“Cinco dias por semana durante seis anos, entre os sete e os 13 anos, o meu pai e a minha mãe levavam-me de Viseu para o Porto. Era uma caminhada. Ida e volta, eram cerca de 150 milhas [n.d.r. cerca de 240 quilómetros]. Todos os dias. O Porto era onde queria ir em busca dos meus sonhos em ser um jogador profissional de futebol. Seis anos depois, tinha feito aquela viagem tantas vezes que tinha todas as curvas e semáforos memorizados. Quando fiz 13 anos, fizemos isso mais uma vez mas nessa altura não haveria regresso – pelo menos não nos tempos próximos. Ia para lá para estar no FC Porto a tempo inteiro. Lembro-me de ter saído do carro, agarrar a mão do meu pai e caminhar até ao quarto onde vivia com um grupo de outros jogadores. Sentámo-nos no quarto – e fartei-me de chorar. Disse: ‘Papá… Papá, não quero ficar, quero ir para casa. Não consigo fazer isto’. Acho que o meu pai percebeu o peso da decisão que teríamos de tomar. Olhou à volta do quarto, conteve a respiração e olhou-me nos olhos: ‘OK, mas hoje ficas. Se sentirmos o mesmo amanhã, ou no dia seguinte, ou no dia a seguir a esse, podes ligar-me e venho buscar-te. Trago-te para casa mas nunca mais te vou trazer aqui, vai ser definitivo. Disse-me com um tom de voz que não conhecia. Era algo sério. Despertou um clique em mim – tinha de estar ali”.
O jogo do empurra onde o mais desequilibrado nunca caiu (a crónica do Benfica-FC Porto)
É desta forma que João Félix, num texto com o título “Lembrem-se de mim” publicado no The Players’ Tribune, recorda os primeiros tempos como jogador no clube que defrontava esta noite em Braga pela primeira vez nos seniores, a contar para a meia-final da Taça da Liga. Nas camadas jovens, incluindo equipa B, o avançado foi sempre uma espécie de quebra-cabeças constante contra o equipamento que um dia utilizou quando era mais pequeno e franzino. No total, marcou seis golos em clássicos. E só se podiam cruzar nas fases finais dos Campeonatos, o que mostra bem a preponderância do jogador nesses encontros.
“Adoro ter a bola e jogar um futebol agradável. É quando estou a ser eu próprio. Mas nas equipas de formação do FC Porto isso nem sempre aconteceu. Não acreditavam em mim tanto quanto eu acreditava, nem confiavam em mim no campo. Criticavam-me pelo tamanho. Tiraram-me do campo e a minha bola. No FC Porto, perdi a alegria. Em Lisboa, encontrei-a novamente. Levou algum tempo, alguma confiança. Tinha de provar a mim mesmo nas equipas jovens outra vez. Mas o Benfica tem um estilo de futebol bonito – acreditam no todo, na formação, na ideia de equipa antes do individual”, acrescentou a propósito da mudança feita em 2015, depois de uma passagem ainda que teve pelo Padroense por cedência dos azuis e brancos.
No ano passado, João Félix estava ainda na equipa B, com uma passagem pelos juniores onde se sagrou campeão. Lá fora, quando jogava era destaque. Fosse na Youth League (apesar dos resultados menos conseguidos), fosse na Premier League International Cup, fosse nas seleções nacionais mais jovens. Esta temporada, entrou para o lugar de Cervi a dois minutos do final do jogo no Bessa frente ao Boavista (2-0) e voltou a render o argentino aos 79′ com os gregos do PAOK, na primeira mão do playoff de apuramento para a Liga dos Campeões. Quatro dias depois, num agosto que dificilmente esquecerá, foi opção de Rui Vitória no dérbi com o Sporting na Luz aos 71′ quando os encarnados estavam em desvantagem. E deixou marca.
“Na segunda parte, estávamos a perder por 1-0 e entrei como substituto. O barulho… A tensão era imensa. A cinco minutos do final, estávamos a pressionar. Não sou um goleador mas estava a tentar chegar ao ataque. Aos 86 minutos, Rafa Silva, um dos nossos médios, fez uma boa corrida pelo flanco direita e estava a olhar para o cruzamento. Estava ao segundo poste do género ‘Meu, acredita em mim, acredita em mim. Dá-me a bola’. E ele conseguiu um grande cruzamento. Eu fiz a parte fácil. 1-1. Mal me lembro do que aconteceu a seguir. Recordo-me do speaker do estádio a ir ao microfone e a dizer ‘Golo marcado pelo número 79, João…’, depois a fazer a pausa e toda assistência a dizer ‘Félix!’. Foi o momento mais espetacular da minha vida, de certeza. O Benfica acreditou em mim e eu espero continuar a retribuir essa confiança”, escreveu.
Por causa de uma entorse no jogo frente ao Desp. Aves, onde foi titular e marcou no triunfo por 2-0, João Félix falhou o jogo na Luz com o FC Porto, a contar para o Campeonato (1-0, golo de Seferovic); esta noite, jogou o seu primeiro clássico. E logo como titular, num esquema que potencia as suas características e numa altura em que a grande referência Jonas continua de fora, já depois de ter renovado contrato até 2023 com uma cláusula de rescisão de 120 milhões de euros. “É um valor um bocado alto, que traz mais responsabilidade, mas é só um número. Se eu não fizer nada bem lá dentro, isso da cláusula é tanga. Primeiro tenho de fazer alguma coisa dentro de campo, para depois a cláusula ter algum sentido. Pressão? Jogar futebol não causa pressão nenhuma. Fazemos aquilo de que gostamos e, quando assim é, não há pressão”, contou à Visão na semana passada.
João Félix pode ter cara de miúdo (que ainda é) mas de estreias no Benfica percebe ele
No final, acabou por ser uma estreia sem grandes motivos para recordações. O avançado ainda teve duas boas oportunidades para marcar mas não só ficou em branco como o Benfica perdeu a hipótese de chegar à final da Taça da Liga. E assim ficou adiado mais um parágrafo de um texto que ainda deverá muito para acrescentar ao longo da carreira.