Violação do princípios do Estado de direito e do princípio da proteção de confiança, alteração retroativa e injustificada na lei. São alguns dos argumentos jurídicos que o setor das renováveis vai usar contra um pedido de devolução dos apoios públicos concedidos no passado, um valor que, no limite, pode chegar aos 300 milhões de euros, segundo auditoria revelada pelo Observador.
A APREN (Associação Portuguesa das Empresas Renováveis) e os seus associados têm cinco pareceres de escritórios de advogados, um dos quais de uma empresa alemã especializada no setor da energia, adiantou ao Observador o presidente da associação. António Sá da Costa sublinha que as empresas produtoras seguiram sempre todas as regras legais e que até os prazos legais para avaliação de alguns programas comunitários, ao abrigo dos quais foram atribuídos os subsídios agora em causa. Lembrando que há apoios dados há mais de 25 anos, o responsável espera que haja bom senso do lado dos políticos. E garante que as empresas que vierem a ser apanhadas, “caso esta iniciativa temerária vier a ter desenvolvimento, não deixarão de reagir junto de competentes instâncias nacionais e comunitárias para defesa dos seus direitos legítimos”.
São mensagens que têm como destinatário o Ministério do Ambiente e Transição energética, que herdou a “batatata quente” e, em particular, o novo secretário de Estado da Energia, João Galamba, que tutela a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). Foi a DGEG que recebeu a auditoria da Inspeção-Geral de Finanças que quantifica em 300 milhões de euros o valor limite dos apoios acumulados com tarifas feed-in (acima do preço de mercado) que terão de ser devolvidos ao sistema por parte dos produtores do regime especial. Isto segundo uma disposição legal aprovada pelo antecessor no cargo, Jorge Seguro Sanches, em 2016, mas que não foi ainda executada.
A auditoria da IGF faz o levantamento dos produtores — e não estamos apenas a falar de parques eólicos ou centrais solares, há também unidades de cogeração e mini-hídricas — dos apoios atribuídos ao longo de mais de 20 anos, mas chuta o apuramento do montante final a exigir a estas empresas para a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG). E num documento em que reconhece que existiram condicionamentos à realização desta avaliação, nomeadamente ao nível da conciliação entre os dados iniciais dados pela DGEG e os fornecidos por outras fontes, a IGF também realça que a sua avaliação “não abrangeu a apreciação dos pressupostos jurídicos presentes na qualificação como dupla subsidiação dos apoios concedidos”.
Renováveis. 150 produtores receberam apoio público de 300 milhões e terão de devolver parte
Apesar das ressalvas, a auditoria identifica 246 projetos, de 156 produtores, e os apoios acumulados com as tarifas feed-in ao longo de mais de 20 anos para cada um, o que totaliza os tais 300 milhões de euros. E considera que a DGEG estará agora em condições de calcular o valor a apurar a favor do sistema elétrico, e que será inferior a este máximo, sobretudo se for usada uma metodologia com maior “racionalidade económica” — e menos penalizadora para os produtores — que introduza na equação o retorno do investimento realizado pelos promotores.
A ausência de uma fundamentação jurídica para esta fatura que em alguns casos pode chegar com muitos anos de atraso é o principal argumento dos produtores renováveis. De acordo com os cinco pareceres pedidos desde final de 2016 — o último chegado em setembro deste ano —, são várias as fragilidades jurídicas apontadas à portaria publicada em outubro de 2016 que determinava a devolução de 140 milhões de euros ao sistema elétrico, e cuja sustentação — a proibição da acumulação das tarifas garantidas com outros apoios públicos — só veio a ser consagrada na lei com a publicação da lei do Orçamento do Estado para 2017. Eis os principais argumentos, elencados nos pareceres, de acordo informação dada pelo presidente da APREN.
- A criação de novo conceito jurídico de cúmulo de apoios públicos, que junta as remunerações fixadas por lei, qualificando-as como ilícitas, tal como a sua aplicação — com efeito retroativos a situações em que houve apoios financeiros — “são materialmente inconstitucionais”. Isto por, no entender da APREN, “violarem o princípio do Estado de direito democrático, sobretudo ao infringir os subprincípios dele decorrentes, da justiça — artigos 1 e 266 — da segurança da proteção da confiança e da boa-fé, havendo agora uma clara contradição com uma posição anteriormente assumida”.
- As portarias publicadas em 2016 e em 2017 (onde se dá instruções à DGEG para pedir a devolução desses apoios duplos) “violam o princípio da proteção da confiança, insito no Estado de Direito Democrático (art. 2º da Constituição) ao declarar retroativamente a ilicitude de uma realidade de que fazem parte programas comunitários de apoios executados há mais de de dez anos e que, aquando da sua execução, permitiam a cumulação de incentivos”. Neste ponto é ainda sublinhado que o Estado português reconheceu junto da Comissão Europeia a existência dessas ajudas de Estado, assim como a legalidade da cumulação de um regime especial de remuneração (mais vantajoso) com apoios financeiros públicos.
- A alteração retroativa e injustificada da lei, que visa a devolução dos montantes em causa, corresponde a uma intervenção ablativa do direito de propriedade protegido na Constituição.
- As orientações de política energética quando os projetos foram executados nunca impediram a cumulação de apoios públicos financeiros, além de terem defendido a necessidade de criar incentivos financeiros à produção renovável para acelerar a sua execução. E aqui é recordada uma apresentação feita pelo ex-ministro da Economia Carlos Tavares, em maio de 2004.
- Os apoios foram concretizados através da assinatura de contratos com entidades públicas, como o IAPMEI, e escrutinados pela Direção-Geral de Energia e Geologia. Ou seja, foram concedidos e fiscalizados por mais do que uma entidade pública.
- Ainda que a revisão retroativa da lei fosse legal, seria necessário cumprir o previsto no regulamento comunitário sobre fundos comunitários, o qual estabelece um prazo de cinco anos após a concessão dos incentivos para a sua reapreciação e eventual restituição.
Sá da Costa conclui assim que “a alegada acumulação indevida de apoios à produção em regime especial não tem sustentação legal, contratual ou de facto”. E considera ainda que a iniciativa para essa restituição “não passa de cosmética política, que usa uma matéria complexa e de difícil perceção pelo público em geral, para reforço de um processo de intenções que visa degradar a abertura de um setor à concorrência”.