Protestos contra a polémica lei da extradição para a China têm sido frutíferos em Hong Kong. Carrie Lam, chefe do executivo, suspendeu a proposta de lei por tempo indeterminado, mas não a retirou. A ser aprovada, quais serão os riscos reais para Macau, ex-colónia portuguesa? Em entrevista ao Observador, o advogado Jorge Menezes, há mais de 10 anos a exercer em Macau, diz que se esta lei for aprovada em Hong Kong, também irá ser lei em Macau.

Hong Kong, em 1997, e Macau, em 1999, passaram para administração chinesa, no âmbito de negociações internacionais dos governos de Inglaterra e de Portugal, respetivamente. Das negociações resultou a Declaração Conjunta, na qual se prevê que, durante 50 anos, Macau e Hong Kong seriam regiões da República Popular da China com quase total autonomia. Ficava garantido, através da Lei Básica – uma espécie de Constituição – que a China não poderia, durante 50 anos, alterar o sistema jurídico e político nem a maneira de viver (Way of Life) dos cidadãos.

O advogado Jorge Menezes também foi às manifestações em Hong Kong. Há mais de dez anos a exercer em Macau, explica ao Observador em que é que a lei da extradição para a China compromete a Lei Básica das regiões administrativas especiais e quanto risco corre Macau, caso haja aprovação da lei na vizinha Hong Kong.

Acredita que o governo de Hong Kong vai recuar nesta legislação?
Não sabemos o que vai acontecer mas há sinais de que poderá ser um “adiamento eterno”. Há esperança de que assim seja. Se a lei da extradição para a China Continental fosse aprovada, a vida em Hong Kong deixaria de existir como existe.

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A ser aprovado em Hong Kong, é real o risco para Macau?
Se a lei de extradição for aprovada em Hong Kong, de certeza que será aprovada também em Macau. A dúvida é: mesmo que seja rejeitada em Hong Kong, será que não vai ser aprovada em Macau? Eles sabem que em Macau seria muito mais fácil. Macau não tem a mesma personalidade política nem o mesmo nível de resistência cívica que tem Hong Kong. Em Macau, a imprensa chinesa é controlada por Pequim. Só a imprensa portuguesa e a de língua inglesa é que são livres. O poder político e o poder económico em Macau são a mesma entidade. Se eu arranjar um problema com o poder político, eu não arranjo emprego. A partir do momento em que houvesse uma lei de extradição para a China em Macau, seria um buraco negro. Não sei o que poderia acontecer mas seria mau.

E o que é que o Jorge faria se houvesse uma lei de extradição em Macau?
Contaria continuar cá, mas era um risco calculado.

Se lei passar em Macau, “contaria continuar cá, mas era um risco calculado”, diz Jorge Menezes

Os sistemas judiciais de Hong Kong e de Macau são agora (e antes desta proposta de lei) independentes do sistema chinês?
Sim. Os tribunais (de Hong Kong e de Macau) decidem em última instância. Não há nenhum litígio para onde se possa recorrer para um tribunal da China. Nenhum. Isto quer dizer que a lei chinesa não se aplica em Macau nem em Hong Kong. Para se perceber, Macau e Hong Kong, apesar de serem chamadas regiões autónomas, têm, relativamente a Pequim, menor dependência do que Portugal tem em relação à União Europeia, por exemplo. Uma das coisas que resultavam de forma inequívoca da Declaração Conjunta era que não havia extradição para a China. Hong Kong têm acordo de extradição com 20 países, como os Estados Unidos, Canadá, Portugal e Inglaterra. Mas são países que têm valores similares aos nossos: os arguidos têm direito a advogado, não há maus tratos, não há confissões forçadas, as audiências e os julgamentos são públicos.

Esta lei de extradição de Hong Kong para a República Popular da China viola a Declaração Conjunta?
Exatamente. Viola a Lei Básica, que é a nossa constituição de deveres e direitos fundamentais. Se Portugal ou Inglaterra disserem que está a ser violada a Lei Básica, estão a dizer que a China está a violar este acordo internacional que é a Declaração Conjunta.

Porque é que Pequim mudou de ideias?
Um cidadão de Hong Kong matou a namorada grávida em Taiwan e refugiou-se, depois, em Hong Kong. Foi preso por branqueamento de capitais, mas não pôde ser preso em Hong Kong por um crime que cometeu em Taiwan. Ele não vai voluntariamente para Taiwan porque não quer ser preso. Taiwan não pode exigir isso e Hong Kong não pode enviá-lo. Então, a Chefe de Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, utilizou a justificação, um bocado esfarrapada, deste caso particular para permitir a extradição de qualquer pessoa para qualquer região da China. Extraditar é agarrar numa pessoa, pô-la num carro e mandá-la para outro país. É algo muito sério por se tratar da China.

Como é a justiça na China Continental?
Há dois anos, um ativista pró-democrata de Taiwan foi visitar a sogra à China, por razões de saúde, e, como ele era crítico daquele país, foi preso e acusado de subverter o estado. Pouco tempo depois, apareceu a confessar os crimes todos. As pessoas são torturadas e acabam por confessar. A China não tem tribunais com separação de poderes. Muitas pessoas não têm acesso a advogado de defesa, muitos advogados que querem defender pessoas acabam eles próprios presos. Muitas vezes não há direito de recurso. A extradição para a China é grave só pelo facto de que a China não pode garantir-nos justiça.

Chefe do Executivo escreve pedido de desculpas. Organização estima que haja dois milhões de manifestantes nas ruas de Hong Kong

O que diz esta lei?
Um cidadão de Hong Kong que cometa um crime, seja roubar uma bicicleta, seja falar mal do estado chinês, pode ser extraditado para a China e lá julgado. Mas acontece muito mais do que isto. Mesmo que o crime seja praticado fora de território chinês, o mesmo cidadão pode ser julgado, uma vez que o código penal chinês diz que chineses que cometam crime no estrangeiro estão sujeitos ao sistema penal chinês. Há muitos chineses que vivem nos Estados Unidos, em Portugal e que merecem a nossa proteção. Mais: estrangeiros que cometam crimes contra o estado chinês podem ser julgados na China. Isto aplica-se a cidadãos estrangeiros residentes, não-residentes e visitantes. Até os turistas estão sujeitos à lei.

Como seria a vida depois da aprovação da lei?
O impacto seria brutal. Deixaríamos de poder gozar de liberdade expressão, como eu, que agora lhe estou a dizer isto tudo. Por isso, houve um milhão de pessoas na rua, 15% da população de pé quatro horas a uma temperatura de quase 40ºC. Foi uma expressão brutal de convicção política, de revolta e de afirmação dos valores fundamentais. Houve centenas de empresas que fecharam as lojas para os trabalhadores poderem ir-se manifestar. Em escolas e universidades, houve professores a dizerem aos alunos para irem manifestar-se. E, felizmente, o protesto está a ter, aparentemente, algum efeito.

Foi à maior manifestação, a de dia 9 de junho. Como a descreve?
Foi uma manifestação completamente pacífica, só para o fim é que houve alguns desacatos. Quando julgarem estas pessoas têm de se lembrar que elas não têm o direito de votar. O direito a manifestação é o único direito que lhes resta. Apesar de Macau e Hong Kong viverem sob um estado de direito, não são sociedades democráticas porque os governantes não são eleitos pelo povo. O Chefe de Executivo, que equivale ao Primeiro Ministro em Portugal, é designado por Pequim. Na prática, a maioria do parlamento é ocupada não por deputados eleitos democraticamente mas por deputados pró-Pequim. É por isso que esta lei, apesar de ter toda a população a opor-se, poderá ser aprovada.