[Artigo originalmente publicado a 14 de setembro de 2018 e republicado a 16 de janeiro de 2019, a propósito da detenção de Rui Pinto, anunciada pela Polícia Judiciária.]
“Os fãs têm de perceber que com cada bilhete, cada equipamento que compram e cada subscrição televisiva que fazem, estão a alimentar um sistema extremamente corrupto que funciona apenas para si (…) Há ligas na Europa que são controladas apenas por três ou quatro agentes. Eles fazem transferências contínuas com presidentes de clubes corruptos. O sistema do futebol está a consumir-se a si próprio por dentro”, dizia “John” ao Der Spiegel em dezembro de 2016, numa longa reportagem de investigação com o título “O homem por trás do Football Leaks”. “De onde veio a maior fuga de sempre na história do desporto? Um encontro com o homem que expôs os truques fiscais e as práticas comerciais obscuras dentro do negócio do futebol”, salientava.
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E o que se pode retirar de “John”, o nome fictício do ‘Garganta Funda’ que revelou em termos públicos tudo isso? Que nasceu em Portugal, que é um jovem com capacidades acima do normal que fala cinco línguas e estava a aprender mais duas, entre as quais russo, que é um bon vivant que gostava de ir a festas sempre acompanhadas com cerveja enquanto partilhava com os amigos mais próximos as suas histórias. “Adora a sua liberdade, viaja com frequência e raramente permanece no mesmo lugar muito tempo”, acrescenta sobre alguém que bebe o café quente sem pousar a chávena na mesa e que, no dia desse encontro, chegou com calças de ganga rasgadas, sapatos sujos (“apesar de não ligar a isso”) e um buraco numa das meias.
A certa altura, as perguntas mais complicadas. A reportagem fala da participação da Doyen, um dos fundos de investimento que foram visados nos primeiros ataques (tal como o Sporting e o FC Porto), à polícia. Fala de um email que alguém com o nome de “Artem Lobuzov” enviou para Nélio Lucas, principal responsável da Doyen, pedindo alegadamente um valor entre 500 mil e um milhão de euros para parar de revelar informação confidencial sobre o fundo e os seus ativos. Fala de um encontro entre Nélio Lucas, o seu advogado, e Aníbal Pinto, representante jurídico de “Lobuzov”. Mas quem é Lobuzov? Trabalha com John? Será que são a mesma pessoa? John é um hacker? “Nunca fizemos nenhum ataque informático a ninguém e, como sempre dissemos, não somos hackers. A única coisa que temos é uma boa rede de fontes. Todas essas alegações ridículas estão a vir de uma organização criminosa. Isso é o que a Doyen é, uma organização mafiosa”, respondeu, após uma longa pausa.
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Em dezembro de 2016, John, ou Artem Lobuzov, continuava a negar as acusações que tinham sido lançadas em termos públicos apenas uns meses antes pelo Football Leaks Revealed. Nesse endereço, que foi criado e apagado não muito tempo depois, era apontado o dedo, após uma longa investigação, ao alegado artífice da fuga de todos os documentos.
“Trata-se de Rui Pinto, um português de 27 anos, residente em Budapeste e com passado com delitos como hacker. E presente, ao que parece. Rui Pinto utilizou diversas técnicas de hacking para conseguir o material, para sacar para o domínio público os contratos de múltiplos jogadores e clubes. Além disso, contou com a ajuda de mais pessoas. Entre elas, o seu advogado, Aníbal Pinto, com quem comunicava mediante TOR [software que permite fazer comunicações anónimas], impedindo assim que fosse descoberto”, escreveu o jornal Marca em março de 2016, prosseguindo: “Rui Pinto esteve envolvido em ataques informáticos no passado. Em 2013, ‘hackeou‘ o Caledonian Bank, das Ilhas Caimão, e conseguiu a informação suficiente para transferir 300 mil dólares para o Deutsche Bank, mas foi identificado na intenção e detido. Foi aí que chegou Aníbal Pinto. O seu advogado salvou-o de uma pena maior e, no final, apenas tiveram de pagar uma multa de 100 mil dólares”. De forma mais resumida e sem grandes detalhes, essa informação saiu no mesmo dia no jornal As.
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A publicação desportiva espanhola vai ainda mais longe no que toca à ligação entre o alegado hacker e Aníbal Pinto. “O advogado colocou-se em contacto com vários clubes de Portugal exigindo dinheiro em troca de que os documentos não viessem para a praça pública. Portanto, Rui e Aníbal tentaram extorquir e chantagear diversos clubes e, quando não lhe pagavam, eles tornavam públicos os documentos através da página do Football Leaks. Apesar deste sítio na internet advogar um futebol transparente, onde qualquer adepto pode aceder a documentos das suas equipas, houve um claro interesse económico por trás da sua iniciativa”. O advogado, presença frequente da Crónica Criminal do programa matinal da TVI, acabou por abordar esta quinta-feira a ligação a Rui Pinto, com quem não tem qualquer tipo de contacto há mais de dois anos.
“Fui advogado do senhor Rui Pinto, naturalmente que em relação ao seu processo estou sujeito a segredo profissional, só vim intervir porque falaram do meu nome e para defesa da minha dignidade, para que não fique nenhuma dúvida. Não contacto com ele há dois anos. Processo Doyen? Nem sei o que é isso do processo Doyen. Até já li que tinha antecedentes criminais quando, enquanto fui seu representante, não tinha. Tive uma reunião com um ilustre colega, um advogado da Doyen, para a tentativa de um acordo, de um contrato. Para surpresa minha, havia outros contornos mas quando um advogado percebe que pode haver algo ilícito deve fazer duas coisas: afastar-se e dizer ao cliente que, se estiver a fazer algo, que não prevarique. Foi isso que aconteceu. Não conheço o Football Leaks, os emails do Benfica foi uma surpresa para mim…”, disse à TVI e à CMTV.
O tema, com mais de dois anos, voltou às manchetes dos jornais nacionais esta quinta-feira, no seguimento de uma reportagem da revista Sábado (conteúdo fechado apenas para assinantes) onde Rui Pinto é apontado como o principal (ou único) suspeito para a Polícia Judiciária e para o Ministério Público de ter desviado os emails do Benfica. Recorda as queixas feitas pelo Sporting e pela Doyen no seguimento dos primeiros documentos que saíram no Football Leaks, tudo o que aconteceu até à criação do Football Leaks Revealed que expôs pela primeira vez o nome do alegado hacker (incluindo outros pormenores do tal encontro, na estação de serviço de Oeiras na A5, entre Nélio Lucas, o seu advogado e Aníbal Pinto, ou o facto da casa dos pais de Rui Pinto ter estado sobre vigilância duas semanas) e acrescenta mais alguns detalhes pessoais: é originário da praia de Lavadores, em Gaia; estudou História na faculdade; fez Erasmus em Budapeste, onde estará agora a residir.
De acordo com a revista, as autoridades chegaram a fazer três cartas rogatórias para a Hungria, com o intuito de deter e extraditar Rui Pinto, além de apreender todo o seu equipamento, mas esses pedidos foram negados. Terá sido ainda enviada uma carta rogatória para os Estados Unidos no sentido de obter todos os dados da página do Facebook Football Leaks, onde iam sendo colocados os links com toda a documentação – página essa que, depois de um longo período sem publicações (abril de 2016), deixou uma mensagem esta sexta-feira dizendo “PJ estão à minha procura? LOL apanhem-me se puderem…”. No meio de tudo isto, um fonte dos encarnados disse à Sábado que a SAD gastava cerca de três milhões de euros por ano com advogados, o que inclui advogados nos Estados Unidos por causa da ação cível contra gigantes como a Google ou a Cloudfare Inc.. Há ainda uma empresa de cibersegurança e um escritório de advogados em Moscovo a ajudar na investigação interna.
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Esta sexta-feira, o Correio da Manhã avançou que Rui Pinto, hoje com 30 anos, vai ser alvo de mandados de detenção (até por alegadamente poder estar envolvido numa rede criminosa mais vasta) e que pode já não estar a viver na Hungria. É descrito como um estudante tímido e adepto do FC Porto. “Duvido muito que ele tenha os conhecimentos informáticos para fazer o que o acusam. Não é assim tão perito quanto isso. Emigrou há alguns anos, acho que está a trabalhar como freelancer em informática. Desde o caso do Football Leaks que não pára no mesmo sítio porque nessa altura a PJ disse-me que se ele viesse a Portugal era preso. Tem medo de regressar”, comentou o pai, Francisco Gonçalves, em declarações ao Jornal de Notícias (conteúdo reservado a assinantes), que revela também o interesse de Rui Pinto por arqueologia e o desejo de fazer um curso de Relações Internacionais depois da licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Na reportagem do Der Spiegel em dezembro de 2016, existem ainda outros pequenos pormenores que ajudam a perceber um pouco mais sobre Rui Pinto. Por exemplo, o facto de, logo no início da mesma, ser feita uma descrição da presença do português num jogo do Hamburgo, que corria o risco de descer de divisão (não aconteceu nessa temporada de 2016/17, ocorreu na época seguinte), para explicar o gosto que ainda tem por futebol. Ou a entrega de oito drives externas portáteis com documentos, contratos, ficheiros Word e Excel e fotografias até 2016 num total de 1.9 terabytes de memória, equivalente a 500 mil Bíblias. Ou os encontros com a publicação germânica em diferentes cidades da Europa (a peça é assinada por nove jornalistas).
Considerava-se uma espécie de Robin Hood mas destacava que o Football Leaks era resultado do trabalho de uma equipa. Antes, em fevereiro de 2016, numa entrevista também ao Der Spiegel, “John” disse que todos eram portugueses e viviam em Portugal. “Pessoas como Julian Assange, Edward Snowden ou Antoine Deltour são grandes inspirações para nós. Eles sacrificaram tudo pelas suas convicções e sonhos. Agora somos nós a tentar dar a nossa contribuição para um mundo mais transparente”, disse. Um mês antes, ao jornal Record, o “Football Leaks” tinha dado também uma entrevista onde não respondeu apenas a duas questões, uma das quais quantas pessoas faziam parte do grupo e que idade tinham. Em paralelo, recusaram ser apelidados de hackers: “Somos apenas utilizadores de computadores, a designação hacker está totalmente desenquadrada daquilo que é o Football Leaks. Se é uma atividade criminosa? Essa é uma questão a que só o Direito e os juízes poderão responder. Há a possibilidade de estarmos a violar várias leis de propriedade intelectual em algumas jurisdições, por isso por aí se poderá ver um pouco a complexidade do caso. Mas esta é a única forma de mostrar ao mundo um pouco daquilo que está a matar o futebol”.
Nessa mesma entrevista, e depois de não terem explicado o porquê das primeiras fugas estarem quase sempre circunscritas a Doyen, Sporting e FC Porto, surge a pergunta “Reveem-se na acusação de estarem ligados ao Benfica ou de, pelo menos, serem adeptos do Benfica?”. “Essa acusação é muito infeliz e mais uma prova de que na generalidade o cidadão português leva as emoções clubistas à flor da pele, disparando em todas as direções, quando sente que o seu clube é o visado. Nós quando iniciámos este projeto fomos sobrecarregados de emails com insultos e acusações totalmente descabidas. Por isso, queremos deixar bem claro que este projeto não tem cores clubísticas nem funciona a reboque de nenhum clube”, salientou a resposta.