Começam a esgotar-se as audições na comissão parlamentar de inquérito sobre a Caixa Geral de Depósitos sem que se resolva o mistério. Mais de duas dezenas de antigos responsáveis do banco e do supervisor (Banco de Portugal) já foram ouvidos e tarda em surgir uma resposta simples às perguntas: afinal quem é que defendeu os muitos créditos ruinosos que geraram imparidades de centenas de milhões de euros no banco público? Os sucessivos presidentes e vice-presidentes da CGD? Os elementos do Conselho Alargado de Crédito? As direções de risco? Os administradores?

Bandeira contraria ex-diretor da Caixa. “Quem apresenta as operações de crédito, defende-as”

Esta quarta-feira foi o antigo vice-presidente da CGD Francisco Bandeira quem se sentou em frente aos deputados e a resposta foi um pouco mais clara. Quem apresenta os projetos de empréstimos ao conselho alargado de crédito é, do ponto de vista de Bandeira, quem os defende. E quem as aprova para apresentação no conselho de crédito é o administrador com o pelouro. Esta foi a resposta dada quando foi confrontado com a afirmação do ex-diretor de grandes empresas, José Pedro Cabral dos Santos, de que apresentou o projeto de financiar o comendador para a compra de ações ao BCP ao conselho de crédito, mas não o defendeu. O administrador com o pelouro do financiamento ao empresário madeirense seria Maldonado Gonelha.

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Diretor de Grandes Empresas da CGD. “Berardo não teve tratamento privilegiado”

A pergunta surgiu do deputada do PCP Paulo Sá e sintetizou dúvidas recorrentes ao longo das várias horas de audições. Esta quarta-feira somaram-se mais cinco horas de pergunta e resposta. “O antigo Diretor de Grandes Empresas Cabral dos Santos frisou que apresentava as operações ao conselho alargado de crédito, mas não as defendia. Se a área comercial não as defendia e o risco também não, então quem as defendia? Ninguém. Era o Senhor?”.

“Fiquei estupefacto com essa afirmação”, respondeu, à defesa, Francisco Bandeira, antes de prosseguir. “Para mim, quem apresenta as operações é porque as defende e acredita nelas. E quem pode dar luz verde é o administrador do pelouro”. “Está a desmentir Cabral dos Santos?”, insistiu Paulo Sá.

“Não disse isso. (…) Quem tinha de ir a jogo era a pessoa que tinha o pelouro. As operações não são filhas de pai incógnito”, salientou o antigo responsável.

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“Preso por ter cão e preso por não ter”. Património de Berardo justifica conceder o crédito, mas também não executar.

Filhas de pai incógnito ou não, as operações de concessão de crédito têm outras características igualmente graves, como notou a deputada Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda. Foram fáceis de conceber, mas muito difíceis de extinguir. Tão difíceis de extinguir que algumas ainda constam da coluna das perdas da CGD identificada na auditoria da EY. E na audição desta quarta-feira estas operações até motivaram um desabafo amargo.

“É o que temos visto nesta comissão: os responsáveis da Caixa invocam o património [de Joe Berardo] para justificar a concessão inicial dos créditos e depois invocam o mesmo património como justificação para não o executar”. A deputada repisava um ponto importante para se perceber a história dos muitos milhões de euros de imparidades que a Caixa teve de registar com alguns créditos ruinosos, os de Joe Berardo em particular.

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Tal como foi identificado na auditoria da EY aos atos de gestão da Caixa entre 2000 e 2015, quando a CGD emprestou quase 400 milhões de euros ao empresário madeirense (através da sua Fundação Berardo e da empresa Metalgest, entre 2006 e 2007) não lhe pediu, inicialmente, mais do que uma promessa de penhor sobre as ações do BCP que iriam ser compradas com o montante emprestado. A justificação para ter aceitado tão curtas garantias (que viriam a revelar-se mais do que insuficientes) foram quase sempre iguais: o vasto património do empresário, entre participações noutras empresas, propriedades e uma coleção de arte moderna avaliada em mais de 315 milhões de euros.

“Mas o senhor Jose Berardo entrou em incumprimento em finais de 2008 e os senhores nunca executaram”, acusou Mariana Mortágua. E dirigindo-se diretamente a Francisco Bandeira: “Por que razão não o fez em 2008? Por que razão não o fez em 2010, quando a Fundação ainda tinha património para executar?”

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Bandeira respondeu como pôde. Primeiro referiu que a banca encontrou “uma solução alternativa de reforço de garantias reais que permitiu a reestruturação do empréstimo”. Uma resposta que remete para o acordo tripartido da Caixa com o BES e o BCP que deu o penhor dos títulos da dona das obras de arte, a Associação Coleção Berardo. Mas não disse é que esse penhor, por ação de Berardo e do seu advogado, nunca permitiu aos bancos qualquer tipo de controlo sobre a associação, nem sobre a coleção de arte. Logo, até ao momento não valeu de nada. Já lá iremos.

Mas perante a insistência da deputada, Francisco Bandeira pôs outro argumento em cima da mesa, já utilizado por outros depoentes. A execução da garantia sobre as ações do BCP que a Caixa tinha ajudado a comprar teriam um enorme efeito negativo sobre o sistema financeiro português. Porquê? Porque se o preço das ações do BCP já estavam em queda abrupta, a execução das ações de Berardo por parte da Caixa só iria acelerar essa queda, com efeitos ainda mais imprevisíveis.

Era aqui que Mariana Mortágua queria chegar: o património de Berardo é justificação para conceder o empréstimo, mas também é justificação para não executar. “Há sempre uma boa razão para não executar património. A verdade é que nunca se executou enquanto havia património para executar”, desabafou.

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Resultado? Até aos dias de hoje, a Caixa Geral de Depósitos ainda exige a Joe Berardo quase 400 milhões de euros. E na sua audição, a 10 de abril, o empresário madeirense ainda remeteu para a própria administração da CGD essas perdas: “o contrato permitia à Caixa vender as ações, se eles não o fizeram…”

A questão da garantia obtida sobre os títulos de participação da dona da Coleção Berardo haveria de motivar algumas outras respostas interessantes. Durante a negociação do acordo com os bancos que conduziu ao penhor sobre os títulos da dona da coleção Berardo, e que Bandeira classifica de garantia real, alguém levantou a questão de esse penhor não ser sobre a coleção de arte, mas sim sobre os títulos da associação?

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A pergunta foi da deputada do CDS-PP Cecília Meireles e Francisco Bandeira confirmou algo que é novo: foi uma entidade externa que assessorou os três bancos nesse negócio. Portanto Francisco Bandeira confirma que foi um escritório de advogados que tratou da parte jurídica, mas escusa-se a identificar qual. Prefere não identificar porque não tem a certeza. Qualquer que tenha sido, o advogado de Joe Berardo, André Luiz Gomes, jogou melhor e conseguiu blindar a coleção de arte, deixando-o a salvo de eventuais execuções. Pelo menos até ao momento.

Empréstimo a Berardo? “Diziam que o homem tinha dinheiro, não fui lá contar”

Quanto à concessão inicial dos créditos a Joe Berardo, Francisco Bandeira teve sempre uma postura cautelosa ao longo de toda a audição. O que o levou a aprovar o crédito original de 50 milhões de euros à Metalgest em 2006?, perguntou a certa altura a deputada do Bloco.

“Fiquei provavelmente convencido com o que ouvi na altura, mas não recordo qual era o racional”, disse Francisco Bandeira, admitindo que terá sido um conjunto de coisas que não consegue reproduzir, entre os quais a “situação financeira do acionista e a capacidade de gerar resultados extraordinários na bolsa”. Mais uma vez, Bandeira remeteu a responsabilidade pelo negócio para o diretor de crédito de grandes empresas, José Pedro Cabral dos Santos, e para o administrador que na altura tinha o pelouro, Maldonado Gonelha.

“Não quero estar a fazer exercício de contorcionismo” de memória, disse a certa altura o ex-vice-presidente, acabando por repetir motivos também invocados por Celeste Cardona à comissão de inquérito. “Diziam que o homem tinha dinheiro, não fui lá contar”.

Berardo – é sabido – pediu o dinheiro para comprar ações do BCP. Sobre isso, Francisco Bandeira disse nada saber, pelo menos inicialmente. Sobre a linha de financiamento de 350 milhões de euros aprovada em 2007, Bandeira disse que não sabia que era para comprar ações do banco na altura liderado por Jardim Gonçalves.

“Pelo menos para mim, não estava em causa o aumento de capital do BCP. (…) Era para financiar títulos cotados no PSI-20”, disse Francisco Bandeira ao longo da audição ao ser confrontado pelo deputado do PSD Duarte Marques. O deputado social-democrata aludia ao processo que ficou conhecido como o “Assalto ao BCP”, uma estratégia de alguns acionistas, entre os quais Joe Berardo, para ficarem a controlar o banco de Jardim Gonçalves, à época o segundo maior do sistema financeiro português.\

A história completa da ascensão, queda e prisão de Armando Vara

Quando o deputado do PCP Paulo Sá insistiu no tema, Francisco Bandeira alinhou na mesma resposta.  “Quem definiu a estratégia de financiar operações especulativas?”. “Foram os clientes quando nos solicitaram para fazer essas operações. Não foi uma estratégia”, disse Francisco Bandeira. Também sublinhou que nunca assistiu a nenhuma orientação do acionista (Estado) sobre esta matéria, nem nunca participou num conselho de administração em que tivesse tido a visão global da exposição ao banco A ou à empresa C.

Aliás, nas reuniões com o acionista Estado “nunca havia orientações micro”, disse. “As questões eram abordadas num almoço, ora nas Finanças, ora a quatro [com o ministro das Finanças Teixeira dos Santos, o secretário de Estado (não disse qual), o presidente da Caixa e o vice-presidente]. Tratávamos de assuntos de estratégia, de capital ou de necessidades de capital. Mas nunca, nunca nessas reuniões houve alguma orientação micro”.

Francisco Bandeira ainda foi confrontado com um despacho do então administrador da CGD Armando Vara no qual este delegou em si mesmo o poder de emprestar mais dinheiro para o projeto imobiliário de Vale do Lobo. Neste caso, Vara aumento o crédito de Vale do Lobo de 194 milhões para 200 milhões. É a deputada do PSD Conceição Bessa Ruão quem pergunta. “Quem redigia os despachos decididos em conselho de crédito?”.

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O habitual, explicou Francisco Bandeira, era ser o diretor do serviço — na altura Alexandre Santos — e depois era assinado pelo administrador. “E identifica a assinatura de Armando Vara?” Sim senhor. Bandeira valida que foi Armando Vara quem assinou o despacho, mas desvaloriza a situação. Era normal o procedimento ser este.