Vamos fazer uma experiência.
Trate de ter à mão um doce ou uma guloseima qualquer que tenha um sabor concreto: uma pastilha elástica de morango, por exemplo. Ponha a chiclete na boca e comece a mastigar, mas antes aperte o nariz com os dedos e não largue. O que sente? Doçura, provavelmente, alguma acidez, talvez, mas e o morango? Depois de algum tempo a saborear, solte o nariz: aí está a fruta que vinha prometida na embalagem. Estranho? Nem por isso, é só uma reação natural do nosso corpo. A isto chamamos “saborear”.
Quando se diz que “os olhos também comem” fala-se a verdade, mas a afirmação é incompleta. A noção de saborear é na realidade uma soma da informação recolhida por pelo menos três dos nossos sentidos: paladar, visão e olfato. Aspecto, textura e cheiro funcionam em conjunto no momento em que levamos algo à boca e começamos a mastigar, por isso é que na “experiência” anterior só nos apercebemos do “morango” quando deixamos de bloquear o normal funcionamento do nosso nariz. Curioso, não?
Muitos já terão esta noção e talvez considerem inócuo o início deste texto, mas a probabilidade de não utilizarmos o nosso nariz em todo o seu potencial quando comemos é bastante elevada. Pelo menos foi isso que o perfumista Lourenço Lucena contou — “Não costumamos usar o nariz, ele está no meio da nossa cara e normalmente damos-lhe pouca importância” — ao Observador, no “jantar perfumado” que co-protagonizou com o chef Albano Lourenço, ex-responsável pela cozinha do Vistas, o restaurante de fine dining do resort Monte Rei, em Vila Nova de Cacela.
Inspirado, literalmente, nos aromas do Algarve, Lourenço lançou este desafio ao cozinheiro que entretanto abandonou o Vistas e passou-o a Rui Silvestre. Figo, terra húmida, laranja, coentros, esteva e laranja verde foram os cheiros escolhidos, em jeito de homenagem, e todos juntos formavam a espinha dorsal da refeição, ou seja, Albano teve de criar um prato para cada um desses elementos. “Primeiro cheiram o elemento sozinho, depois um perfume da Hermès em que ele é utilizado e depois, finalmente, provam a sua materialização”, explicou o perfumista. A ideia seria mostrar a complexidade que um aroma pode adquirir não só num perfume mas também no prato.
Meter o nariz onde se é chamado
“Através dos perfumes podemos quebrar barreiras”, disse Lourenço Lucena no início da refeição, quando todos já estavam sentados à mesa e com uma tira de papel na mão. “Sabiam que até aos anos 20 não existia diferenciação entre perfumes de mulher e de homem?”, perguntou. O odor a rosas ou lavanda — que normalmente se podem associar à mulher — foi uma constante entre os homens da nobreza francesa, por exemplo, e nunca isso, pelo menos na altura, foi sinal de feminilidade. “O perfume, na sua génese, deve ser usado por quem se identifica com ele” e tudo o resto são construções sociais erradas que foram crescendo até se tornarem regra.
“O papel que têm na mão é o nosso primeiro aroma”, explicou, depois desta breve introdução que estava ligada ao facto deste cheiro ser “muito usado na perfumaria de homem”, à semelhança da baunilha e da bergamota, por exemplo. Começávamos pelo figo, portanto, fruto que tem tanto de algarvio que se podia chamar “marafado”. Depois de questionar a sua audiência sobre se tinham fixado o cheiro em questão, um desafio mais difícil: identificá-lo na construção do perfume “Un Jardin en Mediterranée”. Foi nesta altura que tudo começou a ficar mais confuso.
À semelhança do que acontece nas provas de vinhos, por exemplo, nem sempre é fácil analisar ao pormenor o “cheiro a vinho” ou “cheiro a perfume” de forma a entender os aromas que os compõem. O nosso nariz está tão habituado a não dissecar as coisas — como Lourenço avisara — que o poder da sugestão revela-se uma ótima ajuda. Ter alguém a dizer-nos o que procurar é meio caminho andado para o encontrar, e foi isso que aconteceu. “Concentrem-se no cheiro individual do figo e tentem encontrá-lo no perfume”, afirmou. Voilá! Depois de umas snifadelas, lá aparecia — pelo menos para alguns. Mais fácil foi quando finalmente chegou a salada de foie gras com texturas de figo, uma combinação clássica que não deixou margem para dúvidas. Seguimos para o segundo momento olfativo-gastronómico.
“Este cheiro é totalmente feito à base de químicos”, explica Lourenço depois de entregar mais uma tira de papel perfumada. O Monte Rei, resort onde o jantar se realizou, é casa de um dos melhores campos de golf do país e Lucena teve isso em consideração. “Não vos cheira a relva molhada, acabada de cortar?”, perguntou. Ao ouvir as suas palavras, o odor meio metálico que se sentia inicialmente foi mudando. De repente já só dava para pensar num green totalmente aparado e com vestígios de orvalho. Esta foi a forma de representar a ideia de terra húmida que se personificou num frasco elegante, totalmente de vidro, onde morava o “Un Jardin Sur Le Toît”, outro clássico da marca francesa que apoiava o jantar. Este foi mais fácil de identificar, quanto mais não seja pelo contraste que se viu no prato, quando foi servido o creme de cogumelos e azeite de trufa. “Para mim, terra húmida é sinónimo de trufas, fungos que nascem da neblina e humidade do campo”, explicou o chef Albano. O cheiro do perfume era bem mais fresco do que o do prato e foi um bom momento para perceber o quão diverso pode ser o mundo do olfato, onde a terra húmida do verão consegue ser tão diferente da do inverno.
Das malas de cabedal ao mojito
Imersos em vinhos, comida e perfumes, os comensais começaram a ultrapassar a timidez e fez-se ouvir a primeira questão. Lourenço tinha explicado que o aroma anterior não derivava de essências naturais mas sim de uma composição meramente química (C13 Xenol), daí ter-se perguntado qual era o cheiro mais difícil de recriar. “Pão quente e chocolate de qualidade”, respondeu o perfumista, que aproveitou a dica para explicar melhor aquilo que fazem pessoas como ele.
Atualmente, o cheiro é uma componente muito utilizada no marketing e o aroma a “pão quente” é um exemplo disso. “Muitas lojas simulam esse cheiro para cativar mais clientes”, contou. Para lá disto existem também outros tipos de clientes como hotéis ou lojas que pretendem ter uma referência olfativa característica, única, para que “o cliente se sinta ainda mais envolvido” com o negócio. Muitas unidades hoteleiras, por exemplo, pulverizam os quartos todos os dias, para reforçar essa sensação. Algumas até disponibilizam frascos dessas fragrâncias para que os hóspedes as possam comprar. Conversas à parte, ainda havia muito para cheirar e provar.
Laranja e Algarve são também duas coisas impossíveis de dissociar, logo, não podia faltar o citrino em questão. O nome Jean-Claude Elena diz-lhe alguma coisa? Para Lourenço diz com certeza, já que é um dos seus ídolos no mundo das fragrâncias. “Ele foi o grande perfumista da casa Hermès e uma pessoa que me inspira muito no meu trabalho”, explicou. Tendo este jantar o nome de “Hermès à la Table” e sendo uma homenagem também aos grandes clássicos da casa francesa, normal seria referir uma das suas personagens mais influentes e prolíficas. Um dos cheiros favoritos de Ellena era o deste citrino, curiosamente, e Lucena aproveitou toda esta junção de factos para explicar também que durante muitos anos, a laranja do Algarve era tida pela industria dos perfumes como sendo a melhor (“Acabámos por perder essa preponderância em detrimento de outros países, que apostaram mais nessa área”). Depois de cheirado o citrino a solo — foi um dos mais facilmente reconhecidos — e de o vermos numa composição de Ellena, o clássico “Terre D’Hermès”, foi servido o cremoso risotto de laranja com vieiras. Entre o mar e o laranjal, era difícil criar um prato mais algarvio que este.
Cistus ladanifer ou simplesmente esteva é uma flor muito comum em terras do sul e foi o quinto aroma escolhido por Lourenço Lucena. “Este cheiro é um dos mais comuns na industria da perfumaria, é uma ótima opção para dar estrutura a um perfume”, contou. Outra característica desta referência é o facto de funcionar como fixador de tinta em quadros, por exemplo, mas o mais curioso é que os seus laivos a resina foram realçados no perfume que precedeu o prato de pato com molho de zimbro e alecrim. O “Eau D’Hermès” foi criado em 1957, é um clássico absoluto e foi pensado como forma de homenagear as malas de cabedal da casa francesa. “O cheiro quase faz lembrar couro, não?”, perguntou Lucena. A sua audiência respondeu com um sim assertivo. Agora ficava só a faltar a sobremesa.
O ponto final da refeição gravitou em torno do mesmo clássico que já tinha surgido, a laranja, com a particularidade desta ser verde, pouco madura. “Tem um travo mais ácido e uns toques mais astringentes”, explicou Lucena. Se o perfume com que foi emparelhado — o bastante óbvio “Eau D’Orange Verte” — já conseguia atenuar esse perfil mais “agressivo”, a sobremesa do chef Albano deu-lhe a volta completamente. No prato foi apresentada uma desconstrução vistosa de um mojito, com bastantes toques de lima com baunilha e rum.
Lourenço Lucena tinha avisado no início da refeição que estava prestes a começar uma experiência totalmente diferente, onde íamos desafiar um sentido que tantas vezes tomamos por garantido. Promessa cumprida e bem. A despedidas do anfitrião dessa noite ficou marcada por duas notícias: não só a da troca na chefia de cozinha do Vistas mas também a de que um novo jantar destes género poderá estar a caminho. “Talvez no final de agosto”, ouviu-se. Para bem do seu nariz (e do seu estômago, claro), é melhor que aconteça mesmo.
“Um perfume tem de ter provocação e eu considero-me um provocador nato”