A taxa rapidamente batizada com o nome do vereador do BE demitido por ter negócios imobiliários em Lisboa teve também ela vida curta. O Governo conhecia-a há três meses (os de Verão, em que as reuniões foram poucas) e até foi discutida, mais recentemente, com o secretário de Estados dos Assuntos Fiscais, numa reunião entre o Governo e o Bloco para preparar a proposta de Orçamento do Estado para 2019. Mesmo sem fumo branco, o Bloco saltou para o espaço mediático a dá-la quase como garantida e fez António Costa avançar no mesmo terreiro para lhe pôr um travão e ditar o fim da taxa Robles.
O Observador fez o filme aos últimos quatro dias — do momento em que a taxa foi conhecida até que foi rejeitada pela maioria dos partidos com assento parlamentar (PS, CDS, PCP, só o PSD ponderaria) — e também falou com um especialista de direito fiscal a propósito das tributações que já existem sobre as mais-valias, quer da venda de imobiliário, quer da venda de ações (que o Bloco assume ser a inspiração da medida). Foi mesmo feita à pressa? António Costa não a conhecia? Quem a negociou? Em que termos? E o que traria de novo? E há alternativas em cima da mesa? O PCP aproveitou a deixa para vir apresentar as suas, mas comecemos pela primeira tentativa de tornar a proposta pública.
DIA 1 – Sábado, 8 de setembro, a notícia sai no semanário Expresso, embora sem destaque e citando uma fonte da direção do Bloco de Esquerda que falava numa proposta, já abordada com o Governo no âmbito das negociações do Orçamento do Estado, para aumentar a tributação sobre a especulação imobiliária. A ideia era que esta taxa penalizasse a alta rotatividade na venda de casas, ou seja, aqueles que compravam, reabilitavam, faziam escalar o preço, vendendo de novo pouco tempo depois. Valor de taxa, definição do que se entende por “pouco tempo”, impacto previsto? Nada, a medida estava ainda a ser desenhada e negociada com o Executivo à mesa do Orçamento do Estado.
Aliás, a ideia tinha mesmo sido apresentada em maio, na altura em que o Bloco de Esquerda teve as primeiras reuniões com o Governo para preparar as negociações do Orçamento. Um ponto de honra para o partido de Catarina Martins que não queria que esta medida fosse tida como uma resposta ao caso Robles, mas não teve aqui qualquer sucesso. Rapidamente a nova taxa foi batizada de taxa Robles (ver ponto seguinte), o apelido do vereador do partido na Câmara de Lisboa que se demitiu, no final de julho, depois de conhecido um negócio volumoso no imobiliário. Ricardo Robles comprou um prédio em Alfama por cerca de 350 mil euros que, quatro anos (e muitas obras) depois, tentou vender por 5,7 milhões de euros para alojamento local.
“Um enorme constrangimento”. Ricardo Robles renuncia ao mandato na Câmara de Lisboa
DIA 2, domingo, 9 de setembro, o tema chega à capa da edição do Diário de Notícias e só aí começam as reações. A própria líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, veio explicar que o que pretendia apresentar no Orçamento do Estado era um mecanismo semelhante à taxação “dos movimentos da especulação em bolsa”. “Quando alguém compra e vende num curto período e faz muito dinheiro paga uma taxa de imposto especial. Também no imobiliário, para travar a bolha especulativa, quem compra e vende num curto período de tempo com muito lucro paga uma taxa de IRS particular, penalizadora”, argumentou.
“A medida trava a bolha especulativa, um problema económico grave, angaria receitas para o Estado e ajuda a controlar os preços de habitação”, resumiu Catarina Martins
Foi logo neste dia, em declarações ao jornalista na Feira do Relógio, que a líder do Bloco de Esquerda fez a separação de águas relativamente ao caso Robles, antes mesmo que isso fosse levantado, esclarecendo que a proposta tinha sido feita ao Governo logo em maio, bem longe do terramoto político que se abateu sobre o partido que lidera.
O Observador confirmou que, de facto, a medida já tinha sido apresentada ao Governo logo nas primeiras reuniões para negociar o Orçamento para 2019 e, depois ao ministro das Finanças, Mário Centeno. As últimas conversas sobre a medida foram com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, sem nunca se ter chegado a uma proposta concreta, garantem fontes do Governo ouvidas pelo Observador. Catarina Martins havia de dizer (ver no dia 4) que as negociações estavam a correr bem, mas António Costa não concordou com ela, quando este fim-de-semana teve conhecimento que existia, e disse-o publicamente (também para ver no dia 4) mal o Bloco de Esquerda a deu como mais garantida do que estava na prática. Segundo apurou o Observador, o primeiro-ministro — que não está nas rondas negociais sobre o Orçamento — soube da proposta do Bloco pela comunicação social.
No campo político, e apesar de Catarina ter tentado separar o assunto do caso Robles, isso acabou por ser inevitável. Pouco tempo depois de Catarina Martins ter falado, nesse mesmo dia, o deputado do CDS João Almeida, batizou a medida de “taxa Robles”, no Twitter.
O Bloco abriu a época das taxas e impostos. A propósito da que propõe para a especulação imobiliária, a calhar vinha uma taxa sobre a vergonha na cara. Podia chamar-se qualquer coisa tipo: Taxa Robles. Não sei porque me lembrei deste nome, mas não ficava mal.
— João Pinho de Almeida (@_jalmeida_) September 9, 2018
E no encerramento da festa do Avante, apesar de não ter falado proposta do Bloco de Esquerda, Jerónimo de Sousa incluiu o tema do imobiliário no seu discurso e defendeu o “aumento da tributação do património imobiliário de elevado valor e a especulação imobiliária”, mas não detalhou qualquer proposta.
DIA 3, segunda-feira, 10 de setembro, o mesmo João Almeida fez uma conferência de imprensa no Parlamento para atirar à proposta do Bloco de Esquerda. “É muito importante saber se o Governo quer aproveitar este último Orçamento da legislatura para mostrar aquilo que efetivamente o PS, que faz parte do Governo, quer para as finanças públicas do país ou se este Orçamento vai, da parte do Governo, ser mais uma manta de retalhos, que acolhe impostos Mortágua, taxas Robles e tudo aquilo que faça parte do discurso demagógico dos partidos que apoiam o Governo”, disse o deputado. O batismo estava feito e rapidamente pegou.
Neste mesmo dia, durante uma visita aos Açores, a líder do Bloco de Esquerda volta a defender a sua medida, evitando entrar em despique com o CDS. “Eu não comento outros partidos, comento e explico as medidas que o Bloco de Esquerda propõe”, dizia aos jornalistas que a confrontavam com o epíteto de “taxa Robles” já atribuído à proposta bloquista. Catarina Martins argumentava que a ideia era encontrar “medidas que compensam o Estado indo cobrar impostos a quem tem muita riqueza e proporcionalmente paga menos. Para nós isso chama-se justiça fiscal”, rematava sem deixar de dar a sua expectativa sobre o que sairia da negociação: “Parece-nos ter todas as condições para ser aprovada no próximo Orçamento do Estado. É uma medida que o Bloco de Esquerda vem a negociar desde Maio com o Governo”. Estava apresentada, mas não estava propriamente a ser negociada porque o Governo não tinha dado sinal claro de que seria integrada na proposta de Orçamento do Estado.
DIA 4, terça-feira, 11 de setembro, Catarina Martins falava em todas as condições para a taxa avançar e o Diário de Notícias titulava que no PS havia abertura para a negociação. O dia começou assim, mas acabou com a nova taxa enterrada pelo PS e pelo Governo — e pelas figuras de topo: o primeiro-ministro, a falar pelo Governo, e o líder parlamentar, a falar pela bancada do PS. O gatilho para este desfile de declarações ao mais alto nível foi precisamente a leitura de que o novo imposto que o Bloco propunha estar garantido. Não estava e o Governo quis fazer constar isso mesmo rapidamente, estivesse o que estivesse a acontecer nas negociações sectoriais do Orçamento do Estado.
Antes das 11 da manhã em Lisboa, já Carlos César tinha falado à Lusa em Ponta Delgada, para dizer que “não há qualquer intenção do Grupo Parlamentar do PS aprovar a proposta do Bloco de Esquerda”. Mais: “Pelo contrário, a especulação não se combate com uma taxa que é uma repetição do imposto de mais-valias que já existe. A especulação combate-se eficazmente com o aumento de oferta de habitação acessível, como o Governo propôs e aguarda aprovação na Assembleia da República”. A esta hora, César falava, soube o Observador, totalmente alinhado com o Governo. Mas para que não restassem dúvidas disso, o próprio primeiro-ministro não fugiu à questão, quando foi confrontado com ela durante uma visita às obras de requalificação da Escola Básica e Secundária de Paredes de Coura. E enterrou-a de vez.
António Costa considerou não só que a proposta do parceiro parlamentar foi “feita à pressa”, como vem duplicar um imposto que já existe e é suficiente: “Já tributa o que há a tributar”. “O que é fundamental para controlar os preços e combater a especulação é aumentar a habitação acessível. Não podemos tratar simplesmente esta matéria com propostas feitas à pressa. Deve haver aqui qualquer confusão”, concluiu em declarações aos jornalistas.
Costa ignora a parte da declaração de Catarina Martins que garante que a medida está a ser negociada com o Governo desde maio e sugere que foi feita para responder a uma emergência política: “Foi feita à pressa”. O PCP não tem dúvidas disso e, ignorando a mesma indicação da líder do BE, o deputado do Paulo Sá diz ao Observador que a “proposta do BE tem um objetivo político evidente, que tem a ver com a situação daquele que era vereador do partido na Câmara de Lisboa”. Os comunistas aproveitam para explicar que, da sua parte, também há medidas sobre o imobiliário que estão a ser negociadas, a saber: criar um novo escalão no adicional do IMI (que em 2016 ficou conhecido pelo imposto Mortágua) que se aplique a quem tem património acima dos 1,5 milhões de euros, com uma taxa entre os 1,5% e os 2%; tornar obrigatório, no IRS; o englobamento de todos os rendimentos superiores a 100 mil euros, rendimentos que não são de trabalho incluídos — até agora estes rendimentos podem ser taxados de forma autónoma, com uma taxa de 28%.
Entre a declaração de Carlos César e a de António Costa, Rui Rio veio dizer que nem achava a proposta “não é assim tão disparatada”. “Não estou a dizer que sou favorável, mas não rejeito liminarmente”. “Efetivamente, uma coisa é comprarmos e mantermos durante ‘x’ tempo e outra coisa é andarmos a comprar e a vender todos os dias só para gerar uma mais-valia meramente artificial”, disse o líder do PSD acompanhando a argumentação do Bloco de Esquerda. E, no Twitter, Mariana Mortágua recusava deitar a toalha ao chão nesta proposta:
A especulação expulsa mta gente das cidades. A nossa proposta dirige-se a fundos que ñ constroem ou reabilitam, só inflacionam preços. Do CDS já esperávamos voto contra,do PS não. É errado fechar portas ao princípio sem discutir medida. Mantemos proposta nas negociações.
— mariana mortágua (@MRMortagua) September 11, 2018
E, já depois de Costa ter chutado a proposta para canto, veio ainda Catarina Martins tentar mantê-la em jogo. Disse mesmo não acreditar que Mário Centeno tenha posto esta proposta na gaveta: “Não acredito. As negociações do Orçamento são matérias complexas, têm negociações setoriais. Acho que ganhamos muito mais em trabalhar as propostas, ver quais são as propostas sensatas, o que é que corresponde à necessidade do país e fazermos essa negociações, do que estarmos a anunciar fecho de processos que até estão a correr bem”.
Esta terça-feira, a líder do Bloco de Esquerda também desvalorizou a reação de Costa, dizendo “acreditar que o senhor primeiro-ministro, que acompanha muito dossiês, não terá ainda falado com o senhor ministro das Finanças sobre esta matéria. Tenho de concluir que eventualmente não estava informado, mas acho que não deve ser ultravalorizado”. Catarina Marins confirmou que a proposta estava desde junho a ser debatida com o ministro das Finanças.
A medida do BE e o que já existe
O advogado especialista em Direito Fiscal Patrick Dewerbe aponta várias informações surpreendentes e potencialmente enganadoras nas declarações de Catarina Martins, especialmente porque a líder do Bloco recorre ao exemplo da tributação sobre as mais-valias das ações (valores mobiliários) para justificar a sua proposta de alterar a tributação sobre as mais-valias da venda de casa.
Vamos por pontos. Catarina Martins diz que a medida visa combater a especulação imobiliária e que será semelhante à taxação “dos movimentos da especulação em bolsa”. “Quando alguém compra e vende [ações] num curto período e faz muito dinheiro paga uma taxa de imposto especial”, disse. Na verdade, diz Patrick Dewerbe, a taxa sobre as mais-valias da venda de ações não se altera consoante o período de tempo. Quem faz mais-valias na venda de ações paga uma taxa de 28% (em sede de IRS), mas essa taxa é igual quer a venda se realize um dia após a compra ou dois anos após a compra. É igual. Também é igual quer o investidor obtenha “muito dinheiro” ou pouco dinheiro. Paga 28% por igual.
“Quem realiza mais-valias na venda de ações, na alienação de valores mobiliários, já é tributado à taxa de 28%. Não há nenhuma taxa especial ou mais onerosa”, diz o especialista. Mas Catarina Martins usa a expressão “taxa especial”, o que pode deixar no ar a ideia de que é um adicional à tributação regular, aplicado especialmente a quem vende “num curto período” de tempo ou a quem “faz muito dinheiro”.
Patrick Dewerbe explica. “Chama-se taxa especial porquê? Hoje em dia, o IRS é tão complicado que tem taxas liberatórias, taxas especiais e a taxa progressiva, que é aquela tabela até aos 48%”. As taxas liberatórias são aquelas que desobrigam o contribuinte de fazer uma declaração de imposto, porque este é retido na fonte. É o caso dos juros dos depósitos bancários, que também são taxados a 28% e esse valor é logo retido pelos bancos.
Voltando à taxa especial. “As mais-valias [nas ações] são tributadas sempre a 28% e chama-se taxa especial apenas para distinguir da taxa liberatória e da taxa geral progressiva em função do valor do rendimento”. Uma exceção: as mais-valias relativas a ações de micro e pequenas empresas não cotadas em bolsa são consideradas apenas em metade do seu valor. E uma certeza: não há taxa adicional sobre as mais-valias aplicada a quem compra e vende logo de seguida, fazendo muito ou pouco dinheiro com isso.
“Tanto quanto sei, hoje em dia não há nenhuma taxa em sede de IRS que vise onerar adicionalmente as pessoas que compram e vendem ações num curto espaço de tempo, realizando valores significativos. Isso não existe”, diz o advogado ouvido pelo Observador.
Já existiu uma diferenciação. O Código do IRA chegou a incluir uma isenção de pagamento de mais-valias na venda de ações para quem detinha os títulos há mais de um ano, tal como referiu esta terça-feira o líder do PSD, Rui Rio. Mas esta isenção foi revogada em julho 2010 — na sequência do primeiro PEC do Governo de José Sócrates. Na altura esta medida foi impulsionada precisamente pelo Bloco de Esquerda, pelo seu coordenador, Francisco Louçã.
E como é que se processa o pagamento de imposto pela mais-valia obtida na venda de uma casa? Atualmente, os particulares que fazem negócio com a compra e venda de casas já pagam em sede de IRS sobre 50% das mais-valias da venda dos imóveis. “Só ficam excluídos [de pagar mais-valias] os que aplicarem a totalidade do valor da venda de uma habitação própria e permanente — descontados os empréstimos, se os houver — noutra habitação própria e permanente”. Por outras palavras, o Estado já taxa sobre metade das mais-valias que um contribuinte faz com a venda de uma casa que não seja destinada à habitação do próprio. Desconhecem-se os termos da proposta do Bloco, mas uma possibilidade seria a de subir esta percentagem em vendas de casas realizadas pouco tempo depois da compra.
E não é fácil ser um especulador imobiliário e escapar a essa tributação. “Hoje em dia, com o cruzamento de dados, não é possível escapar a esta tributação sobre as mais-valias na venda de casas. Há muitos anos as pessoas não declaravam os valores ou declaravam valores mais baixos. Hoje, quem estiver nessas condições de mais-valias, vai ser tributado”, remata Patrick Dewerbe.
Sobre a forma de combater a especulação imobiliária, o objetivo assumido pelo Bloco para impulsionar esta medida, o especialista em Direito Fiscal dá o exemplo da fiscalidade em França: “As mais-valias são tanto mais tributadas quanto menor for o período de retenção da casa. Ou seja, beneficia-se quem não vende casas compradas há pouco tempo”.