Enviado especial ao Vaticano
O Papa continua esta sexta-feira reunido com 190 líderes católicos de todo o mundo para debater os abusos sexuais na Igreja. Depois de na quinta-feira Francisco ter distribuído aos bispos e superiores religiosos uma lista de 21 pontos que devem ser seguidos para lidar com o problema — que as associações de vítimas presentes em Roma consideraram não corresponder a uma política de tolerância zero por serem “pouco concretas” —, os participantes da reunião, incluindo o cardeal português D. Manuel Clemente, ouviram o cardeal colombiano Rubén Salazar Gómez dizer-lhes: “Os primeiros inimigos estão entre nós, entre os bispos e os padres”.
Na terceira palestra do primeiro dia da cimeira histórica, Salazar Gómez, arcebispo de Bogotá, apelou à necessidade de definir quais são as responsabilidades dos bispos, num discurso dedicado à “Igreja em tempos de crise”, no qual atacou duramente o clericalismo que está na origem de muitos episódios de ocultação dos abusos sexuais.
“Uma breve análise do que aconteceu mostra-nos que isto não é apenas uma questão relacionada com desvios sexuais ou patologias dos abusadores, mas há também uma raiz mais profunda. É a distorção do significa do ministério, que se converte num meio de impor a força, de violar a consciência e o corpo dos mais fracos. Isto tem um nome: clericalismo“, argumentou o cardeal colombiano em frente a 114 presidentes de conferências episcopais de todo o mundo e outros superiores religiosos católicos.
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O clericalismo, defendeu, encontra-se também na forma como a Igreja lidou com o problema durante anos. “Encontramos um entendimento errado de como exercer o ministério que levou a graves erros de autoridade que aumentaram a gravidade da crise. Isto tem um nome: clericalismo”, repetiu. “É preciso desmascarar o clericalismo subjacente e provocar uma mudança de mentalidade. Em termos mais preciso, esta mudança tem um nome: conversão.”
O cardeal colombiano usou palavras duras para argumentar que a Igreja precisa de limpar a casa antes de procurar responsáveis fora da estrutura. “Temos de reconhecer esta crise na sua profundidade completa: perceber que o dano não foi feito por pessoas exteriores à Igreja, mas que os primeiros inimigos estão entre nós, entre nós bispos, padres e pessoas consagradas que não estivemos à altura da nossa vocação. Temos de reconhecer que o inimigo é interno.”
Salazar Gómez pediu ainda aos bispos e à hierarquia da Igreja para não atacarem os meios de comunicação que expuseram as histórias das vítimas e as condutas erradas da Igreja. “Temos de reconhecer que a imprensa, os media, e as redes sociais têm sido muito importantes para nos ajudar a enfrentar a crise em vez de a evitarmos. Os meios de comunicação fazem um trabalho valioso neste aspeto, um trabalho que tem de ser apoiado”, afirmou o cardeal.
“Temos de ter a humildade de admitir que cometemos erros”.
Já na manhã desta sexta-feira, o dia começou com a intervenção do cardeal indiano Oswald Gracias, que pediu aos bispos a “humildade de admitir” os erros cometidos. “O abuso sexual na Igreja Católica e a subsequente falha em lidar com ele de forma aberta, responsável e eficaz causou uma crise multifacetada que afetou e feriu profundamente a Igreja“, afirmou Oswald Gracias, arcebispo de Bombaim e primeiro orador da manhã no segundo dia da cimeira histórica que o Papa Francisco convocou para pedir ações concretas à hierarquia católica para acabar com os abusos sexuais na Igreja.
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O cardeal indiano, que foi um dos organizadores desta cimeira, falou sobre a colegialidade dos bispos para lembrar que a responsabilidade pelos abusos sexuais deve ser assumida por toda a Igreja e não apenas pelos bispos das regiões do mundo onde o problema foi maior. “Apesar de a experiência do abuso parecer estar dramaticamente presente em certas partes do mundo, não é um fenómeno limitado. De facto, toda a Igreja tem de olhar de forma honesta e levar a cabo um discernimento rigoroso, para depois agir de forma decisiva para prevenir que os abusos voltem a ocorrer no futuro e para fazer o possível para ajudar as vítimas a recuperar”, defendeu.
“Ao convidar os presidentes das conferências episcopais nacionais, o Papa está a assinalar como é que a Igreja deve lidar com a crise. Para ele e para os que aqui estão reunidos com ele, terá de ser um caminho de colegialidade e de sinodalidade”, sublinhou Oswald Gracias, referindo-se à tradição da Igreja Católica de reunir os bispos, considerados os sucessores dos apóstolos de Jesus Cristo, à volta do Papa Francisco, sucessor de S. Pedro, para definir o rumo da Igreja universal.
“Nenhum bispo devia dizer para si próprio: ‘Eu enfrento estes problemas sozinho’. Porque pertencemos a um colégio de bispos em união com o Santo Padre, todos partilhamos responsabilidade”, disse, acrescentando: “Nenhum bispo devia dizer para si próprio: ‘Este problema dos abusos na Igreja não me diz respeito, porque as coisas são diferentes na minha parte do mundo’. Todos somos responsáveis por toda a Igreja“. “Temos de nos arrepender — e fazê-lo juntos, de forma colegial —, porque falhámos ao longo do caminho.”
Também na manhã desta sexta-feira falou o cardeal norte-americano Blase Cupich, arcebispo de Chicago, que pediu aos bispos que lessem e relessem a carta apostólica Come una madre amorevole (Como uma mãe amorosa), escrita pelo Papa Francisco em 2018, para defender que os bispos podem ser expulsos se ocultarem casos de abusos sexuais. “Um bispo, um eparca ou um superior maior de um instituto religioso ou de uma sociedade de vida apostólica de direito pontifício pode ser dispensado se a sua falta de ação neste campo for grave, mesmo quando não há uma culpa intencional grave da sua parte“, defendeu o cardeal.
O Papa Francisco convocou a reunião, inédita, após um dos piores anos de sempre para a Igreja no que diz respeito aos abusos sexuais, sobretudo nos Estados Unidos, onde pela primeira vez um cardeal foi expulso do sacerdócio por ter abusado de crianças. Os líderes católicos estão reunidos até domingo para debater a responsabilidade da Igreja na prevenção dos abusos e no apoio às vítimas.