Durou tanto tempo que até ganhou um nome próprio: el bloqueo. Desde a moção de censura contra o governo de Mariano Rajoy aprovada em junho do ano passado, Espanha teve de ir a votos duas vezes para que o líder socialista, Pedro Sánchez, conseguisse chegar a um acordo que lhe permite agora, e pela primeira vez, governar o país em plenas funções. O que foi impossível após as eleições de abril deste ano está agora prestes a concretizar-se: o PSOE e o Podemos, de Pablo Iglesias, chegaram a um pré-acordo para formarem um governo de coligação em que Iglesias será mesmo vice-primeiro-ministro.
Os vencedores e os vencidos da noite em que o bloqueio não desapareceu
A subida de Iglesias ao segundo lugar do governo é uma cedência considerável da parte de Pedro Sánchez. Após as eleições de abril, o líder socialista procurou sempre negociar uma solução semelhante à que aconteceu em Portugal em 2015 e assegurar o apoio parlamentar do Podemos, não pretendendo a entrada de ministros do partido de Iglesias no governo — ao passo que o Podemos insistiu sempre num governo de coligação. Este desentendimento (ainda que, no final, o PSOE ainda tenha oferecido algumas pastas, mas nenhuma das mais importantes, que o Podemos queria) acabaria mesmo por levar ao colapso das negociações e à convocação de um novo ato eleitoral para o último domingo.
O que é certo é que a eleição acabaria por não correr bem para nenhum dos dois potenciais parceiros de acordo: o PSOE perdeu três deputados e o Unidas Podemos perdeu sete. Agora, juntos, os dois partidos somam 155 deputados — o que não é suficiente para chegar à metade do parlamento (176 dos 350). Ou seja, a viabilização deste acordo vai depender de uma aritmética politicamente muito incerta, como assinala o jornal espanhol El País. Em abril, as duas forças políticas somaram 165 assentos — e, embora continuassem a depender de outros apoios, teriam tido a vida mais facilitada caso tivessem apresentado este acordo ao parlamento.
Calculadora de coligações. Como se pode desbloquear Espanha?
Agora, explica o El País, é provável que a estes 155 deputados se juntem os sete eleitos pelo PNV (Partido Nacionalista Basco) e os três eleitos pelo Más País (formado por Iñigo Errejon, que saiu do Podemos em rutura com Pablo Iglesias). Ainda assim, estes 165 não chegam para fazer aprovar a investidura do governo de coligação. Nem sequer a abstenção dos dez deputados do Ciudadanos (um dos grandes derrotados da noite eleitoral, que perdeu 47 deputados) serão suficientes. Seria preciso que partidos como a ERC (Esquerda Republicana da Catalunha) ou o Bildu (partido independentista do País Basco) se abstenham. Para garantir a abstenção dos 13 deputados da ERC será agora fundamental conhecer os detalhes do acordo relativamente à situação da Catalunha.
“A melhor vacina contra a extrema-direita”, diz Iglesias
Foi ao início da tarde desta terça-feira que, em Madrid, Pedro Sánchez e Pablo Iglesias apareceram em público, perante os jornalistas, para apresentar o primeiro documento com vista ao entendimento entre os dois partidos. A imprensa espanhola revela que as negociações entre Podemos e PSOE arrancaram na noite de segunda-feira, com um encontro discreto entre os dois líderes. Depois desse encontro, só agora tornado público, foram as segundas figuras dos partidos que continuaram o processo negocial. Da parte do PSOE, a vice-secretária-geral Adriana Lastra; do lado do Podemos, a dirigente Irene Montero.
Na tarde desta terça-feira, Iglesias e Sánchez repetiram perante os jornalistas a ideia que ambos já tinham defendido na noite eleitoral: formar um governo progressista. Iglesias — que no domingo já tinha afirmado que “a única maneira de travar a extrema-direita em Espanha é com um governo que tenha estabilidade parlamentar suficiente” e se tinha mostrado disponível para negociar “já a partir de amanhã um governo de coligação” — sublinhou agora que o pré-acordo alcançado permite chegar a um “governo de coligação progressista” que será a “melhor vacina contra a extrema-direita”.
“Quero agradecer a Pedro Sánchez por querer trabalhar connosco”, acrescentou o líder do Unidas Podemos (coligação que inclui o Podemos, a Izquierda Unida e os ecologistas do Equo), oferecendo a sua “lealdade” num momento que encerrou mais de seis meses durante os quais Pedro Sánchez resistiu sempre à ideia de acolher Iglesias no executivo. Forçado, pelos maus resultados eleitorais, a fazer agora o acordo que não quis fazer após abril, Sánchez afirmou que este será “um governo categoricamente progressista para toda a legislatura”.
Claro que, agora, faltam os apoios parlamentares a este acordo. Os vários partidos do sistema político espanhol têm-se pronunciado sobre a forma como se vão posicionar. O presidente do PP, Pablo Casado, já reagiu ao acordo afirmando que “um governo radical é a última coisa de que Espanha precisa”. “Não seremos participantes num governo a que ele [Sánchez] chama de progressista, ou seja, de esquerda radical e em conluio com a Generalitat da Catalunha que está instalada na ilegalidade. Vamos viver de acordo com as circunstâncias”, afirmou durante uma conferência de imprensa na sede do Partido Popular.
Para Casado, esta é “a notícia que muitos espanhóis temiam”. “É importante que Sánchez se vá embora”, continuou, considerando que “é a ele a quem a opinião pública deve exigir que saia do labirinto em que se meteu”. “O nosso projeto é incompatível com o programa de Sánchez”, assegurou, acrescentando que o líder do PSOE “escolheu” o lado que quis. “A nós nem nos telefonou. Diz agora que vai telefonar. É evidente que fecha a porta, com estrondo, a qualquer colaboração com o PP”, afirmou.
Também o Ciudadanos, através da porta-voz do partido no Congresso, Inés Arrimadas, se posicionou contra este acordo e apelou a um governo de bloco central entre o PSOE, o PP e o próprio Ciudadanos (que teve uma acentuada derrota eleitoral que levou à demissão do líder, Albert Rivera). “Ainda estamos a tempo de que Sánchez retifique. Num momento como este, apelamos à responsabilidade do PSOE e do PP para chegar a um acordo moderado e constitucionalista com o Ciudadanos, baseado em acordos de Estado bons para o nosso país. Pelo bem de Espanha”, escreveu Arrimadas no Twitter.
Aún estamos a tiempo de que Sánchez rectifique. En un momento como este, apelamos a la responsabilidad de PSOE y PP para llegar a un acuerdo moderado y constitucionalista con @CiudadanosCs basado en Pactos de Estado buenos para nuestro país. Por el bien de España
— Inés Arrimadas (@InesArrimadas) November 12, 2019
Santiago Abascal, líder do partido de extrema-direita Vox, também já se pronunciou contra o acordo, criticando os socialistas por se juntarem ao Podemos, partido que defende a realização de um referendo na Catalunha sobre a possibilidade de independência da comunidade autónoma. No Twitter, Abascal escreveu que com este acordo “o PSOE abraça o comunismo bolivariano, os aliados de um golpe de Estado, a meio de um golpe de Estado”. “Vamos responsabilizá-los por cada dano que causem à convivência e à ordem constitucional”, acrescentou o líder do Vox.
El PSOE se abraza al comunismo bolivariano, a los aliados de un golpe de Estado, en mitad de un golpe de Estado.
Le haremos responsable de cada daño que produzcan a la convivencia y al orden constitucional. #EspañaSiempre— Santiago Abascal ???????? (@Santi_ABASCAL) November 12, 2019
“Diálogo” com a Catalunha, chave para aprovação do acordo
O documento do pré-acordo, tornado público pelos dois partidos, contém dez pontos de entendimento prévio entre PSOE e Podemos que vão orientar as negociações para um programa de governo. Especialmente importante é o ponto 9, sobre a situação na Catalunha, que será essencial para garantir a aprovação do acordo no parlamento. É que, feitas as contas, sem a abstenção dos grupos independentistas catalães, o mais provável é que o documento acabe chumbado no Congresso dos Deputados.
No documento, os dois partidos comprometem-se a “garantir a convivência na Catalunha” e destacam a necessidade de “diálogo”. Se Pedro Sánchez, no debate que antecedeu a eleição, tinha sido duro na forma como prometeu trazer Carles Puigdemont de volta a Espanha para “prestar contas à justiça espanhola” e criminalizar “referendos ilegais como o da Catalunha”, a posição do Podemos a favor de um referendo poderá contribuir para que o acordo seja menos explícito nesse capítulo, deixando margem para a abstenção dos independentistas — em especial dos 13 deputados da ERC.
????️ El #PSOE y @ahorapodemos hemos alcanzado un preacuerdo para conformar un Gobierno progresista de coalición que sitúe a España como referente de la protección de los derechos sociales en Europa.
Léelo aquí ???? pic.twitter.com/lACjhoSYwl
— PSOE (@PSOE) November 12, 2019
O pré-acordo pode ser um primeiro passo nesse sentido. “Garantir a convivência na Catalunha: o Governo de Espanha terá como prioridade garantir a convivência na Catalunha e a normalização da vida política. Com esse fim, fomentar-se-á o diálogo na Catalunha, procurando fórmulas de entendimento e encontro, sempre dentro da Constituição. Também se fortalecerá o Estado das autonomias para assegurar a prestação adequada dos direitos e serviços da sua competência. Garantiremos a igualdade entre todos os espanhóis”, lê-se no pré-acordo.
Para já, a ERC diz que não está de acordo com o que foi apresentado — mas uma decisão definitiva só será tomada depois das negociações. A porta-voz da ERC, Marta Vilalta, falou à imprensa espanhola esta tarde e insistiu que é preciso “sentar-se, falar e negociar”. A posição do acordo PSOE-Podemos sobre a forma de diálogo com a Catalunha será fundamental para definir o voto da ERC. “A nossa proposta é muito clara: exigimos o reconhecimento de um conflito político. É muito simples, é muito claro”, afirmou Marta Vilalta.
“Queremos reconhecer que este conflito político requer uma solução democrática e política, que se tem de basear e sentar-se, falar e negociar. Acreditamos que é muito simples e têm de o fazer se querem algo de nós”, disse a porta-voz da ERC, sublinhando que, para já, o partido vota não. “Agora mesmo, a nossa resposta é um não. Agora mesmo, é um não ao que nos apresentaram. Se não se movem neste sentido, não há nada a fazer.”
Quem deverá votar a favor será o PNV, Partido Nacionalista Basco, que, através do porta-voz Aitor Esteban, classificou o acordo como “necessário”. Porém, o representante do PNV lamentou que o acordo não tenha sido alcançado antes, em abril, dando espaço à realização de umas eleições em que acabaria por ser evidente o crescimento da extrema-direita (o Vox duplicou a sua representação parlamentar, passando de 24 para 52 deputados).
“Já vínhamos a pedir desde há muito tempo porque era necessário, antes e também agora, para formar uma maioria. O que lamentamos é que tenham tido de passar meses, que os dois partidos tenham perdido 1,5 milhões de votos e a maioria no Senado, e que o Vox tenha aparecido com muita força no Congresso. Lamentamos que tenha de ter acontecido tudo isto para que tenha havido um acordo”, afirmou Esteban.
O acordo Sánchez-Iglesias pode assim contar com os sete deputados do PNV, com os três do Más País, com os dois da Coligação Canárias e com o deputado único do BNG (da Galiza). Este conjunto de 168 deputados terá, assim, de ser complementado com a abstenção da ERC e do Bildu (do País Basco) para que o acordo possa ser aprovado. Segundo a imprensa espanhola, os dois partidos já estabeleceram contactos durante a tarde desta terça-feira do modo e ambos exigem sentar-se e negociar com Sánchez e Iglesias de modo a poderem incluir no programa do governo algumas das suas reivindicações independentistas — só isso levará ambos os partidos a absterem-se na votação.
Crescimento, luta contra a corrupção e alterações climáticas
Do acordo constam os “eixos prioritários de atuação do governo progressista de coligação”, embora os detalhes do programa só se devam conhecer mais tarde. Por agora, conhecem-se os princípios orientadores de “uma negociação encaminhada para completar a estrutura e funcionamento do novo governo, que se vai reger pelos princípios da coesão, lealdade e solidariedade governamental”.
Entre as principais prioridades, contam-se a consolidação do crescimento económico e o combate à precariedade laboral com a criação de emprego; a luta contra as alterações climáticas; a proteção das pequenas e médias empresas; a legislação relativa à eutanásia e a aprovação de “políticas feministas”. Também a luta contra a corrupção ocupa um ponto central no documento, que sublinha a necessidade de “proteger os serviços públicos” e direitos fundamentais com o sistema de saúde, o sistema de pensões, o direito à habitação e a recuperação do “talento emigrado”.