Título: “O Fado da Severa”
Autor: Maria João Lopo de Carvalho
Editora: Oficina do Livro
Páginas: 392
Preço: 16,90€
Júlio Dantas foi o responsável pela imagem icónica da popular cantadeira de fado ao publicar, em 1901, a peça de teatro A Severa. É uma história trágico-romântica inspirada nos poucos factos disponíveis, uma história de amores desencontrados e trágicos, que lembra passos da Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho, um drama famoso em que uma cortesã parisiense, Marguerite Gautier, se apaixona por um jovem de boas famílias, Armand Duval; Marguerite renuncia a Armand em nome da moral e dos bons costumes, mostrando-se deste modo integrada na ordem política e social do tempo. Tudo isto em Paris, em 1848, ano, na Europa, da “revolta das nações”. Verdi compôs depois La Traviata, glosando a história. Era muito assim, nesse oligárquico e burguês século XIX: fosse em Flaubert (Madame Bovary), em Tolstoi (Anna Karenina), em Eça de Queiroz (O Primo Basílio) ou em Fontane (Effie Briest), as mulheres adúlteras acabavam mal: Emma Bovary e Ana Karenina suicidam-se, Luísa morre de culpa e doença, e Effie morre também, marginalizada pela família, pela sociedade e pela própria filha.
Eça inspirou-se em Flaubert, como Dantas em Dumas Filho. A França era ainda o viveiro de todas as ideias e de todas as histórias.
Por aqui, as conveniências sociais também chegaram à Severa de Dantas mas diferentemente, porque a heroína já era desgraçada de nascença. A peça conta a história dos amores marginais entre uma cantadeira de fado, Maria Severa Onofriana, e um aristocrata, o conde de Marialva, D. João de Menezes.
E é aqui que entram as conveniências sociais: os Marialva, qualquer dos marqueses de Marialva, do primeiro ao último, foram militares, diplomatas, académicos, cavaleiros e muito pouco de Severas, de copos, de noitadas, de fados e guitarradas – do grande vencedor das linhas de Elvas e de Montes Claros nas guerras da Restauração a D. Pedro José Joaquim Vito de Menezes Coutinho, o 6º Marquês de Marialva e 8º Conde de Cantanhede que morreu em 1823 solteiro e sem descendência, teria a Severa três anos. Na vida real, o amante da Severa foi o 13º Conde de Vimioso, D. Francisco de Paula de Portugal e Castro, cavaleiro, como Marialva, e cavaleiro tauromáquico, que triunfou na arena do Campo de Santana. Só que, ao contrário do Marialva, o Vimioso tinha descendentes, naturalmente incomodados com a devassa em quatro actos da devassidão fadista e femeeira do seu antepassado próximo. Assim, em nome das conveniências e normas de respeitabilidade, o chefe do Governo, Ernesto Hintze Ribeiro, e os familiares de Vimioso pediram a Júlio Dantas que retirasse da história o nome do avô que, além do mais, ainda não estava “suficientemente morto” para tanta ribalta.
Se tivermos presente que ao sucesso da peça se seguiu uma opereta de Filipe Duarte e André Brun (tal como, com a devida distância, Verdi tinha criado La Traviata a partir da Dama das Camélias de Dumas) e que em 1931 Leitão de Barros realizou A Severa, o primeiro filme sonoro português, dar-nos-emos conta dos equívocos que daqui vieram.
Assim, se neste caso relativamente inconsequente seguíssemos a nova moda da “justiça restaurativa”, teríamos de começar por expurgar os dicionários de Português. “Marialva” continuaria a referir-se às “regras de cavalgar ao modo de D. Pedro de Alcântara Menezes”, mas deixaria de significar “indivíduo de vida ociosa e dissoluta que se ocupa de cavalos e touros”, “indivíduo farrista e conquistador”, “homem conquistador de mulheres”. E a linhagem de grandes capitães, cavaleiros, diplomatas e académicos dos Menezes, nobre minoria extinta e injustiçada pela História, não mais seria confundida ou dada como sinónimo e patrónimo de fidalgos estarolas e beberrões. Tão pouco José Cardozo Pires poderia ter escrito “A cartilha do Marialva”, esse panfleto anti-tradicionalista onde, com o paroquial farisaísmo do costume, se constrói um arquétipo de senhor rústico, bruto, reaccionário e mulherengo. Teríamos assim “A Cartilha do Vimioso” e “vimioso” seria o epíteto e o arquétipo.
De qualquer forma, o erro, grosseiro ou subtil, inocente ou interessado, é parte integrante das histórias e da História desde que há histórias e História, sempre contadas a partir do presente e do “espírito do tempo” e também sempre dependentes do grau de seriedade ou de cedência ao poder e às cartilhas vigentes de quem as conta ou reconta.
Talvez para sublinhar a impossibilidade de reescrever a verdade do que foi mas também para afirmar a paixão e a seriedade com que se propôs fazê-lo Maria João Lopo de Carvalho tenha escolhido como epígrafe para o seu Fado da Severa este passo da “Canção Amarga”, de David Mourão Ferreira:
Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem…
Ser mau ou bom, conforme os dias.
Além de um largo conjunto de obras de literatura infantil – como as séries 7 Irmãos e As Cinco Quinas – e de romances como Virada do Avesso e Acidentes de Percurso, ainda da era do luso boom de uma por aqui nova escrita feminina a que chamaram light, Maria João Lopo de Carvalho tem vindo a dedicar-se com sucesso ao romance histórico, ficcionando personagens femininas da história literária e política portuguesa.
À Marquesa de Alorna (2011), à Padeira de Aljubarrota (2013) e às mulheres de Camões (Até que o Amor me Mate – As mulheres de Camões, 2016) vem agora juntar-se O Fado da Severa.
São livros despretensiosos, imaginativos, escritos com graça, verdadeiros page-turners que, no entanto, têm por trás uma investigação histórica exaustiva e meticulosa.
A Severa histórica, Maria Severa Onofriana, foi baptizada na paróquia dos Anjos, em Lisboa, a 12 de Setembro de 1820. Era filha de Severo Manuel de Santarém, “de etnia cigana” (na peça e na época de Dantas onde vigoravam outros, mas não estes, tabus linguísticos, são muitos os que se referem à cantadeira como “a cigana”), e de Ana Gertrudes, de Portalegre, mais conhecida por “Barbuda”. A Barbuda vivia na Mouraria, levava a vida difícil das mulheres de “vida fácil” e iniciou a filha no seu ramo de actividade. Só que, a crer nas memórias de contemporâneos como Bulhão Pato e Luís Augusto Palmeirim, a filha, ao contrário da mãe, era linda, do tipo morena exótica, e cantava o fado como ninguém. Além disso fumava, bebia e, claro, partilhava amiúde o leito – a Maria João Lopo de Carvalho usa expressões mais livres e vernáculas para qualificar a actividade a que a cantadeira e as suas companheiras se dedicavam, bem como para descrever os seus constantes encontros carnais e amorosos. De resto, um confronto dos diálogos de Dantas com os de Maria João (“Ah! Meu grosseirão! Como eu te quero!”, diz a Severa de Dantas para o Marialva, estando os dois, “muito juntos, coração com coração”) diz-nos muito sobre o tempo de Dantas – e sobre o nosso tempo.
Enfim, o jovem Vimioso, casado com uma fidalga e vivendo na casa do Campo Grande com setenta criados e criadas, não terá resistido ao canto e ao encanto da fadista, o que não era novo nem invulgar. O que era novo e invulgar era tentar pô-la por conta em pleno palácio, alheio à promiscuidade entre os dois mundos, e, sobretudo, o facto de a cantadeira se ter recusado a ali ficar.
Jovem, rico, bem-parecido, grande cavaleiro, destemido com os toiros, o Vimioso apaixonou-se perdidamente pela Severa – ou talvez tudo não tivesse passado de um devaneio mais sério, parte integrante dos prazeres de um marialva (ou de um vimioso), na constante roda viva entre “o selim e a mulher” em que, aparentemente, gastava os seus dias.
Na peça de Dantas, o Marialva, além da legítima, ama a Severa e uma outra senhora da sua condição, uma marquesa de Seide, também ficcionada. A versão romanceada de Maria João Lopo de Carvalho, que tem muito “trabalho de casa”, é mais rigorosa do ponto de vista histórico. O Fado da Severa tem, no final, uma bibliografia e a ficção novelesca é entremeada de quadros da época, acompanhados por uma cronologia e por uma curta biografia dos personagens referidos.
As duas partes em que se divide o livro (Parte I – 1836-1842 – Pelas Ruas da Mouraria; Parte II – 1842-1843 – Pelos salões dos titulares), realçam o contraste pretendido entre a Lisboa popular dos bairros imundos, das tabernas, dos bordéis mais chiques e higiénicos que então começavam a aparecer, dos marujos, dos fadistas, das pegas, e a Lisboa dos palácios e palacetes, quase todos periféricos, pois o terramoto encarregara-se, cem anos antes, de destruir os que eram dentro de portas. E depois um terceiro mundo, o das touradas, onde se misturavam em terreno neutro.
A linguagem do romance é bastante explícita. Eu ainda sou de uma geração que começou a ler às escondidas a literatura mais livre: lembro-me da Nana, do Zola, do Primo Basílio e de algumas leituras mais ousadas, como Lady Chatterley’s Lover, de D. H. Lawrence. Mais tarde, fui lendo coisas mais audaciosas – os Trópicos, de Henry Miller, e o Sade quase todo, que fui comprando nas idas a Paris. Pelas boas e más razões não vou comparar a linguagem do Fado da Severa ao Miller ou ao Sade, mas as cenas de alcova e a carnalidade de tudo, o naturalismo rabelaisiano das tabernas e dos bordéis, reflectem o que seria uma boémia à portuguesa, numa espécie de identidade nacional taurino-fadista que sempre se quis identificar com a cultura reaccionária, embora fosse comum às direitas e às esquerdas vadias e tradicionais.
De qualquer modo, com mais ou com menos sexo explícito, a história da Severa está bem contada, o livro lê-se num voltar de páginas acelerado, a reconstituição do tempo, dos lugares e das figuras típicas de uma certa Lisboa é viva e fiel, as possíveis origens africanas do fado, que então “se batia”, e a sua passagem das tabernas para os salões é interessante e a ficcionista seguiu as regras essenciais do romance histórico, retratando os alvores do Estado constitucional liberal, a oligarquia aristocrática do tempo, os costumes e as classes sociais.
É mais um romance histórico sobre uma mulher – e sobre Lisboa, e sobre Portugal –, bem escrito, bem fundamentado, bem estruturado, que, além de entreter, dá um excelente retrato do tempo e do modo da sociedade lisboeta dos finais da primeira metade do século XIX, do Portugal do liberalismo convulso nas vésperas da Regeneração.