A cimeira histórica de Donald Trump com Kim Jong-un, os primeiros líderes dos EUA e da Coreia do Norte a encontrarem-se cara a cara, decorreu sem imprevistos nem solavancos. À hora marcada, os dois líderes estavam a assinar o acordo que resultou da cimeira de Singapura.
O documento é curto e, acima de tudo, vago. No que toca ao ponto mais importante desta cimeira — a desnuclearização da península da Coreia — não são anunciados nenhuns progresso em relação à cimeira inter-coreana, do final de abril. Além disso, nenhuma das partes se compromete com prazos. Um sinal do quão vago este acordo é a total ausência de números no texto com a exceção de duas datas: a do dia da cimeira de Singapura e a de 27 de abril de 2018, quando Kim Jong-un foi recebido por Moon Jae-in no lado sul-coreano da fronteira.
https://observador.pt/2018/06/11/trump-e-kim-encontram-se-cara-a-cara-esta-madrugada/
Fizemos a análise do texto do acordo — e o que ele quer dizer, nas entrelinhas.
Os extratos do acordo estão em itálico e os comentários e interpretações estão a amarelo.
O Presidente Donald J. Trump dos Estados Unidos da América e o Presidente Kim Jong-un da comissão dos assuntos de Estado da República Popular Democrática da Coreia tiveram uma primeira, histórica cimeira em Singapura no dia 12 de junho de 2018.
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O Presidente Trump e o Presidente Kim Jong-un tiveram uma troca de opiniões abrangente, profunda e sincera nos temas relacionados com o estabelecimento das novas relações dos EUA-DPRK (sigla em inglês) e na criação de um regime de paz robusto e duradouro na península da Coreia. O Presidente Trump comprometeu-se a dar garantias de segurança à DPRK e o Presidente Kim Jong-un reafirmou o seu compromisso firme e inabalável para com a completa desnuclearização da península da Coreia.
Convencidos de que o estabelecimento das novas relações entre EUA-DPRK vão contribuir para a paz e prosperidade da península da Coreia e do mundo e reconhecendo que a construção de confiança mútua pode promover a desnuclearização da península da Coreia, o Presidente Trump e o Presidente Kim Jong-un declaram o seguinte:
A expressão "construção de confiança mútua" aponta para uma dinâmica importante que resulta deste acordo: até agora, a relação entre a Coreia do Norte e os EUA tem sido pautada por um clima de desconfiança quase ininterrupto; com este acordo, as duas partes comprometem-se a colocar um ponto final nisso.
No entanto, para trás estão 25 anos de negociações dos EUA com a Coreia do Norte —atravessando as administrações de Bill Clinton e George W. Bush e agora Donald Trump (de fora fica Barack Obama, cuja equipa nunca se sentou com a Coreia do Norte). Ao longo destes anos, a Coreia do Norte assinou dois acordos. O primeiro foi em 1994, com os EUA. O segundo é de 2005, com os EUA, China, Japão, Coreia do Sul e Rússia. Cada um destes acordos falhou redondamente. O primeiro, depois de vários anos turbulentos, foi rasgado por George W. Bush em 2002. Em 2005, o fracasso do acordo foi consumado no ano seguinte, quando a Coreia do Norte fez o seu primeiro teste nuclear.
O acordo desta terça-feira nasce debaixo da sombra de outros que não cumpriram a sua função. Por isso, ao dizer que a "construção de confiança mútua pode promover a desnuclearização da península da Coreia", as duas partes querem dizer que se segue um processo lento, de pequenos passos e possivelmente alguns retrocessos.
Ponto 1: Os Estados Unidos e a República Popular Democrática da Coreia para estabelecer novas relações entre EUA-DPRK de acordo com o desejo de paz e prosperidade dos povos dos dois países.
É o início de tudo o que se segue. Com este acordo, os EUA e a Coreia do Norte normalizam as suas relações diplomáticas, mantendo canais de comunicação oficiais que permitam aos dois países falar nos próximos tempos.
Teoricamente, este passo pode levar à abertura de embaixadas de parte a parte — porém, esse ponto só será atingido se as negociações correrem extraordinariamente bem. Por outro lado, se correrem mal, as "novas relações" descritas no acordo vão dar lugar àquelas que já existiam ou até a uma tensão mais elevada. Tudo será definido nos próximos meses, onde a Coreia do Norte e os EUA vão estar em contacto para definir os termos de implementação do acordo.
Ponto 2: Os Estados Unidos e a República Popular Democrática da Coreia vão unir esforços para construir um regime de paz duradouro e estável na península da Coreia.
A frase é vaga, mas tem uma leitura de base: se a Coreia do Norte cumprir a sua parte do acordo, os EUA não vão intervir militarmente ou aplicar outro tipo de esforços para derrubar o regime de Kim Jong-un. Essa tese já é confirmada mais atrás no documento, onde é dito que o Presidente dos EUA se comprometeu a "dar garantias de segurança" à Coreia do Norte, ao mesmo tempo que Pyongyang se compromete de forma "inabalável" para a "completa desnuclearização da península da Coreia".
Na conferência de imprensa que deu após a assinatura do acordo, Donald Trump rejeitou retirar os 32 mil militares norte-americanos destacados na Coreia do Sul — "não vamos reduzir nada" — mas abriu a porta para, no futuro, suspender os exercícios militares naquele país. "Isso vai poupar-nos muito dinheiro, a não ser que vejamos que as negociações futuras não estejam a ir para onde queremos”, disse. Assim, Donald Trump parece estar disposto a suspender a sua promessa de "fogo e fúria" — mas à condição.
Ponto 3: Reafirmando a declaração de Panmunjon de 27 de abril de 2018, a Coreia do Norte compromete-se a trabalhar em direção à desnuclearização completa da península da Coreia.
Este é provavelmente o ponto mais importante do acordo, mas também aquele que nada evoluiu em relação à cimeira inter-coreana, celebrada no final de abril. Desta forma, o acordo celebrado entre Donald Trump e Kim Jong-un diz apenas que a "Coreia do Norte compromete-se a trabalhar em direção à desnuclearização completa da península da Coreia".
É nesta última parte, em que se fala da "desnuclearização completa da península da Coreia", que as coisas começam a complicar. Isto porque, apesar do que a expressão pode sugerir, a Coreia do Sul não tem armas nucleares. Sobra, como é sabido, a Coreia do Norte. Mas há ainda outro elemento: os EUA e as suas armas nucleares. Em 1991, Bill Clinton retirou o arsenal nuclear norte-americano da Coreia do Sul. No entanto, é sabido que os EUA têm capacidade para lançar um ataque nuclear contra a Coreia do Norte.
Assim, pode entender-se que aquilo que a Coreia do Norte pede aqui é, nada mais nada menos, do que o enfraquecimento ou até desaparecimento da aliança militar entre a Coreia do Sul e dos EUA, que ali tem 32 militares à data.
Ponto 4: Os Estados Unidos e a República Popular Democrática da Coreia comprometem-se a recuperar os prisioneiros de guerra/desaparecidos em combate que restam, incluindo a repatriação imediata daqueles já identificados.
Este é, de longe, o ponto mais específico do acordo entre as duas partes — e o único que poderá ser cumprido com relativa celeridade. As questões relativas a Direitos Humanos — recorde-se que, em 2014, Kim Jong-un foi acusado pelas Nações Unidas de crimes contra a Humanidade — foram o parente pobre desta cimeira, em detrimento da discussão de temas como a desnuclearização. Apesar disso, é importante sublinhar que ainda antes da cimeira houve três prisioneiros norte-americanos, de origem coreana, que estavam retidos na Coreia do Norte.
Desta forma, conclui-se que com estas negociações, os EUA investem pouco no tema dos Direitos Humanos e, quando o fazem, dirigem-se apenas àqueles que têm nacionalidade norte-americana, trate-se de prisioneiros ou de restos mortais. Os 80 mil a 120 mil norte-coreanos presos em campos de trabalhos forçados vão ter de esperar.
Tendo reconhecido que a cimeira EUA-DPRK — a primeira na História — foi um evento épico de grande significância para ultrapassar décadas de tensões e hostilidades entre os dois países e para a abertura de um novo futuro, o Presidente Trump e o Presidente Kim Jong-un comprometem-se a implementar o estipulado nesta declaração conjunta completamente e de forma expedita. Os Estados Unidos e a DPRK comprometem-se a realizar negociações de follow-up, lideradas pelo secretário de Estado Mike Pompeo e um alto responsável norte-coreano, o mais rápido possível para implementar o resultado da cimeira EUA-DPRK.
O Presidente Donald J. Trump dos Estados Unidos da América e o Presidente Kim Jong-un da comissão dos assuntos de Estado da República Popular Democrática da Coreia comprometeram-se a colaborar no sentido de desenvolver novas relações EUA-DPRK e pela promoção da paz, prosperidade e segurança da península da Coreia e do mundo.”
As negociações vão continuar, não ao nível presidencial mas ainda assim com os principais responsáveis pelas relações externas de cada país. Desta forma, regressam ao nível onde já estavam antes da cimeira de Singapura. O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, viajou duas vezes para Pyongyang para preparar a cimeira — e agora sabe-se que vai voltar a sentar-se à mesa com os seus homólogos norte-coreanos.
Ainda assim, é bastante provável que as conversações voltem a subir para o nível presidencial, uma vez que Donald Trump convidou Kim Jong-un para ir a Washington D.C. e, em troca, recebeu um convite para ir a Pyongyang numa visita oficial. Donald Trump disse que as visitas acontecerão "numa altura apropriada".