Foram quase quatro horas de interrogatório a Christine Blasey Ford, muitas vezes repetitivo. “Do que se recorda dessa noite?”, “porque razão decidiu tornar o caso público?”, “quem a aconselhou a arranjar um advogado?” foram algumas das perguntas feitas uma e outra vez ou pela procuradora Rachel Mitchell — escolhida pelos republicanos para questionar Ford no seu lugar — ou pelos senadores democratas, presentes no Comité Judicial do Senado. A psicóloga manteve-se firme durante grande parte da sessão, tendo-lhe apenas tremido a voz no seu testemunho inicial sobre a noite onde diz ter sido atacada por Brett Kavanaugh, o juiz nomeado por Donald Trump para o Supremo Tribunal que aguarda confirmação do Senado.

Terminada essa audiência, foi a vez do próprio Kavanaugh se defender e seguiram-se mais outras quatro horas de perguntas e respostas. O juiz fez a defesa da sua honra, de forma mais emotiva do que tinha feito até então na entrevista com a Fox News, e sublinhou a sua total inocência — embora tenha reconhecido erros da juventude que até então não tinha abordado, como o consumo de álcool e algumas frases descabidas do livro de curso. “Mas isso não significa que tenha cometido uma agressão sexual”, explica.

[Veja no vídeo como foi a batalha de palavras entre Kavanaugh e Ford]

Fora do Capitólio, eram vários os comentadores que falavam sobre Ford como uma testemunha “credível”, inclusivamente dentro do Partido Republicano (o ex-candidato presidencial Rick Santorum foi um deles, por exemplo). Mas outros continuavam a apontar que tudo se mantinha na dimensão emocional e que faltam elementos que corroborem o testemunho de Ford. Quanto a Kavanaugh, o consenso era de que estávamos perante outro testemunho emotivo — ficando as provas apresentadas (os calendários e os testemunhos escritos de pessoas como Mark Judge) um pouco aquém do que seria de esperar para afastar quaisquer dúvidas.

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Foi precisamente por isso que os senadores democratas insistiram repetidamente na necessidade de reabrir uma investigação do FBI — algo apenas possível por ordem da Casa Branca —, perguntando a Kavanaugh se estava disponível para pedir isso mesmo ao Presidente. O juiz nunca respondeu diretamente à questão. Os senadores republicanos, por outro lado, abandonaram a estratégia de recorrer à procuradora Mitchell e passaram diretamente ao ataque, denunciando o que creem ser a instrumentalização partidária feito pelo Partido Democrata de Christine Ford. “Sabia que quando se encontrou com a senadora Feinsten a 20 de agosto ela já tinha recomendado um advogado à Dra. Ford?”, perguntou a Kavanaugh o senador Lindsey Graham, questionando porque não foi o assunto do ataque abordado à altura — uma “farsa”, diz.

Resumimos as audições de Christine Blasey Ford e de Brett Kavanaugh em seis frases para cada um, que ilustram o que aconteceu no Comité Judicial do Senado esta quinta-feira.

Christine Blasey Ford a jurar dizer a verdade durante a sessão (Jim Bourg-Pool/Getty Images)

O testemunho de Christine Blasey Ford

Pensei que ele me ia violar”

Na sua declaração inicial, a psicóloga e professora da Universidade de Palo Alto recordou o ataque de que diz ter sido vítima, num relato em tudo semelhante ao que já tinha prestado ao Washington Post — jornal que contactou através da linha de denúncias anónimas, ao mesmo tempo que enviava uma carta para a congressista do seu estado.

Tudo terá acontecido numa festa de adolescentes, onde estavam poucas pessoas. Duas delas eram Brett Kavanaugh e Mark Judge, “visivelmente bêbados”, de acordo com Ford. A certa altura, a psicóloga diz que subiu ao segundo andar para ir à casa-de-banho quando foi empurrada para um quarto e para cima da cama. “Brett pôs-se em cima de mim. Começou a passar as suas mãos pelo meu corpo e a esfregar-se contra mim”, disse. “Ele teve dificuldades em tirar-me a roupa porque estava visivelmente embriagado e porque eu tinha um fato de banho vestido por baixo da roupa.” Christine gritou — e ele tapou-lhe a boca. “Foi o que mais me aterrorizou. Pensei que ele me ia violar”, disse a testemunha.

Achei que era meu dever cívico divulgar a informação”

Questionada repetidamente sobre o processo de denúncia — através dos media e do contacto com vários políticos democratas — e a decisão de dar a cara, Christine Blasey Ford declarou ter decidido tornar pública a história ao saber que Kavanaugh era um dos nomes na calha para o Supremo Tribunal. Tinha a esperança, explicou, que assim fosse escolhido um dos outros nomes considerados. Os meios selecionados (media + políticos democratas) foram os escolhidos por não saber “como chegar ao Comité Judicial”, explicou. A insistência da procuradora Rachel Mitchell, contudo, levou a senadora Mazie Hiron do Havai a ir direta ao assunto e a dizer que Mitchell estava a tentar fazer a pergunta “A sua decisão foi motivada por razões políticas?” de forma velada. Por isso, perguntou diretamente — e Ford, que é assumidamente democrata, respondeu “não”.

Uma jornalista apareceu numa das minhas aulas e pensei que era uma aluna”

Foi com esta frase que Ford explicou como tomou a decisão de dar a cara, ao perceber que não iria conseguir manter a sua identidade em segredo. Ao longo de todo este processo, a psicóloga sublinhou como desejava proteger-se e à sua família, tendo apenas contratado advogados depois de seguir o conselho de várias pessoas — inclusivamente da equipa da senadora democrata Diane Fennstein, como insistiu em deixar claro a procuradora Mitchell. Até ter recorrido ao Post e a Feinsten, Ford só tinha contado o caso à sua terapeuta e ao marido, na sequência de uma sessão de terapia de casal, e depois a alguns amigos. Esses relatos terão sido feitos anos antes de Kavanaugh ser nomeado por Donald Trump. Desde que a sua identidade foi tornada pública, Ford sofreu várias ameaças de morte.

100%”

Uma das teses que tem sido veiculada por algumas das pessoas mais próximas politicamente de Kavanaugh é a de que Ford não estará a mentir, mas ter-se-á “confundido” e baralhado sobre a identidade do seu atacante. Questionada sobre essa possibilidade na audiência, a psicóloga foi clara: “Decididamente que não”. “Qual o grau de de certeza que tem?”, perguntou o senador democrata Dick Durbin. “100%”, respondeu.

É mais fácil voar quando é para ir de férias”

Um dos pontos onde a procuradora Mitchell insistiu durante algum tempo foi na aparente contradição de Ford, que afirma ter medo de voar e que invocou esse argumento para tentar que a sua audiência se realizasse na Califórnia (onde vive). A contradição que Mitchell tentou expor é que Ford já viajou de avião repetidamente para múltiplos locais, enumerando-os. “É mais fácil quando é para ir de férias”, respondeu Ford sorrindo, acrescentando depois que aceitou vir a Washington quando percebeu que não seria “razoável” fazê-lo na Califórnia. Mitchell, contudo, afirmou que essa possibilidade foi aceite pelo Comité — ao que Ford respondeu que não tinha entendido isso. O mal-entendido pode estar no facto de a negociação ter decorrido entre a sua equipa legal e os senadores e o mais provável é que Ford não tenha estado envolvida em todos os momentos. Mas tal não ficou absolutamente claro na sessão.

Estava debaixo de um deles, enquanto os dois se riam. Dois amigos a passarem um bom bocado”

Interrogada por um senador democrata sobre qual a memória mais dolorosa que tem do ataque, Ford não destacou a tentativa de lhe ser tirada a roupa, nem a mão a tapar-lhe a boca. Optou por responder “os risos deles”. “Estava debaixo de um deles, enquanto os dois se riam. Dois amigos a passarem um bom bocado”, afirmou, emocionada. Ao longo do seu testemunho, Christine Ford tentou recorrer ao seu conhecimento como psicóloga para explicar porque razão tem memórias algo difusas do acontecimento, explicando que é algo comum nas vítimas de trauma. Vários senadores democratas reforçaram essa mesma ideia ao longo das suas perguntas. Quando perguntaram a Ford quais as coisas concretas de que se lembrava, Ford resumiu: “As escadas, a sala de estar, o quarto, a cama do lado direito do quarto, a casa de banho ali próxima, os risos — os risos descontrolados —, as múltiplas tentativas para fugir e a capacidade de finalmente conseguir fazê-lo.”

Brett Kavanaugh a fazer o seu juramento no início da audiência (Win McNamee/Getty Images)

O testemunho de Brett Kavanaugh

A minha família e o meu nome foram completamente destruídos”

O juiz entrou na audiência com um tom indignado e combativo, denunciado o pesadelo que diz ter vivido nos últimos dias. “A minha família e o meu nome foram completamente destruídos”, sublinhou várias vezes, explicando que a sua reputação profissional ficou em causa, bem como o seu caráter. “Nego as acusações imediata, categórica e inequivocamente”, afirmou, sem margem para dúvidas, a abrir o testemunho.

Nunca agredi sexualmente ninguém”

“Nunca agredi sexualmente ninguém. Nem no secundário, nem na faculdade, nunca. A agressão sexual é uma coisa horrível.” O juiz sublinhou o seu respeito para com as mulheres que denunciam casos de violência sexual, dando inclusivamente o exemplo de uma amiga próxima que apoiou por esse mesmo motivo. Mas fez uma distinção que crê ser relevante:  “Quem faz essas alegações deve sempre ser ouvida. Mas ao mesmo tempo, a pessoa sobre quem são feitas essas alegações também tem de ser ouvida”, afirmou. Questionado pelo senador Cory Booker sobre se preferia que Ford nunca tivesse apresentado estas acusações, Kavanaugh respondeu apenas “as testemunhas que estavam lá dizem que isto nunca aconteceu”, remetendo para os testemunhos escritos de pessoas como Mark Judge — que, contudo, não foram chamadas a testemunhar presencialmente perante o Comité.

Este foi um esforço orquestrado e coordenado politicamente, alimentado por uma raiva contra o Presidente Trump e a eleição de 2016″

Kavanaugh aproveitou o seu testemunho inicial para afirmar diretamente que está a ser alvo de uma conspiração política. As razões para ela, explicou, baseiam-se na tal raiva contra o Presidente e o resultado das presidenciais, mas também num “medo” criado em torno do seu percurso profissional e alimentado por uma “vingança em nome dos Clintons e milhões de dólares de grupos da oposição de esquerda”. “Isto é um circo”, declarou. Vários senadores republicanos fizeram uma série de declarações nesse mesmo sentido.

Eu e os meus amigos arrepiámo-nos quando lemos sobre o livro de curso”

O livro de curso de Brett Kavanaugh foi um dos assuntos mais levantados pelos senadores democratas para interrogar o juiz, tentando estabelecer uma linha de casualidade entre as coisas lá escritas e o caráter de Kavanaugh, bem como o seu comportamento para com as mulheres. Kavanaugh reconheceu que o livro tinha muitos “disparates” e disse ter-se arrepiado ao reler o que escreveu, juntamente com alguns amigos com quem conversou sobre o assunto. Contudo, à medida que a sessão avançou, mostrou-se incomodado com as repetidas perguntas sobre essa matéria. “Um nomeado do Supremo Tribunal deve ser escolhido com base num livro de curso? Se sim, estamos no nível do absurdo”, declarou a certo ponto, depois de já ter esclarecido que expressões como “boofed” se referiam a “flatulência”. “Tínhamos 16 anos!”, reforçou. Por esclarecer ficou a referência à colega Renate Dolphin, identificada como “Renate Alumnius” — foi sugerido que tal teria uma interpretação sexual, no sentido de os alunos se gabarem que tinham tido sexo com ela. Kavanaugh diz que era apenas um termo que demonstrava “afeição” pela amiga e chegou mesmo a acusar o senador Richard Blumenthal (democrata) de estar a “espalhar lama” sobre a amiga ao voltar a referir-se ao assunto.

Farei aquilo que o Comité achar melhor fazer”

Foram muitos os senadores democratas que perguntaram a Kavanaugh se estaria disponível para pedir uma nova investigação do FBI ao caso. O juiz conseguiu sempre evitar diretamente com um ‘sim’ ou um ‘não’, optando repetidamente pela fórmula “farei aquilo que o Comité achar melhor fazer”, alternada com a ideia de que muitas das alegadas testemunhas já enviaram depoimentos escritos.

Nunca bebeu umas cervejas, senadora?”

A senadora democrata Amy Klobuchar insistiu na questão do consumo de álcool por parte de Kavanaugh, tentando perceber se a sua afirmação de que nunca tinha perdido os sentidos como consequência do consumo de álcool significava que nunca tinha tido falhas de memória. “Alguma vez bebeu tanto que não se recorda do que aconteceu ou de partes do que aconteceu?”, perguntou-lhe várias vezes. Kavanaugh respondeu com “nunca bebeu umas cervejas, senadora?”, afirmação pela qual mais tarde pediu desculpa à própria. O pai de Klobuchar teve um problema de alcoolismo, como a própria reconheceu na audiência. “Este é um processo difícil”, desabafou Kavanaugh para justificar a sua declaração infeliz, que fez questão de retificar.