Aquela semana estava a ser “fatídica” para Portugal nas palavras do antigo chefe de gabinete do ministro da Defesa, Azeredo Lopes. A ministra da Administração Interna tinha apresentado a demissão, a agenda estava apertada e o ministro estava fora do País. Ainda assim, o agora tenente-general, António Martins Pereira, aceitou receber o diretor da Polícia Judiciária Militar (PJM) e o porta-voz Major Brazão dois dias após a recuperação do material de guerra furtado em Tancos. Um tema visto no gabinete como “muito importante”.

Martins Pereira recorda-se que, naquele dia 20 de outubro de 2017, ambos chegaram acompanhados por uma capitão. O tenente-general pediu a todos que saíssem da sala e mandou os dois responsáveis sentarem-se no sofá em frente ao que ele próprio se sentou. Na mesa do centro, Luís Vieira e Vasco Brazão colocaram dois documentos que saltariam, depois, para as páginas do jornal como sendo um “memorando”. Iriam servir de apoio à conversa.

Da memória do encontro, o militar descreve que era a primeira vez que via o major Vasco Brazão ao vivo. Vinha vestido de forma “desportiva”, de ténis, “embora não viesse mal vestido”, como constatou perante os deputados que compõe a comissão parlamentar e inquérito. Bem diferente da forma como se apresentava na televisão, onde já o tinha visto várias vezes. Já o diretor “vinha mais formal”, como hábito. Nenhum aceitou beber café.

“O tal fabuloso, famigerado documento apelidado de memorando é um documento que não é timbrado, não é assinado, que me parece feito com alguma pressa”, começou por descrever.

Esse documento “era constituído por duas peças”. Uma fita do tempo do que se teria passado naquela madrugada de 18 de outubro, quando os militares recuperaram o material de guerra na Chamusca. E o tal memorando, em papel não timbrado, sem data e sem assinatura, que assim seria chamado depois de ter sido parcialmente reproduzido pelo jornal Expresso. E cujo nome é agora recusado pelo próprio ex-diretor da PJM.

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Ao contrário do que contou o major Vasco Brazão, no entanto, naquele encontro nenhum deles falou na alegada investigação paralela que decorreu à margem da investigação da Judiciária, nem da encenação da operação. Segundo Martins Pereira, aquela reunião serviu apenas para mostrar que a tensão e a crispação com a Polícia Judiciária agravara, porque eles não comunicaram a tempo a operação de recuperação de armas. “Fiquei com a ideia que eles estavam um pouco apavorados do que podia acontecer”, diz.

O braço direito do ex-ministro da Defesa acabou por recuperar as notas que tirou num caderno durante esse encontro:

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“Foi isto que apontei, por isso a reunião deve ter sido curta”, concluiu.

Quanto ao tal memorando, o oficial explicou que “não era um relatório de operações”. Não tinha sequer “um relacional cronológico”, fazia apenas referência ao informador que lhes tinha indicado onde estavam as armas. Ele ainda questionou porque é que os operacionais tiveram que ir fazer uma chamada anónima à Margem Sul para desencadear a operação, mas acabou por perceber que era uma exigência do próprio informador — o tal Fechaduras (também arguido no processo-crime). “Entendi a operação como normal”, garante. E recomendou-lhes que falassem com o coronel Estalagem, que seria o oficial de ligação com a Policia Judiciária civil, na tentativa de serenar os ânimos.

O que já não entendeu como normal foi o pedido do então diretor e do seu porta-voz — que ficou responsável pela investigação ao furto em Tancos. “Pediram-me para ler os documentos e para os destruir de seguida”, recorda.”Já ando aqui há muitos anos. Sou tenente-general… já comandei muitas coisas”, disse, para justificar o que diria de seguida. Naquela altura, segundo recorda, o tenente-general tirou uma fotografia aos documentos e guardou-os numa pasta. Já mais tarde, ainda pensou que os tinha perdido e até duvidou se, de facto, os teria destruído. Até que se lembrou da imagem captada por telemóvel e acabou por recuperá-los. Os deputados quiseram, então, saber se os tinha entregue ao ministro da Defesa.

“Não me lembro se mandei ao senhor ministro, ele diz que não viu, eu confio no senhor ministro. Se ele diz que não leu”, respondeu.

Com a resposta, afastou o ministro do conhecimento da operação paralela desencadeada pelos militares da PJM, mais uma vez contrariando a versão do major Brazão. Aliás, o próprio chefe de gabinete acabou por entregar essa cópia em outubro ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal, após a detenção de vários militares e do próprio diretor da PJM, para mostrar que dela não se depreendia que o Governo fora informado de qualquer ilegalidade. A falha de memória foi se chegou ou não a entregar esse documento ao próprio ministro da Defesa, Azeredo Lopes, que acabaria a pedir a demissão um ano depois.

Tanto Vasco Brazão como o ex-diretor da PJM, ambos arguidos, garantiram na comissão que, nesse encontro com o chefe de gabinete, este telefonou ao ministro da Defesa e que Luís Vieira, diretor da PJM, acabaria a ler-lhe o documento ao telefone, via Whatsapp — o memorando que na versão de Vasco Brazão denunciava a encenação da operação que levou ao achamento das armas.

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Martins Pereira, que foi ouvido durante quase cinco horas, não se lembra desse telefonema, embora lhe pareça “plausível”, mas com uma ressalva. “Seguramente não houve contagem de história, porque eu não o deixaria fazer, não foi feita a mim, ali também não foi”, garante. Reforçando, mais uma vez, que daquele memorando não se depreende que houve uma operação paralela e que só ouviu essa expressão da boca do major Brazão quando, há dias, prestou depoimento aos deputados.

O oficial corroborou a entrega de um outro memorando — que o diretor da PJM informou ter feito e entregue a 4 de agosto, com a sua visão legal sobre o facto da investigação dever ser da competência da PJM e não da PJ civil. Esse documento, confirma, foi entregue pessoalmente ao ministro a Defesa e tem a data de um parecer sobre as competências da PJM assinado nesse mesmo dia pelo ex-ministro Rui Pereira. Embora não lhe faça referência (ao contrário do que sustentou o major Brazão).

Esclarecimento de Rui Pereira

Também confirmou que, dias após o furto a Tancos, numa visita oficial do presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, o diretor da PJM deixou bem clara a sua tristeza sobre o facto de a investigação poder cair nas mãos da polícia civil. Só não corroborou o ex-diretor da PJM na resposta que ouviu do próprio Presidente — e que ele próprio já negou publicamente — de que ele falaria com a procuradora-geral da República Joana Marques Vidal e que o ministro da Defesa falaria com a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem.

“Sinceramente não consigo identificar se foram ações que ficaram definidas assim e dessa forma, mas estava muito barulho,  muito calor, estava muita gente na sala, não me apercebi. Sei que isso foi mencionado, que foi abordada a questão da competência da PGR para fazer isso. Foi firmado que era uma matéria sensível, mas não fiquei com a ideia que ficassem essas tarefas tão definidas”, esclareceu.

Afinal quem fez o comunicado do achamento?

Naquela manhã do dia 18 de outubro, depois de terem sido recuperadas as armas furtadas do paiol de Tancos, o diretor da Polícia Judiciária Militar ligou pelas 9h00 ao chefe de gabinete. Martins Pereira ligou de imediato a Azeredo Lopes que terá telefonado a Luís Vieira.

“Cerca de uma hora e meia depois estávamos todos juntos”, recorda. Naquela reunião discutiu-se como se faria a informação sobre a operação. O diretor da PJM disse na comissão que o ministro, satisfeito com a descoberta, lhe propôs que fizesse um comunicado e até disponibilizou a ajuda de um assessor.

Na versão de Martins Pereira o diálogo foi diferente. “O diretor sugeriu que fosse ministro a emitir comunicado. Mas nós dissemos que o comunicado só podia ser enviado pela PGR, pela PJ ou pela PJM. Ficou decidido que seria a PJM e daríamos apoio técnico se fosse necessário”, afirma o chefe de gabinete.

Esse comunicado chegou às redações a meio da manhã e só quando foi publicado na comunicação social chegou ao conhecimento da Procuradoria Geral da República, que era afinal quem conduzia a investigação. E foi nesse momento que Joana Marques Vidal telefonou ao ministro da Defesa dando-lhe conta do que estava a acontecer. “Nesse momento ficámos a saber que havia irregularidades”, admitiu o chefe de gabinete. Ainda assim, dois dias depois na reunião com o responsável pela PJM, Martins Pereira associou sempre essas “irregularidades” a uma crispação entre polícias. O resto “viria à posteriori”, depreendeu do telefonema. “Não valorei”. Também não pensou em entregar o tal memorando à Procuradoria. “Teoricamente eu nem devia ter aqueles documentos. Mas como já aqui ando há mais de 40 anos guardei-os. Senão hoje …”.

O chefe de gabinete do ex-ministro Azeredo Lopes, que chegou à comissão parlamentar de inquérito ao caso de Tancos acompanhado por um advogado, alertou que, apesar de não ser arguido, poderia estar limitado pelo segredo de justiça por, em março deste ano, ter ido prestar declarações a seu pedido no âmbito do processo-crime. E foi nisso que se escudou quando lhe pediram a cópia do memorando entregue a 20 de outubro de 2017 — o que causou alguma celeuma entre os deputados.

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