Foi a Caixa Geral de Depósitos que exigiu ser acionista da sociedade que comprou o resort de Vale do Lobo em 2006. Segundo afirmou o ex-acionista e presidente da sociedade, Diogo Gaspar Ferreira, esta foi uma das condições transmitidas para autorizar o financiamento a este negócio, num processo onde participou ativamente o então administrador da CGD, Armando Vara.

A condição de querer entrar no capital até apanhou de surpresa os acionistas privados que pediram o empréstimo para comprarem Vale do Lobo e deu origem a uma negociação, mas acabaram por aceitar ceder 25% do capital da sociedade, disse Gaspar Ferreira esta quinta-feira na comissão parlamentar de inquérito à recapitalização da Caixa.

Confrontado por Paulo Sá do Partido Comunista sobre as condições que a direção de risco do banco recomendou para esta transação — pela informação disponível este parecer ia exatamente no sentido de contrário de exigir a redução da exposição da Caixa à operação — afirmou desconhecer. Uma das condições que não foi cumprida era que os acionistas privados entrassem com mais capital próprio na transação financiada pela Caixa. Em resposta à deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, Gaspar Ferreira confirma que os acionistas privados não mostraram disponibilidade para o reforço desses capitais.

“Desde o princípio dissemos que tínhamos seis milhões de euros para entrar no negócio. A Caixa disse na primeira reunião que queriam o reforço de capitais próprios, mas dissemos que não tínhamos disponibilidade. (…) Eu não teria capacidade financeira para pôr mais.”

Em resposta a Cecília Meireles, do CDS, admitiu que a entrada da Caixa como acionista, que avançou logo com 28 milhões de euros em suprimentos (empréstimos acionistas), foi uma solução encontrada para reforçar os capitais próprios associados ao negócio. Mas de quem foi a ideia? Gaspar Ferreira não se recorda.

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A CGD não só financiou sozinha a compra de Vale do Lobo como ficou com 25% da sociedade gestora, através da Wolfpart, o que fez disparar a exposição ao incumprimento futuro da sociedade. Gaspar Ferreira defende, contudo,  que a Caixa colocou esta condição porque quis ter acesso e um maior controlo do negócio. Mas reconheceu  também que o banco acabou por ser “um acionista distante” que nem perante o incumprimento manifestou interesse em assumir a gestão do resort quando contratualmente o poderia fazer a partir de 2010.

Vara enviou dossiê preparado sobre operação de Vale do Lobo. Ex-diretor da Caixa diz que foi caso único

Administração da Caixa não quis visitar Vale do Lobo, nem assumir a gestão

Gaspar Ferreira classificou a Caixa como um “acionista ausente” em Vale do Lobo. E até contou ao deputado Duarte Marques do PSD que tentou convencer o banco do Estado a reunir lá o conselho de administração, em vão. “Acho estranho e acho triste. Se fossem visitar dariam mais valor ao resort”. O ex-presidente diz ainda que o banco público se afastou ainda mais depois de financiada a transação e confirma que chegou a contactar Armando Vara já depois de este ter ido para o BCP para tentar ter acesso à administração do acionista desinteressado.

As condições que descreveu como “duras” e “exigentes” para a concessão do empréstimo por parte da Caixa foram negociadas com Armando Vara, então administrador, e o diretor comercial do Sul, Alexandre Santos. Mas Diogo Gaspar Ferreira não sabe como é que o dossiê do projeto foi parar a Armando Vara. Quem contactou com a banca foi outro acionista, Rui Horta e Costa (que tinha trabalhado na banca de investimento). Segundo Gaspar Ferreira, Horta e Costa, um dos acionistas que comprou Vale do Lobo, terá falado com vários bancos — Santander, BCP e BES. Mas a CGD foi quem respondeu mais rápido e mostrou maior interesse, clarificou ao deputado Carlos Pereira do PS, e por isso prosseguiram negociações exclusivas com o banco público.

Gaspar Ferreira afirmou ainda que a Caixa não pediu um sindicato bancário, ao contrário da recomendação dada pela direção do risco. E afirma ainda que o modelo de negócio que não evoluiu. “A nossa estrutura não mudou nunca”. E desmente que não tenham dado nada em troca, referindo avales pessoais dados por todos os acionistas durante um ano para um financiamento de 180 milhões de euros.

“Tudo o que tinha pus em Vale do Lobo. Achei que era um grande negócio. Em 2010, não tínhamos dinheiro para pagar impostos e salários. Quando a Caixa emprestou 13 milhões de euros em 2010, já em pleno incumprimento, — uma parte da qual serviu para pagar à própria Caixa — , demos aval pessoal”. Mesmo não tendo dinheiro? (pergunta de Mariana Mortágua).

“Pode dar o aval, mesmo sem ter dinheiro. É uma forma da banca pressionar os investidores para os avisar que não vão desistir de receber.”

Mais tarde, de novo perante a insistência de Mariana Mortágua, Gaspar Ferreira também esclareceu, no entanto, que a Caixa nunca tentou executar os avales pessoais dados pelos administradores da Vale do Lobo, ele próprio e Horta e Costa.

Transferências para offshores, Mourinho e eficácia fiscal

A acusação da Operação Marquês e as suas ligações ao processo de Vale do Lobo são o “elefante na sala” desta audição do ex-presidente de gestora de Vale do Lobo. Mas quando as perguntas se aproximam do tema, Gaspar Ferreira não foge às respostas e quando Mariana Mortágua lhe perguntou pelos dois milhões de euros de uma transação feita com um investidor alemão que terão ido parar a uma conta de Joaquim Barroca na Suíça, garante que todos os valores que constam das escrituras de da venda de lotes em Vale do Lobo correspondem ao valor efetivo da transação.

E o Grupo Lena fez obras em Vale do Lobo? Sim, ganharam um dos concursos, mas ficaram chateados quando a empresa deixou de lhes poder pagar. Questionado ainda pele deputada do Bloco sobre a titularidade de algumas offshores e conta na Suíça. Gaspar Ferreira reconhece que montou uma operação de “eficácia fiscal” que deu origem a empresas na Holanda e Suíça, quando achava que iria receber dividendos pela sua participação acionista no resort. Uma dessas sociedades terá recebido o produto da venda de uma propriedade a José Mourinho. Essas offshores, cujo nome não consegue confirmar, foram montadas com a assessoria da advogada Ana Bruno que também chegou a representar alguns acionistas de Vale do Lobo, mas que nunca foi ela própria uma acionista.

As duas ofertas de compra que a Caixa terá recusado

Na intervenção inicial, Gaspar Ferreira revelou que a Caixa recusou duas propostas de fundos internacionais “credíveis” para comprar Vale do Lobo em 2013 e 2017.  Segundo o antigo presidente da sociedade do resort de luxo, em 2013 um fundo de investimento inglês (que mais tarde disse ser o Moorfield) fez uma proposta de 180 milhões de euros para comprar a dívida e capital da empresa à Caixa, mas esta recusou.

Em 2014, lançou um processo de venda, mas a empresas escolhida não teve capacidade para concretizar oferta. Já em 2017, o banco terá recusado nova proposta de um fundo internacional “credível” de 160 milhões de euros (o irlandês Kildare Partners), tendo optado por transferir o resort para um fundo de reestruturação, a ECS gerida por António de Sousa. Para Gaspar Ferreira, estas recusas são um sinal de que o banco do Estado esperava recuperar mais, mantendo o resort.

O ex-presidente de Vale do Lobo desmentiu a tese de que as perdas da Caixa em Vale do Lobo em 2006 tenham decorrido de uma “decisão errada de compra”, atirando as culpas para a maior crise económica e financeira, nomeadamente no setor imobiliário. Gaspar Ferreira diz que até 2009, quando as vendas de lotes foram superiores a 30 milhões de euros por ano, o resort cumpriu as condições do financiamento. E diz que foram pagos cerca de 100 milhões de euros em juros e capital ao banco, apesar de confirmar o incumprimento a partir de 2009, e que foram exigidos avales pessoais aos administradores.

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O ex-presidente sublinha ainda que o financiamento foi dado contra a hipoteca do património imobiliário que garantia 145% do valor financiado pela Caixa. O resort foi avaliado em 270 milhões de euros e comprado por 230 milhões de euros em 2006. O dinheiro veio todo do banco do Estado que no final de 2017 tinha um crédito sobre esta sociedade superior a 300 milhões de euros.

Diogo Gaspar Ferreira, que foi presidente da sociedade gestora de Vale do Lobo até final de 2017, é o primeiro “devedor” a ser ouvido na comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos. O empresário e os seus sócios foram financiados pelo banco público para comprar o resort em 2006, um dossiê que foi encaminhado para a direção comercial da Caixa pelo então administrador, Armando Vara.