Pedro Manuel sempre teve uma ligação ao mar, fruto do que viveu durante a infância. Mais tarde, e inspirado pelo trabalho do pai com telexes na indústria de conservas, seguiu o caminho da engenharia de telecomunicações, mas nunca deixou o mar e a pesca para trás. Prova disso está na Bitcliq, a startup tecnológica que fundou e que desenvolve tecnologias para gestão de frotas de pesca industrial. O mais recente projeto da empresa, a Lota Digital, quer ligar os pescadores aos clientes e permitir a venda digital do pescado ainda em alto-mar e, ao mesmo tempo, assegurar uma maior rastreabilidade e um maior controlo do mesmo.
A ideia para este projeto surgiu em 2017, depois de o maior operador mundial de satélites a nível marítimo, a Inmarsat, ter convidado a Bitcliq para participar numa conferência. “Disseram-nos: ‘Vocês são uma startup portuguesa, com certeza que devem ter clientes aí em Portugal que possam servir de estudo de caso para apresentarmos'”, explicou Pedro Manuel ao Observador. O mote estava dado. E seguiu-se a questão: “Como é que a nossa tecnologia poderia ser aplicada na pesca aqui em Portugal?”. A partir daí, a Bitcliq começou a olhar para dentro da pesca portuguesa, falou com armadores e percebeu que havia várias diferenças relativamente à pesca industrial: a pesca portuguesa é mais tradicional, mais artesanal e os barcos e tripulações são mais pequenos. “Aqui, a realidade era diferente”, explicou o fundador da startup.
Pedro e a equipa perceberam que, para muitos dos pescadores portugueses, a gestão de frotas, ideia com que a empresa trabalhava, não era o mais importante porque os barcos e a operação eram mais pequenos. “A venda era o que mais ansiavam por mudar”, acrescenta. E foi assim que a Bitcliq aproveitou a tecnologia que já tinha desenvolvido numa nova plataforma de venda do pescado.
“Criamos aqui valor para as duas partes: para quem compra e quer saber o que está a comprar e para quem vende, que passa a ter mais controlo do preço de venda, por exemplo”, acrescentou.
Mas, afinal, o que é a Lota Digital? É uma plataforma de comercialização digital — um marketplace — que liga pescadores e compradores. Na prática, é uma app na qual o pescador coloca à venda o pescado mal acabe de o capturar. Por outro lado, o comprador – como hotéis, restaurantes, lojas e hipermercados — pode adquiri-lo de imediato, apesar de o pesacador ainda estar em alto mar. Além disso, também pode criar uma lista de compras e, de forma automática, a plataforma encontra as soluções disponíveis no mercado para os produtos que o consumidor procura. Mais tarde, e depois de comprar o pescado, o cliente tem também assegurado o embalamento e o transporte do peixe. Já os consumidores vão ter a oportunidade, graças à rastreabilidade, de saber todos os detalhes sobre a origem e proveniência do peixe que vão comer.
“O pescador tem uma aplicação e um kit que desenvolvemos e tem também uma ligação de dados com cobertura até 15 milhas náuticas, ou seja, consegue andar no mar com este telemóvel e estar contactável até 15 milhas náuticas [equivalente a cerca de 28 km]”, explica ainda Pedro Manuel. Depois de uma captura, os pescadores fazem o registo desse peixe na aplicação onde colocam informações como a espécie, a hora a que foi pescado, o tamanho, quando é que o peixe vai estar disponível na lota, bem como uma fotografia. De seguida, os clientes recebem uma notificação sobre o tipo de pescado que foi colocado à venda e, a partir desse momento, podem fazer a sua negociação com o barco.
Na fase da compra, há dois métodos de negociação: um é o botão para comprar na hora, onde o cliente compra imediatamente o lote de pescado pelo preço a que o pescador o põe, e o outro é um leilão, ou seja, não há um preço definido à partida e a decisão recai sobre o valor mais elevado que o cliente oferecer, dos vários que concorrem. Tudo isto é feito e otimizado por algoritmos de inteligência artificial. O pescado, garante a empresa, é acompanhado desde a origem até à entrega.
Para que a Bitcliq pudesse desenvolver esta ideia, a empresa precisou de investimento. Foi por isso que em fevereiro deste ano fechou uma ronda de investimento de 600 mil euros, liderada pela Indico Partners e com a participação da LC Ventures. “O investimento desta ronda é para canalizar em exclusivo para o desenvolvimento da Lota Digital”, garantiu o fundador da startup sediada nas Caldas da Rainha.
Ainda antes deste projeto surgir, e para criar a Bitcliq, Pedro Manuel conta que o investimento inicial da empresa veio de capital próprio e “foram algumas centenas de milhares de euros”.
Uma equipa ligada ao mar: “Há pessoas na equipa que são engenheiros e filhos de pescadores”
Além da equipa fundadora — cinco engenheiros informáticos que se mantém desde o início na Bitcliq — a empresa conta com mais oito pessoas, de biólogos marinhos a engenheiros de qualidade alimentar e especialistas da área comercial e financeira. Grande parte tem uma referência comum: estão ligados ao setor da pesca. “Havia uma afinidade, não éramos uns estranhos no setor quando iniciamos este desafio”, acrescenta Pedro Manuel.
Quando era criança, saía da escola e ia ter com o meu pai ao trabalho. Ele trabalhava muito com a indústria conserveira aqui na região e muitas vezes ia com ele às fábricas de conservas de Peniche para ele arranjar os telex [tecnologia que permitia a comunicação entre as empresas]”, começa por contar Pedro ao Observador.
Foi o trabalho do pai na área das telecomunicações que inspirou Pedro a seguir o caminho na área da tecnologia. Mas, acrescenta, “o contacto em Peniche com os barcos e a realidade das fábricas não era estranho”. “Há pessoas na equipa que são engenheiros de software e filhos de pescadores da zona”, atira ainda. Tudo isso, nas suas palavras, ajuda a ter um sentimento que vai para além da parte prática: “Havia aqui também uma ligação emocional ao setor, de perceber que podíamos, com o nosso talento, ajudar a melhorar a vida destas pessoas. Pelo menos, é essa a nossa expectativa. Acreditamos e vamos além dos desafios, porque temos essa ligação emocional”.
O processo que garante a qualidade do peixe
Uma ideia como esta no mundo digital pode levantar questões quanto à qualidade do peixe que é pescado e vendido na app da Lota Digital. Foi por isso que a Bitcliq definiu a qualidade como uma das suas prioridades. “Este projeto está em uso oficial e legal em Portugal porque propusemos à Docapesca a sua implementação”, garantiu Pedro. A Docapesca é sempre quem gere a primeira venda do pescado, ou seja, os barcos, legalmente, não podem vender o peixe a não ser na Docapesca.
Depois de o peixe ser pescado, o processo funciona da seguinte forma: quando o barco chega a terra, o pescado vai diretamente para o posto de controlo de qualidade da Lota Digital. Cada vez que há uma transação feita ainda no mar, a equipa da BitCliq recebe uma notificação e sabe que vai existir este controlo de qualidade. “A equipa está a postos e quando o pescador chega leva o pescado que já foi vendido à nossa balança”, acrescenta Pedro.
Depois de ser pesado e calculado o preço justo para a venda desse peixe, a equipa faz ainda a validação dos critérios standards europeus a todas as características do pescado, bem como a avaliação do seu grau de frescura.
A equipa faz a avaliação do olho, do muco da pele, etc. Há uma série de critérios, dependendo da espécie, que são avaliados. O pescado é classificado de forma objetiva e é-lhe atribuída uma categoria — se é categoria extra, frescura extra, categoria A ou A+. etc. O cliente é notificado quando o pescado já tiver chegado e sido validada a sua qualidade”, acrescentou o fundador da Bitcliq.
Segue-se a fase do embalamento: a empresa criou uma plataforma com vários parceiros que permite implementar e prestar serviços dentro dela, ou seja, há parceiros locais em Peniche que fazem a recolha do pescado para o cliente, preparam-no e embalam-no para poder ser transportado até ao comprador. Para o transporte, há também um parceiro que trata desse serviço.
Atualmente, e apesar de ainda ter apenas um projeto piloto em Peniche, a Lota Digital conta com cerca de 20 barcos de pescadores e mais de 20 clientes registados. “Estamos com estes números e agora a escalar, a crescer”, assegura Pedro. Dentro dos barcos com quem trabalham, acrescenta, há vários tipos de pesca: “Desde a pesca do anzol, pesca de redes em malha, temos pequenos barcos de arraste, etc. Todas as artes estão, no fundo, cobertas para também validarmos a tecnologia com todos os tipos de pesca que existem”.
Em relação ao modelo de negócio da empresa com este projeto, a transação é cobrada, em parte, a partir do valor que o comprador paga pelo pescado, através de uma comissão incluída nesse valor. O objetivo, explica Pedro, é não impor demasiados custos ao pescador, uma vez que “neste momento, nem sempre quem corre o maior risco [os pescadores] é quem tem o maior benefício”.
Todos os elementos de uma cadeia de valor têm importância: o peixe tem de ser preparado, tem de ser transportado, tudo isso tem custos e tem valor. Mas, neste momento, há situações em que o pescador, que é quem correu o maior risco, é quem ganha menos em toda a cadeia. O consumidor paga 10 e o pescador ganha 1 ou 2. O que também estamos a tentar fazer é eliminar um pouco isso e trazer maior ganho para o lado do pescador, por isso, decidimos que o pescador não tem de suportar o custo da tecnologia”, explica Pedro.
Uma história que começou sempre com um desafio
Apesar de a Lota Digital ter começado em 2017, a história da Bitcliq começa em 2013, quando a equipa ainda estava a analisar qual seria a área de enfoque da sua tecnologia e foi desafiada pela indústria ligada ao setor da pesca para entrar no mundo da gestão de frotas de pesca industrial. “Abraçamos esse desafio e começamos a entrar nesse setor e a conhecê-lo cada vez mais e a perceber que havia aqui uma oportunidade de escala global daquilo que poderíamos fazer com novas tecnologias para um setor tradicional e que não estava assim tão desenvolvido na altura em que começamos”, conta Pedro Manuel.
De seguida, e depois de despertarem o interesse do maior processador mundial de atum, nasceu também outro projeto da Bitcliq: o Big Eye Smart Fishing, uuma plataforma que permite a gestão das frotas de pesca em tempo real. As ideias da Bitcliq já valeram prémios como o concurso Elevator Pitch, a 10.ª edição dos Green Project Awards, na categoria Indústria 4.0, e mais recentemente os Prémios Empreendedor XXI, um prémio ibérico.
Por agora, a Lota Digital já tem um parceiro no Peru e no Chile e tem também outro desafio na Europa que está a avaliar. Um dos mercados em que está interessada é também o mercado espanhol, uma vez que Espanha “é um país com uma forte componente ligada à pesca e onde muitas realidades serão equivalentes ou parecidas com Portugal”. Mas nem tudo é um caminho fácil a percorrer. Um dos desafios nesta área é o facto de se tratar de um mercado ainda muito tradicional, que “não muda de um dia para a noite”.
“Há muito hábito enraizado: como é que se faz a compra, ser aquele parceiro de confiança a quem eu telefono e me desenrasca para o dia a seguir e algumas pessoas ainda olham com alguma dificuldade em perceber o que fazemos, mas acho que isso é natural”, acrscentou.
Agora, e enquanto a Lota Digital não chega ao resto do país, Pedro Manuel assegura que o trabalho vai continuar a ser feito. Passo a passo. “Ainda ontem estivemos a trabalhar até às 3h da manhã na nova parte de software para o parceiro de embalamento. As pessoas não estão a olhar para o relógio, estão ali para que as coisas funcionem e para que, no dia a seguir, se tenha avançado mais uma etapa”, conclui.
*Tive uma ideia! é uma rubrica do Observador destinada a novos negócios com ADN português.