Depois de uma semana de intensa luta política entre o Governo e o Bloco de Esquerda sobre as metas do défice, Mário Centeno apresentou um Programa de Estabilidade sem grandes novidades. O défice é 0,7%, quer o Bloco de Esquerda queira ou não. O caminho de rigor orçamental vai manter-se, mas o discurso do fim da austeridade e de recuperação também. A maior novidade foi o anúncio de uma redução de 200 milhões de euros no IRS já depois das eleições, a aplicar através de um crédito fiscal para as famílias trabalhadoras com rendimentos mais baixos, uma medida prevista em… 2015.
As três razões de Centeno para ignorar o apelo à esquerda sobre o défice
Apertar em nome do “caminho seguro”. O Bloco de Esquerda passou os últimos dias a reclamar publicamente a manutenção da previsão de défice para este ano nos 1,1%, tal como ficou no Orçamento do Estado que ajudou a aprovar no Parlamento. Mas como já era esperado, Mário Centeno não aliviou uma décima (antes pelo contrário) e, na conferência de imprensa, não só deitou por terra qualquer expectativa da esquerda sobre um caminho menos rígido em matéria de défice no futuro, como falou nas consequências de uma mudança de trajetória. A meta que pretende atingir já este ano aperta para 0,7%, porque “colocar Portugal no caminho da sustentabilidade orçamental é o caminho seguro para o futuro”.
Pensar num dia de chuva. A insistência do ministro em continuar a apertar metas face a estimativas que acorda com os parceiros no âmbito das negociações para o Orçamento do Estado fez o Bloco de Esquerda disparar com um projeto de resolução a contestar esta prática. Enquanto isso, no Ministério das Finanças, Mário Centeno ignorava a questão direta sobre a posição do Bloco e preferia justificar a sua opção de duas formas. A primeira tem a ver com a “interpretação cautelosa e responsável que o Governo faz dos bons resultados de 2017”. A mesma com que justifica o que aconteceu em 2017, quando a meta do défice passou de 1,4% (no Programa de Estabilidade de há um ano) para 0,92% apurados: “É muito importante para o país ter uma almofada financeira que permita corrigir trajetórias sempre que isso tenha de acontecer. Temos de estar sempre do lado seguro da estrada”.
E ainda porque o passado é para ficar no passado. Eis um fantasma que começa a aparecer com insistência no discurso do ministro das Finanças quando justifica que continue a ir além do défice que vai estimando: é o fantasma do passado. E parte desse passado é mesmo socialista. Senão, vejamos a frase: “Há alternativas a este caminho, mas correspondem a escolhas de regresso ao passado em que o país enfrentou o risco de sanções, que um em cada cinco portugueses estava desempregado, em que os investidores nos rotulavam de lixo, e em que bancos ruíam e com eles a confiança no sistema financeiro”. Entre este elenco que o ministro fez estão capítulos do país que pediu resgate em 2011, estava o PS no poder. Não por acaso diz que o caminho que está a seguir não é “de austeridade” — como o PS acusa o Governo PSD/CDS de ter feito na sua governação — mas também não é “de despesismo” — a palavra que a oposição cola aos governos socialistas. “Não temos a memória curta, não podemos deixar que os mesmos erros do passado sejam cometidos”, afirmou na conferência de imprensa, onde fecha a porta a qualquer ambição que a esquerda possa ter sobre o aproveitamento de almofadas do défice que sejam conseguidas — os tais “brilharetes” que o porta-voz do PS João Galamba dispensa ver no próximo ano, mas pelos quais Centeno promete continuar a trabalhar.
Centeno vai 2.460 milhões além do défice acordado com a esquerda
Recuo de última hora nos investimentos estruturantes
Lista de 7 mil milhões bem menos concreta. Com a esquerda cada vez mais desconfortável no apoio a um Governo inflexível com metas europeias com as quais não concorda, António Costa tinha previsto um plano de investimentos estruturantes, com valores e prazos para execução dos mesmos. A lista dos “Principais Investimentos Públicos Estruturantes em Infraestruturas e Obras Públicas” está lá e até o valor total previsto para estes projetos: mais de sete mil milhões de euros. Mas a distribuição de valores, afinal, ficou na gaveta. A prova do recuo está num pormenor: quando o documento fala no Hospital do Seixal diz que se trata de uma obra que já tem “aprovada portaria de estudos e projetos. Apenas após estudo serão conhecidos custos e calendarização da construção — valores do quadro são apenas estimativa”. Mas estes “valores do quadro” não estão em lado nenhum do Programa de Estabilidade, desapareceram. O Observador sabe que, neste caso concreto, o Governo chegou a inscrever um prazo de execução até 2022 da obra e um investimento à volta dos 60 milhões de euros.
Cinco novos hospitais. O Observador noticiou esta quinta-feira a existência de uma lista de investimentos estruturantes neste Programa de Estabilidade e eles aparecem no documento, mas de forma bem menos concreta do que chegou a estar num dos esboços. O Governo recuou na intenção de ter um calendário concreto e assumido por escrito para as obras, onde consta a construção de cinco novos hospitais “pela primeira vez na última década”: Hospital Lisboa Oriental, Hospital do Central do Alentejo, Hospital do Seixal, Hospital de Sintra e Hospital da Madeira — este último encontra-se ainda em fase de análise. Algumas destas unidades vão ser lançadas em parcerias com as autarquias. São também referidos os projetos já conhecidos de expansão dos metros de Lisboa e do Porto, bem como o investimento no corredor ferroviário norte-sul (Linha do Norte) e no corredor internacional (Caia), que são financiados com fundos europeus. Mas tudo isto sem valores ou datas. O Observador tentou apurar a razão deste recuou, mas não obteve resposta até à hora da publicação deste texto.
Governo não recua no défice, mas tenta acalmar esquerda com lista de investimentos prioritários
Função pública descongela. Mas não há aumentos
Não há aumentos previstos. Iria o Governo repetir Sócrates/2009 e, em ano eleitoral, aumentar os salários dos funcionários públicos? Era uma das questões em análise, embora o Governo já tivesse feito saber que isso não aconteceria. O Programa de Estabilidade confirmou-o e Mário Centeno ignorou olimpicamente a pergunta que lhe foi feita sobre este assunto concreto. Na resposta, preferiu referir a “valorização salarial”, com a reversão dos cortes, a “valorização das condições de trabalho” e dizer que este é “um período de descongelamento das carreiras que também se reflete na evolução dos custos”. Além disso, garantiu que o Governo vai “promover ativamente um processos de recrutamento de técnicos para a Administração Pública”. Do documento que foi entregue esta sexta-feira consta que “as despesas com pessoal traduzem a reversão integral dos cortes salariais na Administração Pública e o acréscimo de 1% no emprego público (fundamentalmente nas áreas da Educação e Saúde)”. Não há referências a aumentos.
Descongelar custa 593 milhões. No caso do descongelamento de carreiras na Administração Pública, cujo processo faseado foi aberto no último Orçamento do Estado, o Programa de Estabilidade refere que vai custar 352,7 milhões de euros este ano, mais 389,8 milhões de euros em 2019 e 297 milhões de euros em 2020. No total seriam mais de mil milhões de euros, mas o aumento dos salários também implicará mais impostos para o Estado, o que nas contas do Governo abate o valor total despendido para os 913 milhões de euros. Se juntarmos o valor das contribuições para a Segurança Social, o valor líquido cai para os 593 milhões de euros.
A promessa eleitoral do IRS…outra vez (e outras receitas por explicar)
IRS cai 200 milhões, mas só em 2021. A promessa eleitoral vem no Programa de Estabilidade e no documento consiste apenas no seguinte: uma nova medida, que custará 200 milhões e só será aplicada em 2021. O ministro foi questionado com a indicação que vinha no programa que havia acabado de apresentar, mas nada disse. De acordo com uma fonte dos socialistas, esta será a concretização de uma medida prometida em 2015 ainda antes das eleições que pressupunha a criação de um crédito fiscal para as famílias com rendimentos do trabalho mais baixos. O Governo ainda não diz como pretende implementar esta medida.
Poupança de 270 milhões de euros com benefícios fiscais. Uma das medidas para controlar o défice nos anos pós eleições parte de uma mudança que já está a ser trabalhada no Parlamento, mas ainda está por concretizar. O Governo espera poupar 90 milhões de euros, de forma incremental, durante três anos, poupança essa que só tem início em 2020. Assim, seriam adicionadas poupanças de 90 milhões por cada um dos anos, num total de 270 milhões de euros, que se tornariam efetivos face ao ponto de partida (2019) a partir de 2022.
Carga fiscal praticamente não muda
Carga fiscal nos 34,4% de 2019 a 2022. Este é um ponto que certamente gerará mais controvérsia, especialmente pelas mãos da direita no Parlamento. Nas previsões do Governo, a carga fiscal não sofrerá alterações este ano face ao que aconteceu no ano passado, mantendo-se nos 34,5% do PIB. Em 2019, a previsão é que este indicador — o peso em função do PIB das receitas com impostos e contribuições sociais — desça ligeiramente para os 34,4% do PIB, e assim se mantenha até aos 2022. O conceito tem sido alvo de grande debate entre a direita e o Governo. A direita acusa o Governo de aumentar impostos e que isso se vê com o aumento da carga fiscal. O Governo garante que nada disso aconteceu, e que este valor só tem crescido devido à melhoria da economia e do emprego, que geram mais receita fiscal e mais contribuições para a Segurança Social.
Défice zero cada vez mais perto
O Governo espera um saldo positivo em 2020. Já é depois do final da atual legislatura, mas a verdade é que graças a ajustamentos maiores que o previsto no início do ano, o défice está cada vez mais baixo e mais perto do saldo positivo. Para desagrado dos partidos mais à esquerda, que querem que os défices acordados sejam os executados no final do ano. Para o próximo ano, o Governo prevê um ajustamento superior ao previsto para este ano, para fazer baixar o défice para cerca de 300 milhões de euros. Isto tendo em conta que a poupança com juros prevista para o próximo ano — e que tanto tem contribuído para baixar o défice nos últimos anos — é praticamente inexistente.