Margarida Salema esteve quase nove anos à frente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP). Num momento em que se discutem as alterações à lei do financiamento dos partidos políticos, aprovadas em cima do Natal e em tempo recorde por uma larga maioria de partidos (CDS e PAN votaram contra), a jurista e professora universitária — agora de regresso à academia — mostra-se preocupada com o regresso aos fluxos de dinheiro vivo. Quanto maior o fluxo, mais frágil o controlo, sublinha.
É precisamente na importância da fiscalização que Salema está a pensar quando se questiona sobre o fim do teto máximo para a angariação de fundos, uma das mudanças aprovadas na última quinta-feira em plenário da Assembleia da República. Se o teto desaparece, para que serve o controlo da Entidade das Contas?, questiona-se.
A professora universitária entende que não é por a lei ter sido mexida que o PS ganha razão na disputa judicial pela restituição do IVA pago em campanhas eleitorais. Aí, defende, nada mudou. E, sobre as alterações a três leis orgânicas e a uma lei ordinária, a jurista tem uma posição clara: revertem “ilegalidades e irregularidades” que a Entidade das Contas apontou ao longo dos anos.
Pensando na forma como este processo decorreu no Parlamento, sem atas, sem ser possível saber quem propôs que alterações a lei, considera que se trata de uma tentativa de os partidos esconderem as suas intenções?
O processo legislativo decorreu em três dias e implicou alterações a três leis orgânicas e a uma lei ordinária. Trata-se sem dúvida de modificações profundas. De processo, de competências e de fundo. Dada a sua quantidade e implicações é difícil resumir. Também são de estranhar as modificações que não foram feitas: desde logo a questão da fiscalização das contas dos grupos parlamentares que, na opinião da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos de então, desde 2010 até 2017, eram inconstitucionais por diversos motivos.
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Por que razão a lei deve haver um limite máximo à angariação de fundos? Que riscos existem sem esse teto?
Deve haver sempre limites legais aos donativos e à angariação de fundos justamente para não haver demasiado desequilíbrio financeiro no contexto partidário, havendo partidos com fundos ilimitados e outros sem essa capacidade de recursos financeiros ou de acesso a eles. No presente projeto de lei, trata-se antes de referenciar os grandes eventos partidários em que as receitas, mesmo em dinheiro vivo, passam a não ter limitações, o que enfraquece a necessidade de controlo. Se não há limites legais para quê o controlo?
Qual é o maior problema que encontra nas alterações aprovadas na semana passada pelos deputados?
Há nas alterações aprovadas a reversão de um grande número de ilegalidades e irregularidades apontadas nos relatórios da ECFP nos últimos anos, desde alterações mais gravosas em matéria de proibição de donativos de pessoas coletivas que constitui crime (é o caso das ocupações gratuitas de espaços públicos) a alterações como a permissão de donativos indiretos.
Um dos apoios indiretos garantidos aos partidos é a isenção de IVA, que na nova versão da lei se passa a aplicar a “toda a atividade” que desenvolvam. Esta alteração permite que o PS reclame o IVA de campanhas?
Entendo que não. Pode alguém menos conhecedor da lei achar que está encontrada a forma de atribuir o IVA. Mas a minha interpretação é a de que não é possível utilizar esta alteração legislativa para dar razão aos pedidos do PS porque a questão colocada a tinha ver com o artigo 15º e seguintes. Trata-se de um tratamento não igualitário de campanhas, algo que é inconstitucional. Foi essa a posição do tribunal durante muitos anos.
Foi incluída uma norma transitória na lei que parece abrir a porta a uma aplicação retroativa da lei. Isto tem ou não tem implicação sobre processos já em curso?
A norma parece dar a entender que só se aplica à parte processual, não à parte de substância. Aquilo que não se podia fazer, agora já se pode? Se estivermos a falar de matéria criminal, tudo o que não era possível e agora passa a ser possível aplica-se a processos anteriores, no respeito pelo princípio de aplicação do tratamento mais favorável ao arguido. Aqui não está em causa só isso.
Na sua opinião, há retroatividade?
Eu sou crítica da norma transitória, vai longe demais. Sou contra a aplicação retroativa pela insegurança jurídica e pela instabilidade que representa para os processos em curso.
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O que devia ter sido alterado na lei e não foi? Quais os maiores alçapões ou as maiores falhas na lei de financiamento dos partidos políticos?
Sobretudo, tudo o que tenha a ver com dinheiro vivo.
A Entidade das Contas ficará encarregue de todo o processo de fiscalização das contas, emissão de pareceres e julgamento dos partidos. Isto é comportável para a entidade, considerando as condições atuais (apenas três elementos)?
Julgo difícil que a ECFP possa fazer o seu trabalho, somando o que era do Tribunal Constitucional e o que pertencia ao Ministério Público, sem uma recomposição e alteração de estatuto, que não consta desta lei.
Os partidos obstaculizam o trabalho do fiscalizador?
Os partidos colaboraram sempre com a ECFP, mantendo a autonomia das suas posições divergentes, pelo menos nos últimos cinco anos.
Nos quase nove anos em que liderou a Entidade das Contas, quais as maiores fragilidades que encontrou na legislação e no financiamento dos partidos?
A lei tem normas importantes como a da proibição de donativos de empresas mas tem constrangimentos sobretudo em matéria de contas muito vultosas, como as autarquias locais.