Não que começasse a andar para trás, mas comecei a vir cá mais vezes e a paixão que tinha foi ficando cada vez maior. Queria reviver o que já conhecia e continuar a aprender.

Há quanto tempo começou a vir a Portugal com mais frequência?
Talvez depois da morte do meu pai e da minha avó. Eles eram os meus únicos elos de ligação. Uns seis meses depois disso acontecer, em 2011, decidi passar a vir cá mais vezes. Mesmo assim, a vontade de procurar restabelecer ligações já existia antes: o Viajante foi, talvez, o primeiro manifesto dessa sensação. Decidi fazer um restaurante que não era português mas tinha um nome português. Podia ter-lhe chamado Voyager, Traveller ou algo assim, mas quis que fosse Viajante, em português, porque foi em Portugal que comecei. Foi nesta altura que me comecei a aproximar mais da cozinha nacional. Fiz muita coisa lá com sabores nossos, mas no princípio era difícil, não me chegavam muitos produtos. Desde que me mudei para Londres, esta vontade começou a exprimir-se. Aos poucos tudo foi crescendo, até a emoção.

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Um livro de receitas pareceu-lhe uma opção lógica para materializar essa vontade?
Sim, mas acho que houve caminhos paralelos. Acho que o primeiro passo surgiu quando voltei para a Europa e me reaproximei dos sabores portugueses de que já tinha saudades. O restaurante foi o segundo passo, foi o manifesto físico desses sabores e serviu para mostrar esse universo a pessoas de fora. O livro vem na sequência, são etapas. Acho que a Taberna do Mercado [restaurante que orienta em Londres], hoje, é mais parecida com o livro do que era quando abriu em 2015.

As receitas que apresenta são coisas que já sabia ou foram coisas que acabou por descobrir?
Sempre que vinha cá punha-me a fazer listas de pratos. Tentava recordar sabores, memórias que me emocionavam, coisas que nós comemos cá. Muitas das recitas do livro vieram daí. Outras são simplesmente pratos que adoro. Quis também apresentar pratos que achei serem acessíveis ao ponto de poderem abrir a porta para que uma pessoa que não seja de cá, consiga encontrar os produtos utilizados na receita. Coisas que conseguissem captar a ideia da cozinha portuguesa, que lhes despertasse o interesse e, possivelmente, que os trouxesse cá.

Alguém já lhe disse que por causa do Lisboeta quiseram vir conhecer Portugal?
Muitas! O livro está à venda desde dia 19 de outubro e tem tido feedback muito positivo. Muitos amigos e conhecidos me dizem isso por mensagem ou pelo Instagram. Dizem-me que adoram as receitas, que já as provaram, e há quem até me mande fotografias das receitas que fizeram em casa.

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Até já foi publicado um artigo, em Inglaterra, em que uma jornalista se propôs a fazer várias receitas do livro, não foi?
Sim! Foi a Victoria Stewart que publicou ontem no Evening Standart. Ela fez os jesuítas, três saladas, uma data de coisas… Ela, por acaso, diz a mesma coisa que muitos outros: que adorou as receitas, sentiu-se confortável com a descrição dos passos para a fazer e também ficou interessada em conhecer Lisboa. Em Inglaterra, quando me pedem para assinar o livro, eu desejo que as pessoas se apaixonem, que fiquem entusiasmadas em cozinhar as receitas e que venham conhecer Lisboa.

Como foi para si, que vive há muito tempo no estrangeiro, voltar a estabelecer uma ligação com Lisboa e perceber que ela mudou tanto em tão pouco tempo?
Eu acredito neste País há muito tempo e se calhar, por estar fora, tinha uma visão um bocado desfocada. Tinha uma paixão enorme tanto por Lisboa como por todo o País. Sentia pena por ver as pessoas daqui muito desmoralizadas, com um pé lá fora, e a levar uma vida que não era fácil. A nossa realidade não era muito simples. As pessoas viviam com saudades de tempos melhores que, se calhar, até nunca existiram, mas mesmo assim mantinham-se na imaginação das pessoas. Isto punha-me triste, mas sempre acreditei que as coisas fossem mudar, que fossem andar para a frente, que tínhamos de continuar a puxar. Hoje tenho uma alegria enorme ao ver que tudo ficou melhor. As pessoas estão alegres, têm orgulho na nossa identidade. Isso sente-se até na cozinha: uma pessoa que venha a Lisboa, vai provar o produto português. Acho que esse orgulho está a ajudar muita gente, não só aqui mas em todo o lado: A produção está a aumentar, o turismo também, as pessoas estão a ter mais visibilidade…Esse momento é lindo. É a primeira vez que me lembro de ver esta energia. É uma coisa nova e fantástica. Por outro lado temos de ter cuidado. Temos de ter a responsabilidade de resistir à tentação de vendermos tudo, de perder a nossa identidade. Acho que tem de haver controlo, especialmente porque temos a oportunidade de embelecer, de melhorar aquilo que já conquistámos.

Este “salto”, esta evolução, aconteceu muito rápido e num curto espaço de tempo. Para si, que a acompanhou “à distância”, houve alguma coisa neste processo que o tenha desiludido?
Quando estava nos EUA e vivia em São Francisco passei quatro anos sem vir a Portugal. Sentia saudades, mas como estava do outro lado do mundo, a trabalhar e estudar ao mesmo tempo, não conseguia vir cá. Nessa altura, algures nos anos 90, apanhei aquele período em que o micro-ondas começou a aparecer em todo o lado, só se usava pão de forma industrial, mostarda de pacote… Lembro-me de pensar “Porra! Estamos a perder tudo!” As pessoas começaram a valorizar o prático, o fácil e deitaram para o lixo as nossas tradições. A qualidade perdeu-se e aí senti uma revolta muito grande. Senti-me desiludido, muito. Estava chateado. Chegámos a estar em risco de perder a nossa tradição. Tínhamos uma geração de pessoas que não ligavam às coisas de antigamente e, à medida que os mais velhos iam morrendo, essa história ia desaparecendo. Estivemos mesmo à beira do abismo. Felizmente fomos resgatando tudo isso, os jovens voltaram a pensar em ir para o campo, a desenvolver projetos dinâmicos e muito interessantes. Se calhar, aqui há cinco anos, em vez de comer uma empada como esta [aponta para o prato que tem à frente] estaria a comer uma fatia de pizza ou um hambúrguer. É bom ver isto a acontecer. Acho que tínhamos medo de mostrar as nossas coisas, medo de que os outros pudessem não gostar. Felizmente ultrapassámos isso.

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Há uma nova vaga de cozinheiros que acreditam e apostam muito nos produtos e nas tradições tipicamente portuguesas. As pessoas lá fora percebem que a nossa cozinha está a mudar?
Percebe-se que há coisas novas e coisas giras, mas não acho que ainda tenham conhecimento suficiente para saber que demos essa reviravolta. As pessoas vêm cá, cada vez mais, muito curiosas com a nossa tradição. Querem conhecê-la, saber o que é Portugal, o que é português, mas ainda não se aperceberam que estamos a passar por este momento de renovação. Por exemplo, há uns anos, quando toda a Espanha se afirmou como uma potência gastronómica, no tempo do El Bulli, o mundo já conhecia muito do receituário tradicional deles. Por causa disso conseguiram perceber melhor as reinterpretações que começaram a surgir: já conheciam a base, o núcleo. Acho que lá fora ainda não se conhece o núcleo português. Primeiro temos de mostrar isso.

Em Portugal há muito o hábito que achar que as coisas que vêm de fora ou por lá estiveram são as melhores. Essa noção, aplicada ao mundo dos cozinheiros portugueses, por exemplo, ainda existe?
Acho que está a mudar, felizmente. Por muito tempo as coisas foram assim, dava-se mais valor à pessoa que estava a trabalhar lá fora do que ao talento que tínhamos cá. Acho que agora isso já mudou.

Qual é a pergunta mais frequente que, lá fora, lhe fazem sobre Portugal?
Epa, agora apanhaste-me [risos]. Regra geral, as pessoas falam-me muito da comida, das praias… Talvez a primeira coisa que me perguntam é sobre o tempo. Felizmente já não usam o argumento do “é barato”. Já não se diz “Vai a Lisboa porque é barato”, em vez disso, diz-se “vai a Lisboa porque é bonito”, por exemplo. A hospitalidade das pessoas de cá é incrível. Isso é outra coisa que me dizem sempre, quando regressam desta cidade (ou de qualquer parte do País, na verdade). Achei muita piada a evolução da conversa que estrangeiros trocavam comigo: Primeiro era o “é barato”, depois o “é lindo”, depois foi o “a comida é fantástica” e agora já começo a ouvir coisas como “o vinho é incrível”. Há outra coisa muito interessante que comecei a ouvir, algo que realmente fez um clique cá em cima [aponta para a cabeça]. De há uns tempos para cá começo a ouvir pessoas a dizerem-me que vão ao Douro, à Bairrada, ao Alentejo, aos Açores… Já não vão só para o Algarve ou Lisboa. Já não é aquele caminho previsível, vão à descoberta. Apaixonaram-se e viram que há mais.

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Há algum prato — que apareça no livro — do qual tenhas especial saudades, quando está lá fora?
Sopa de peixe, uma açorda de marisco, arroz de marisco (que comia no Panorama ou no Mar do Inferno, por exemplo). Os pasteis de massa tenra da minha avó… isso tinha um sabor… Comi agora um [aponta para o prato], estava muito bom, mas não é a mesma coisa. O arroz doce e o bolo de bolacha também são pratos deste género. Acho que muita coisa neste livro aponta para as comidas caseiras. Esse tipo de coisas são tão giras! São coisas que comes em casa, normalmente. Essas coisas, para mim, têm muito a ver com a nossa noção de casa. Grande parte do livro explora este imaginário. Mas há outras que tem pratos mais conhecidos, feitos à minha maneira — há até uma secção de vegetariano, mas acho que esta é uma área que temos de desenvolver um bocado mais [risos]. Para um país que tem tanto amor pelos seus vegetais, acho que não os usamos o suficiente.

Para concluir: passa-lhe pela cabeça voltar para Lisboa?
É difícil. Gostava de ter um pé cá e outro lá. Neste momento tenho os miúdos na escola e eles não estão prontos para uma mudança dessas, mas gosto muito de estar cá e gostava de ter uma casa cá, para que eles venham mais vezes. Adorava viver em Lisboa, mas por outro lado, também sei que por não estar em Portugal tenho uma paixão maior pelas coisas de cá. Fico entusiasmado quando estou em Londres e quando estou cá acontece o mesmo. Eu tenho sempre um bocado de medo de me encostar um bocado e relaxar demasiado. Acho que se vivesse só aqui, isso ia acontecer. Ainda quero fazer muita coisa e quero explorar isso. Mas, mesmo assim, creio que mais cedo ou mais tarde venho cá parar. Vou chegar a um ponto em que prefiro estar cá e ir a Londres quando tiver de ir, nem que seja uma vez por semana. Mas isto só deverá acontecer daqui a uns dez anos.