Estamos em Milão, uma das três grandes capitais europeias da moda, e o estilo, a personalidade e as tendências estão ao virar de cada esquina. São dez da manhã, a segurança é apertada e a fila para entrar na Fiera Milano já vai longa. Para quem espera,  vale a pena. Afinal, estamos na MICAM, a maior feira de calçado do mundo, cuja 86ª edição decorre de 16 a 19 de setembro (por sinal, dia em que arranca a Semana da Moda de Milão). Quatro dias, oito pavilhões colossais, separados por categorias. Lá dentro, cabem 1600 stands ocupados por marcas dos quatro cantos do mundo. Tal como numa fashion week, aqui, as compras são outras. Em vez de lojas, há expositores. Em vez de clientes, há buyers. Em vez de um ou dois pares de sapatos, compra-se às centenas.

Na bagagem, as marcas trazem propostas para a próxima estação quente e muita vontade de fazer contactos e aumentar o volume de negócio. Quase 50 países apresentam, nesta feira, o que de melhor produzem. Nos corredores, ouvem-se várias línguas e a expectativa e a curiosidade predominam. Em Portugal, o setor cresce há 8 anos consecutivos. Em 2017, a indústria nacional exportou sapatos para mais de 150 países, atingido um volume de vendas de 1.965 milhões de euros. Um crescimento de 2,8% em relação ao ano anterior, que se traduziu em cerca de 40 milhões de euros a mais nas vendas.

Miguel Moreira, fundador da Gladz, juntou a expositor da marca, na MICAM © Guilherme Comando

Este percurso ascendente reflete-se na MICAM, onde encontramos mais de 90 marcas portuguesas. À primeira vista, a Gladz pode passar despercebida, mas a marca de Oliveira de Azeméis, que, com apenas dois anos, já conquistou mercados como os Estados Unidos, a Holanda, o Japão ou a Grécia, dá-nos uma autêntica lição de estilo: menos é mais. “Fazer um sapato simples é bem mais difícil do que fazer um sapato trabalhado, exige muita perfeição”, explica ao Observador Miguel Moreira, fundador da marca. Com um design minimalista, uma atenção redobrada no detalhe e uma inspiração nas técnicas tradicionais japonesas, a Gladz incorpora o ideal do empoderamento feminino, coleção após coleção, com Simone de Beauvoir e Marie Curie entre as suas musas. Materiais delicados, como a camurça, constroem modelos românticos e geométricos. Para a próxima primavera, a paleta de cores andará do azul ao lilás, mantendo sempre a suavidade. “Cada sapato tem um pormenor de excelência que o faz especial, seja um salto, uma fivela ou uma costura”, completa Miguel. A simplicidade é levada à letra e nem a embalagem é deixada ao acaso.

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E se é em pequenos que aprendemos boas práticas, calçar bem pode perfeitamente ser uma delas. Que o diga a Wolf & Son, uma empresa familiar, já na terceira geração, com um conceito também ele familiar: sapatos iguais para pais e filhos. “Queremos abranger sapatos que acompanhem todos os momentos da vida de uma família”, explicam Cristiano e Marta Lopes, os irmãos que dão a cara pela marca de Felgueiras, composta por uma linha clássica e outra mais casual, em números que vão do 28 ao 46. No ano passado, piscaram o olho ao público feminino ao introduzirem calçado para mães e filhas. No futuro, gostavam de se aventurar no universo têxtil, produzindo polos, sweatshirts ou t-shirts, embora reconheçam a dificuldade de se implementarem num mercado cada vez mais exigente. “Estar na MICAM é importante porque nos abre muitas portas, sentimos que o primeiro contacto acontece aqui”, concluem.

O stand da Wolf & Son em Milão © Guilherme Comando

No setor do calçado, Portugal exporta 95% do que produz. Os sapatos portugueses chegam, atualmente, aos cinco continentes e, além da qualidade — nos últimos anos, o made in Portugal foi-se aproximando do selo de produção italiana, mundialmente aclamada como a melhor do mundo –, também o design tem contribuído para o crescimento do setor. Na MICAM, as tendências saltam à vista em cada stand, uns experimentam sapatos, outros fazem notas de encomenda e fecham negócios. Do chão ao teto, há publicidade de marcas por toda a parte e são poucos os que saem de cada pavilhão sem catálogos e amostras debaixo do braço.

Pela primeira vez na feira está a B.Joy, marca pensada para mães e filhas, ocupando a zona dedicada aos acessórios de moda e em pele, a MIPEL. Patrícia Vasconcelos é a mãe vaidosa que idealiza cada mala e carteira da marca, feitas maioritariamente em pele e tecido, de forma manual e artesanal. “Tentamos acompanhar as tendências, embora a B.Joy tenha um cunho próprio, simples e sem grande ostentação. Queremos que a marca seja uma companheira e uma aliada para o dia-a-dia de todas as mulheres”, refere Patrícia. Já percorreu feiras em Paris e em Berlim, mas estar aqui “superou todas as expectativas”. “Estava com algum receio mas decidi arriscar, até porque queremos entrar no mercado italiano. Estamos felizes porque saímos daqui com encomendas e novos contactos e isso é o mais importante”, remata. Este inverno, a B.Joy apresenta-nos o verde garrafa, o bordô e o preto intemporal, das carteiras XXL às bolsas para usar à cintura.

Próxima tendência: sustentabilidade

Já pensou em calçar um par de sapatos feitos a partir de roupas velhas, restos de bancos de automóveis, pneus ou garrafas de plástico? Se a resposta é não, saiba que a Kayak Storm já pensou nisso por si. A marca portuguesa está focada na ecologia e a sustentabilidade. Depois de experimentar o conceito biodegradável, que não fez sucesso, há cinco anos que a marca produz calçado vegan e a partir de materiais reciclados para homem e mulher, onde os vestígios da transformação são visíveis, da sola à palmilha. A produção continua a ser feita como a de um sapato comum e isso faz com que as infraestruturas, bem como os preços, sejam muito semelhantes.

Mas nem todos os mercados estão recetivos a este tipo de calçado. “Não é um produto que possamos apresentar em todo o lado. Na Alemanha, por exemplo, funciona muito bem”, afirma José Lima, sócio-gerente da Kayak Storm. Sapatos leves, resistentes, confortáveis e criados com o menor impacto negativo possível para o planeta são os requisitos da marca. Este ano, apostou na variedade de cores e no algodão orgânico reciclado. Enquanto isso, o processo de tentativa e erro continua a ser a filosofia da casa. “Fazer palmilhas com pacotes de leite era algo possível para nós mas por uma questão burocrática tivemos que desistir da ideia”, conta José. A verdade é que no universo fértil da sustentabilidade há um mundo de possibilidades para explorar, técnicas a melhorar e novos públicos para conquistar.

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Amiga do ambiente e dos pés é As Portuguesas. Graças a uma parceria com a corticeira Amorim, a marca fez da cortiça a sua matéria-prima principal. “É um material que nos permite inovar, crescer e desenvolver produtos que não existem”, explica Pedro Abrantes, o homem ao leme de um projeto com uma forte componente ecológica, que promete ditar o futuro. A colaboração de cariz social com o surfista norte-americano Garrett McNamara e a linha exclusivamente dedicada a animais em vias de extinção reforçam a missão da marca: diminuir a pegada ecológica da moda e aliar-se a outras causas ambientais. Tudo começa na rejeição do plástico. Solas em cortiça, borrachas naturais e tecidos elásticos reciclados fazem com que o resultado final seja, no mínimo, diferente. Os modelos são unissexo, fáceis de calçar e muito confortáveis. “Começámos nos flip-flops, mas evoluímos para sapatos de inverno, talvez o nosso maior desafio até agora”, conta Pedro. As Portuguesas exporta cerca de 80% do que produz e apanha a onda de mercados tão distantes como a Nova Zelândia ou a Austrália. Como muitas outras marcas portuguesas, o continente asiático está debaixo de olho. Neste caso, no horizonte mais próximo, avista-se a Coreia do Sul.

O Observador viajou para Milão a convite da APICCAPS.